Que mundo é esse ? ? ?
Presos na sagrada “modernidade”
Gianfranco
Ravasi
Il Sole
24 Ore
28-10-2018
Cardeal
italiano, biblista e teólogo renomado, atual prefeito do
Pontifício
Conselho para a Cultura – Vaticano
Não se deve fugir do presente, mesmo
em tão más condições do ponto de vista ético, mas sim tentar fazer com que bata
de novo aquele coração-consciência entorpecido; é preciso redimir o passado
para que seja uma recarga para o presente e uma propulsão para o futuro
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GIANFRANCO RAVASI |
Poucos
atentam para a origem da palavra
“moderno”: ela deriva do advérbio latino de modo, que significa “ora, agora, pouco tempo atrás”, e,
portanto, evoca o imediatismo, a
evolução, a motilidade própria do tempo que flui.
Ironicamente,
Gadda, em Cognizione del dolore
[Cognição da dor], escrevia que, “se uma
ideia é mais moderna do que a outra, é sinal de que nem uma nem outra são
imortais”.
Na
verdade, a classificação da era
“moderna” nos manuais históricos, como se sabe, tem uma acepção bem
diferente, porque, geralmente, abrange
um arco de tempo que vai da descoberta da América (1492) à Revolução Francesa (1789), além do
qual se alarga a era “contemporânea”.
Na
realidade, a acepção genérica de “moderno” adquiriu a conotação de novidade em
relação ao passado: basta pensar, em âmbito teológico, no “modernismo” ou no “modern
style”, que, em âmbito artístico, foi uma variante da “art nouveau”.
Já
foi dada uma sacudida em 1917 pelo escritor Rudolf Pannwitz, quando introduziu
a categoria da “pós-modernidade”, que fez a fortuna dos ensaios de Jean-François Lyotard (“A condição pós-moderna”, de 1979, e “Moralidades pós-modernas”, de 1993).
No
entanto, o conceito básico de “moderno” como sinônimo de presente é dominante
ainda hoje, como em um texto escrito a quatro mãos pelo renomadíssimo fundador
do Censis, Giuseppe De Rita, e por
outro estudioso, Antonio Galdo,
autor de ensaios interessantes justamente sobre a modernidade contemporânea com
o seu: L' eclissi della borghesia [Laterza,
2011 – trad.: A eclipse da burguesia],
Prigionieri del presente. Come uscire
dalla trappola della modernità [Einaudi, 2018 – trad.: Prisioneiros do presente. Como sair da armadilha da modernidade].
O
título assim como o subtítulo da obra, que falam de uma prisão e de uma
armadilha, permitem compreender a abordagem crítica da análise deles.
Eu
a apresento apenas alusivamente nesta página deste suplemento dominical, por
sua natureza reservado à religião, porque os
quatro capítulos que formam a espinha dorsal do livro (aliás, muito
agradável na sua clareza, sinceridade e concretude, distante da bruma ornada de
verificações socioculturais análogas) abrangem
quatro temas sobre os quais eu mesmo me pronunciei ininterruptamente:
* tempo “líquido”,
* cultura digital,
* economia,
* política.
E o
apresento apesar de não ser um sociólogo, embora admita que meus interesses são
ecléticos e móveis.
Isso
ocorre porque os olhares que os dois
autores dirigem ao panorama da “modernidade” têm um relevo capital também na
experiência ético-religiosa. Exemplifico através de uma lista, nas
entrelinhas dos quatro pontos cardeais indicados acima.
Comecemos
com a já abusada mas efetiva detecção da “liquidez”
do tempo atual, com todos os seus corolários de linguagem degradada, de
esquecimento histórico-cultural, de esfarelamento
das identidades de valor.
Continuemos
ao longo das redes virtuais que envolvem aquela que, sem hesitação, é definida
como “infoesfera”, onde não só a linguagem, mas também a ética se
degradam nos murais informáticos que
não conhecem vergonha e dignidade.
Sem
falar, depois, na ilusória liberdade de
navegação em rede que é mapeada pela indústria do “big data” [que “sugerem” temas, pessoas e páginas que se
identificam com o usuário daquela rede social], como ensinam os recentes casos
do mercado de dados sensíveis por grandes corporações, as “big five”
estadunidenses, ou aquelas relacionadas com os condicionamentos eleitorais.
[Paul]
Ricoeur não hesitava em nos lembrar
que “vivemos em uma época em que a
atrofia dos fins corresponde a uma bulimia dos meios”. Como não pensar no império da tecnocracia sobre a ciência
e no predomínio das finanças sobre a
economia, pelo qual capital e trabalho desmoronam?
