«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Preocupante!!!

 O clericalismo será o coveiro do catolicismo?

 Redação

Publicado por Saint-Merry Hors-les-Murs: 30-12-2022 

Concílio Vaticano II - Foto de Lothar Wolleh

“Cristo veio anunciar a Boa Nova, o diabo fez dela uma religião.” (Jacques Ellul)

A todo senhor, toda honra, vamos começar com a carta de [papa] Francisco ao povo de Deus:

«Todas as vezes que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir o povo de Deus a pequenas elites, construímos comunidades, projetos, escolhas teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rosto, sem corpo e, em última análise, sem vida. (…) Favorecido pelos próprios sacerdotes ou pelos leigos, o clericalismo engendra uma divisão no corpo eclesial que encoraja e ajuda a perpetuar muitos dos males que hoje denunciamos. Dizer não ao abuso é dizer não, categoricamente, a qualquer forma de clericalismo.»

Esta carta data de agosto de 2018. Dois anos depois, o relatório da CIASE (Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja) lançou a luz que todos os católicos temiam sobre a situação que esse abuso sexual ou espiritual suscitou. Estamos no final de 2022, mais de quatro anos após a publicação desta carta. O que foi decidido, além das denúncias, para acabar com o clericalismo? Nada, desesperadamente nada. 

Para entender completamente o clericalismo e por que é e será tão difícil, provavelmente impossível, livrar-se dele, é preciso voltar às suas origens e entender porque o clericalismo é parte integrante do “sistema” católico hoje. 

O clericalismo aparece nos séculos II e III, baseia-se na TEOLOGIA DA SUBSTITUIÇÃO que «se esforçará por sustentar que, dado o não reconhecimento de Jesus como Messias e a culpa dos judeus em sua execução na cruz, o povo da promessa e da antiga aliança teria sido rejeitada por Deus. Revogando esta última, Deus teria substituído o antigo Israel (vetus Israel) por um novo Israel (verus Israel – o Israel autêntico), por meio de uma “nova” aliança e de uma reformulação da promessa».[1]

Ao considerar-se o novo povo eleito, a Igreja cristã assume todos os atributos do sistema hierárquico que regia o povo judeu: o aparecimento de uma casta sacerdotal superior, que se considera sagrada (em conexão direta com Deus) e que detém o poder sobre o povo. 

Esta evolução da Igreja e o nascimento do clericalismo induzem mudanças fundamentais que foram introduzidas durante os primeiros concílios (Nicéia em 325, primeiro concílio de Constantinopla em 381), em conexão com a vontade afirmada de Constantino e seus sucessores de apoiar-se na força moral que constitui a Igreja nascente. Esses desvios, porque se trata justamente de desvios da mensagem do Evangelho, sairão reforçados da Contrarreforma (Concílio de Trento, em 1542). 

PAPA PIO X

1. A noção de hierarquia e segregação entre clérigos e leigos 

A encíclica Vehementer Nos [= Nós fortemente] do Papa Pio X em fevereiro de 1906 é uma boa ilustração disso:

«Esta Igreja é essencialmente uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que compreende duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho, aqueles que ocupam uma posição nos diversos graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E estas categorias são tão distintas umas das outras que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e orientar todos os membros para o fim da sociedade; quanto à multidão, não tem outro direito senão deixar-se conduzir e, dócil rebanho, seguir os seus pastores».

Esta encíclica parece ser de uma outra época, mas parece ter inspirado a Lumen Gentium, citada mais tarde, que data de 1964 (Concílio Vaticano II).

O fato de que essas noções tenham sido combatidas e denunciadas por Jesus nos Evangelhos nunca envergonhou a Igreja.

«Nem Jesus nem nenhum dos doze apóstolos são apresentados como sacerdotes, nem de longe se referiu ao sistema hierárquico do templo. E no seguimento de Jesus ninguém assume a função de controlador da religião.»[2]

2. A aparição de um poder sagrado

 Aqui está um trecho da constituição dogmática Lumen Gentium publicada em 1964: 

«Aquele que recebeu o sacerdócio ministerial goza de um poder sagrado para formar e conduzir o povo sacerdotal, para fazer, no papel de Cristo, o sacrifício eucarístico e a oferta a Deus em nome de todo o povo».

