Eleições 2018 e o Fanatismo Religioso
A oportuna reflexão de um bispo
Dom Sílvio
Guterres Dutra
Bispo Diocesano de Vacaria – RS
O atual fenômeno do fanatismo
religioso, misturado com a política,
tem se caracterizado por algumas
causas (bandeiras) defendidas
a “unhas e dentes” sobre as quais é
praticamente impossível se dizer qualquer coisa sem ser condenado ao “fogo dos
infernos”
![]() |
Dom Sílvio Guterres Dutra |
Perto
do segundo turno das eleições, em meio a uma tempestade de notícias falsas,
dinheiro de caixa 2, manipulação das mentes via redes sociais uma palavra de serenidade, bom senso e
alerta!
Dom Sílvio Guterres Dutra, bispo da Diocese de
Vacaria, Rio Grande do Sul, envia uma mensagem para comunidades, pastorais,
movimentos, lideranças: “de todas as
possíveis manifestações fanáticas, das quais a primeira vítima é sempre o
próprio uso da razão, o fanatismo religioso é o pior”.
“O que eu quero crer de verdade é que não
cheguemos ao ponto de ter que pedir socorro aos ateus, para que nos livrem do
fanatismo de cristãos adoecidos que estão prestes assumir o governo do nosso
país”, escreve o bispo de Vacaria, RS.
Esta
é a mensagem de Dom Sílvio:
“Por causa do Evangelho de Jesus Cristo”
Mensagem dirigida às comunidades, pastorais,
movimentos, lideranças e ao povo de Deus peregrino da Diocese de Vacaria.
Segundo o dicionário, “Fanatismo religioso é uma forma de fanatismo caracterizada pela
devoção incondicional, exaltada e completamente isenta de espírito crítico, a
uma ideia ou concepção religiosa. Em geral o fanatismo religioso também se
caracteriza pela intolerância em relação às demais crenças religiosas. Um
fanático religioso é, muitas vezes, um indivíduo disposto a se utilizar de
qualquer meio para firmar a primazia da sua fé sobre as demais”.
Ciente de que posso estar me colocando diante
da crítica impiedosa, mas impulsionado ainda mais por uma consciência que me
diz que aquilo que não se diz na hora certa se deve calar depois dos fatos
ocorridos, e de que em certas
circunstâncias a omissão pode ser o maior dos pecados, decidi emitir minha
opinião sobre a mistura da religião com a política neste momento do nosso amado
Brasil. Prefiro correr o risco do erro de avaliação do que estar para o rebanho
como uma “sentinela adormecida”, que embora veja o lobo se aproximando não
cumpre sua missão.
O recende dia de Nossa Senhora Aparecida, foi
muito intenso para mim. Enquanto viajava pelas estradas da nossa diocese de
Vacaria, na direção das comunidades, minha mente, quase que independente de
minha vontade, voltava toda hora ao fato de que nossa querida padroeira já foi
vítima, ao menos duas vezes, do fanatismo religioso. Em 1978, um homem se
dizendo enviado por Deus, destroçou a pequena imagem de Nossa Senhora em mais
de duzentos pedaços; há alguns anos atrás um pastor fanático desrespeitou
grosseiramente a representação de Nossa Senhora (sua imagem) com uma sequência
de chutes em um programa de televisão.
Outra experiência recente de fanatismo, dentro
da própria Igreja Católica, fez com que indivíduos instruídos por gurus das
redes sociais, tenham agredido a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil] como se ela fosse composta por moleques imaturos que não sabem o que
fazem. Se tudo isso não bastasse, o grande Papa Francisco tem sido alvo de
ataques ferrenhos contra a sua pessoa. Em todos estes casos podemos detectar
uma doença espiritual/psicológica que revela a ausência de discernimento e de
juízo equilibrado.