E,
por fim, De Rita e Galdo nos introduzem na desconcertante fluidez da política, verdadeiramente reduzida a “um evento de futebol”, em que a torcida mais sinistra
apaga qualquer projeto racional e as bandeiras tremulantes no ar da atualidade
são não tanto os “desejos” e os projetos pessoais e sociais altos, mas sim as “necessidades” primárias de segurança e
bem-estar.
Pois
bem, todas essas mudanças de paradigma – como se costuma classificá-las – têm
forte envolvimento no âmbito religioso, entendido no sentido genuíno do termo e
não apenas como mera ilha sagrada onde se elevam volutas de incenso, velas
brilham e cantam-se hinos.
Justamente
por isso, o Papa Francisco não tem medo de avançar com as suas encíclicas, os
seus discursos e os seus atos no horizonte “moderno”, sem temor de sujar a
batina cândida no pó de um presente do qual não se pode escapar, ao contrário
do que desejam os dois autores do livro, mas ao qual, certamente, não devemos
nos uniformizar, adequar ou resignar.
A antropologia proposta
pelas coordenadas socioculturais da “modernidade”, de fato, é problemática,
sobretudo em nível ético. É imperante não tanto a imoralidade, aliás, bem atestada, mas sim a amoralidade,
aquela indiferença que se estende também
ao âmbito religioso, em que:
* o ateísmo militante e coerente e a fé rigorosa e praticada foram substituídos pelo “apatismo” e,
* o fundamentalismo ou o vago
sincretismo pela Nova Era.
Neste ponto, que valor tem falar de PECADO e,
em um espectro mais amplo, que significado têm categorias fundamentais como NATUREZA
HUMANA, CORPO, SAGRADO & PROFANO, FUTURO?
Essas
perguntas são respondidas, de forma bastante original, por Vittorio Robiati Bendaud, um autor de matriz judaico-italiana
líbia, aluno do falecido rabino de Milão
Giuseppe Laras. Digo “original” porque a sua abordagem não segue os parâmetros teóricos tradicionais, mas
é uma série de percursos que usam uma instrumentação muito variada e às vezes
até inesperada.
Ele recorre principalmente
ao pensamento bíblico e judaico que constitui como que uma espécie de estrela guia
dele, capaz de dar “sentido” àqueles
conceitos enunciados acima, que agora estão afligidos por “pecados de sentido”, como diz o curioso
título do livro.
Mas
se esse guia interpretativo particular
de “palavras já desgastadas e de reflexões abusadas no senso comum” é quase
o baixo contínuo dos vários pequenos capítulos, o autor não hesita em avançar
também em alguns campos da literatura e da ensaística contemporânea, sobretudo
judaica, de Heschel a Buber, de Alain Corbin a Soloveitchik, de Gershom Scholem
a Katzenelson e ao amado Laras, sem excluir, porém, por exemplo, o Cognetti das
“Oito montanhas”, o Brontë de “Jane Eyre” e, particularmente, Daniel Varujan e
Antonia Arslan, quando aborda o tema sensível do genocídio que também pertence
ao povo armênio.
A
trama, no entanto, é confiada principalmente às reflexões que, como se dizia,
alimentam-se na fonte e no mesmo estilo epistemológico da tradição judaica. O
apelo final, então, é o típico da própria religião bíblica, que é, por sua
natureza, histórica e, portanto, encarnada. Não se deve fugir do presente, mesmo em tão más condições do ponto de
vista ético, mas sim tentar fazer com que bata de novo aquele coração-consciência entorpecido; é
preciso redimir o passado para que seja uma recarga para o presente e uma
propulsão para o futuro.
Estamos,
portanto, no espírito dialógico
judaico-cristão: para muitos, a abundante colheita de ideias
bíblico-judaica será uma surpresa justamente pela sua carga capaz de superar
aquela resignada narrativa do presente que, de modo fulgurante e paralelo, foi
proposta por duas figuras capitais do século XX. Por um lado, o agnóstico [Albert] Camus em “A queda”
(1956): “Uma única frase bastará para
definir o homem moderno: fornicava e lia jornais”. Por outro lado, o crente
[T. S.] Eliot em Fragment of an Agon
(1922): “Nascimento, e cópula, e morte, / isso é tudo, isso é tudo, isso é
tudo, isso é tudo... / No fim das contas, isso é tudo”.
Livros
mencionados:
1. Giuseppe De
Rita; Antonio Galdo. Prigionieri del presente. Torino:
Einaudi, 98 páginas.
2. Vittorio
Robiati Bendaud. Peccati di senso. Cinisello Balsamo (Milano): San Paolo, 125
páginas.
Traduzido do espanhol por Moisés Sbardelotto.
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