É surpreendente que esta noção de sagrado e, além disso, de poder sagrado, ainda seja mantida em um dos maiores documentos do Concílio Vaticano II, quando sabemos que esta noção e o próprio termo “sagrado” não aparecem em nenhum lugar nos Evangelhos. Temos, inclusive, o direito de pensar que Jesus denunciou esta noção: os três Evangelhos sinópticos (Mt 27,51 – Mc 15,38 – Lc 23,45) evocam o rasgo do véu do Templo, o mais sagrado de todos os lugares sagrados entre os judeus, concomitantemente, com a morte de Jesus.

Isso não quer dizer que o advento de Jesus significa o fim do sagrado e o chamado à santidade?

O Evangelho não é, do começo ao fim, a narrativa de um homem, Jesus, a encarnação de Deus entre os homens, para cuidar de seu irmão, e colocá-lo de pé novamente. “Eu sei quem tu és: o Santo de Deus”, grita o primeiro possesso que Jesus cura (Mc 1,24). 

Outra interpretação do rasgo do véu do Templo – lembremo-nos que somente o Sumo Sacerdote era autorizado a entrar no Santo dos Santos (coração do Templo em Jerusalém) no dia da Páscoa judaica para honrar a Deus – é que Deus, através de seu filho Jesus, agora está acessível a qualquer pessoa e que não precisamos de nenhum intermediário para acessar os recursos do divino. Alguns autores ilustraram isso particularmente bem. Citemos Agostinho: “O divino é mais interior para mim do que eu mesmo”. Ou Maurice Zundel: “O sentido da nossa vida é salvar Deus dentro de nós. Somos habitados por uma presença, a vida continua através do nosso sim”. Em tal concepção de fé, não há necessidade de um intermediário sagrado entre Deus e nós

Por fim, citemos Mateus no capítulo 20, sobre o qual gostaríamos que nossa hierarquia eclesial meditasse um pouco mais:

«Quem quiser ser o maior, no meio de vós, seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro, no meio de vós, seja vosso servo, da mesma forma que o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos.» [vers. 26-28].

Momento da Ladainha de Todos os Santos durante a Missa de Ordenação Presbiteral

3. O surgimento da noção de puro-impuro

Esta noção está muito presente nos ritos judaicos e é constantemente criticada por Jesus nos Evangelhos, as referências são inúmeras. Essa noção de puro-impuro reapareceu dentro da Igreja e é o ponto de partida:

* da segregação entre homens e mulheres, sendo a mulher, como em muitas religiões, o ser impuro (menstruação);

* da justificativa do celibato: para se tornar sagrado, o homem deve abster-se de todo contato sexual com a mulher; o sagrado torna-se, de certa forma, a contrapartida desse celibato; estando as noções de celibato e sagrado assim ligadas, é difícil retroceder, daí o impasse atual e a impossibilidade teológica de autorizar o casamento de padres ou ordenar homens casados ​​(e muito menos mulheres!). 

4. O surgimento da noção de sacrifício e do altar (lugar de sacrifício e espaço sagrado do Antigo Testamento)

Conhecemos todas as expressões: “renovar o sacrifício de Cristo”, “Cristo se sacrificou por nós como o cordeiro”, encontramos várias delas no texto da consagração (“que este sacrifício encontre graça diante de Ti”) . A pintura de Jan Van Eyck, que pode ser admirada na Catedral de Ghent, é uma boa ilustração disso:

Van Eyck, A Adoração do Cordeiro Místico (painel central), 1432, Catedral de Saint-Bavon, Gand

«Ao confirmar contra Lutero o caráter sacrificial da Missa, a doutrina dos sacramentos, especialmente a transubstanciação eucarística do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo, e a necessidade de ser celebrada por um padre, etc., o Concílio de Trento consolida o sistema hierárquico clerical e a separação entre clérigos e leigos: é impossível para o simples fiel entrar em contato com o divino sem passar pela mediação dos sacerdotes-sacrificadores».[3]

5. Uma visão muito diferente da Eucaristia 

Esta nova visão da Eucaristia vai ao encontro da lógica e da linha reta das noções anteriores: primazia ao sagrado (altar), ao poder (único autorizado a celebrar é o sacerdote), à noção de sacrifício, à noção de puro-impuro. 

No entanto, nas primeiras comunidades cristãs nunca houve distinção entre sacerdotes e leigos e a partilha do pão ocorria nas celebrações domésticas, “em sua memória” nos espaços seculares (casas). Veja o primeiro relato da instituição da Eucaristia segundo São Paulo (1Cor 11) que enfatiza o aspecto fraterno da refeição. Não há referência a noções de sagrado ou de sacrifício

Essa visão da Eucaristia leva a práticas que para muitos parecem extravagâncias, como objetificar Deus e trancá-lo em uma caixa (tabernáculo/sacrário), ou pretender manipular Deus pedindo-lhe que desça ao altar... Na teologia católica , nossos brâmanes são supostos, em virtude de sua ordenação, a serem “Alter Christus”, alguns, como o cardeal Sarah, coautor de um livro com Joseph RatzingerDas profundezas de nossos corações” (publicado em 2020), e que não duvida de nada, não hesita em promover os sacerdotes como “Ipse Christus”, o próprio Cristo. Obviamente, essas considerações também servem para justificar o celibato dos sacerdotes. 

6. Uma consequência dramática que ceifou milhões de vidas 

Um dano colateral da teologia da substituição e suas insinuações é, evidentemente, o antijudaísmo e o antissemitismo que ela trouxe. Teríamos que aguardar até o Vaticano II, e a declaração Nostra Aetate, para que a posição da Igreja evoluísse sobre este assunto, cujas consequências ao longo dos séculos foram contadas em milhões de mortes

Tanto para a situação atual, o que a originou e o que muitos católicos chamam de “Tradição”. É risível constatar que quando estes tradicionalistas reivindicam a Tradição, esta nunca remonta aos primeiros séculos, mas, consoante o caso, ao século XVI, quando se instituiu a autoridade da Contrarreforma, ou ao século XIX, depois do Iluminismo e da Revolução Francesa, quando a Igreja quis estabelecer sua autoridade sobre as consciências das pessoas e se declarou infalível![4]

Observe que não há nada de novo sob o sol. Já no Antigo Testamento, o profetismo não se misturava bem com a instituição judaica e seus ritos. Exemplos: Isaías 1,11-17:

«De que me serve a multidão dos vossos sacrifícios? - diz o Senhor - Estou farto de holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados. (…) Quando estendeis vossas mãos, desvio de vós os meus olhos; ainda que multipliqueis as orações, eu não ouvirei!».

Veja também Isaías 58,1-12, Jeremias 7,1-15, Amós 5,21-24, ou ainda Miqueias 6,7-8:

«Acaso o Senhor se agradará por milhares de carneiros por miríades de torrentes de óleo? Darei meu primogênito por minha transgressão, o fruto de meu ventre pelo meu pecado? Ele te deu a conhecer, ó homem, o que é bom e o que o Senhor procura de ti: Simplesmente praticar o direito, amar a bondade e caminhar humildemente com o teu Deus».

Sem esquecer as palavras que o próprio Jesus dirige aos fariseus (Lc 11,46):

«Ai de vós igualmente, doutores da Lei, porque carregais as pessoas com fardos insuportáveis, e vós mesmos, nem sequer com um só dedo tocais nesses fardos!»

Ou as duras palavras de Jesus relatadas por Mateus no capítulo 25 [vers. 34-36.40] e que lembram as de Miqueias:

“Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo; pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu, e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e viestes até mim. (…) Em verdade eu vos digo: todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!»

Mas esta oposição, desde tempos imemoriais, entre profetismo e autoridade institucional tem, parece-me, pouquíssimas chances de encontrar um desfecho favorável nos tempos atuais. A extrema direita e uma parte da direita católica (incluindo, em seu tempo, os maurrassianos[5], embora fossem agnósticos ou ateus!) perceberam todo o interesse que a instituição da Igreja pode lhes trazer como modo de poder sobre as consciências: a proteção da identidade cristã diante da ascensão do Islã, questões éticas (casamento para todos, aborto, fertilização in vitro, barriga de aluguel, fim da vida) e a proteção dos bons costumes etc. Recorde-se que 37% dos católicos praticantes votaram em Marine Le Pen e Éric Zemmour, um tipo de voto que a Conferência dos Bispos da França e as grandes figuras da Igreja, outrora, condenaram inequivocamente. Claramente, a Igreja é percebida pela grande maioria daqueles que nela investem hoje, padres e bispos em primeiro lugar, como o último bastião contra “as coisas vão de mal a pior” e, portanto, não se trata de a Igreja abandonar um poder e menos ainda as bases desse poder, o sagrado, sob pena de perder toda a autoridade que considera necessária para cumprir o seu papel. E se papa Francisco nada faz, é porque prefere o cisma silencioso dos que saem na ponta dos pés, ao cisma brutal da ruptura com aqueles que, doravante, constituem as forças vivas da instituição. 

PAPA FRANCISCO

Assim sendo, a Igreja não passa de uma seita identitária. Joseph Moingt expressa claramente o impasse em que a Igreja se encontra agora:

«Enquanto a sociedade e a Igreja funcionaram sob o modo do exercício mundano do poder, a comunicação interna e externa da Igreja funcionou bem. Em um mundo quase totalmente cristão, todos ouviam esse anúncio. Mas em um mundo ocidental democratizado e sem religião, o funcionamento da autoridade na Igreja parece ser desigual e a Palavra não é mais anunciada ao mundo porque se esgotou o modelo religioso que a carrega».[6]

Em outras palavras, o clericalismo funcionou muito bem nos tempos da cristandade, não funciona mais hoje

O termo seita usado aqui pode parecer imprudente e abusivo, mas é da natureza de uma seita ser reduzida a virar cinzas, ter uma linguagem que é compreensível apenas por si mesma e que deixa a sociedade totalmente indiferente. A encarnação no mundo que era a essência do cristianismo simplesmente desapareceu. 

O que aconteceu com a profecia da mensagem do evangelho?

Ao não querer questionar o clericalismo, a Igreja Católica arcará com a pesada responsabilidade de tê-lo reduzido a nada.

Recordemos a citação de André Gouzes: «Se não nos tornarmos como os primeiros cristãos, seremos os últimos».[7] 

Traduzido do francês por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Observação: todas as citações bíblicas desta tradução foram extraídas de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 6. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2022. 

N O T A S :

[1] – Loïc de Kerimel, préf. Jean-Louis Schlegel. (2020). En finir avec le cléricalisme. Le Seuil. (p. 125)

[2] Op. cit. (p. 45).

[3] Op. cit. (p. 58); a noção de sacrifício também é discutida no capítulo 6 do livro.

[4] – No Concílio Vaticano I, em 1870, depois que Garibaldi reduziu os Estados Pontifícios e o poder temporal da Igreja.

[5] O nacionalismo integral, muitas vezes referido como Maurrassismo, é uma ideologia política teorizada por Charles Maurras no início do século XX. Ele falou principalmente nos círculos monarquistas da Action française. A base desta doutrina baseia-se na unidade da sociedade.

[6] – Joseph Moingt. (2002). Dieu qui vient à l’homme. Le Cerf.

[7] – Citado por Anne Soupa e Christine Pedotti em seu último livro: Espérez! Manifeste pour la renaissance du christianisme. (2022). Albin Michael. 

Fonte: Saint-Merry Hors-les-Murs – À la une – Sexta-feira, 30 de dezembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 09/01/2023 – às 10h00).

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