De todas as possíveis manifestações fanáticas,
das quais a primeira vítima é sempre o próprio uso da razão (o fanático se nega
a raciocinar por que isso seria muito perigoso), o fanatismo religioso é o pior, pois atinge o cerne da pessoa,
atinge a sua dimensão mais íntima, sagrada e transcendente. Como dialogar com
uma pessoa que está certa, sem uma mínima chance de equívoco, de que é Deus que
a manda dizer o que diz e fazer o que faz? O fanatismo no futebol e o próprio
fanatismo ideológico da política, de longe não são tão prejudiciais quanto o
religioso. Famílias e comunidades que convivem com pessoas que se deixaram
fanatizar sabem bem o que isso significa. Imaginemos
agora, por exemplo, o estrago que faz misturar a doença religiosa com a
ideológico/política! Que Deus nos acuda!
O atual fenômeno do fanatismo religioso,
misturado com a política, tem se caracterizado por algumas causas (bandeiras)
defendidas a “unhas e dentes” sobre as quais é praticamente impossível se dizer
qualquer coisa sem ser condenado ao “fogo dos infernos”. Vou me referir a duas
delas:
A
BANDEIRA DO ANTICOMUNISMO – Aqui não se trata absolutamente de
defender o pensamento comunista, questão já tratada adequadamente pela Igreja,
mas é necessário se dar conta que ao reduzir a responsabilidade de todos os
males do mundo aos comunistas se está fechando os olhos para a realidade que é
muito diferente. O problema do nosso tempo
é bem outro que o comunismo, é a ditadura do “deus mercado”, o verdadeiro
“deus” do capitalismo selvagem que vem
devastando valores, destruindo pessoas, famílias, cooptando igrejas e
movimentos eclesiais e colocando em xeque a possibilidade de sobrevivência
do planeta. A idolatria em torno do
“deus mercado” é tão absurda que o torna a única divindade inatacável.
Pode-se debochar e desprezar qualquer outra representação religiosa, que isso é
tido como liberdade de manifestação, porém se
alguém ousar criticar o “deus mercado” será perseguido de morte como o
profeta Elias depois de acabar com os profetas de Baal. De fato, o capitalismo
não nega a existência de Deus (o que é simpático aos crentes desavisados), mas
o que ele faz é substituir o Deus de
Jesus Cristo pelo “deus dinheiro/lucro”.
Esta mesma causa anticomunista, que possui seus
méritos, serve para que a doença espiritual (fanatismo) leve seus adeptos a
pensar que o “Mal” está sempre fora da sua igreja, que é sempre um perigo que
vem de fora e que deve ser combatido. Tudo o que aprendi sobre o Demônio até
hoje, me faz lembrar que ele é tudo, menos ingênuo e burro. Com isso quero
dizer que a pessoa não fanatizada é
capaz de perceber primeiro o pecado que está dentro de si e da sua própria
instituição. Esta tarefa é a mais difícil e mais dolorosa, mas também é a
mais equilibrada e madura, e é a única que pode curar o problema na sua raiz.
Proponho uma questão concreta para reflexão: o que faz mais mal às famílias, às igrejas e à própria experiência de fé,
a proximidade com um ateu ou a existência de graves escândalos de ministros no
interior das próprias igrejas?
O Papa Francisco, modelo de lucidez e
equilíbrio para o nosso tempo, tem o foco de suas principais preocupações
noutro alvo. No seu documento do início do ministério ele afirma:
“Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os
da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz.
Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos
mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o controle dos Estados,
encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania
invisível, às vezes virtual, que impõe de forma unilateral e implacável, as
suas leis e as suas regras...” (Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium 56).
Com estas palavras não me parece que o Papa
entenda que o risco do comunismo seja o único, e muito menos o maior perigo da
atualidade.
A
BANDEIRA ANTIABORTISTA – Antes que alguém aponte sua arma na
minha direção, dou testemunho da minha firme decisão de ser um missionário da
sagrada e intocável vida que é dom de Deus. Uma recente experiência de milagre
que aconteceu entre meus familiares, em torno do nascimento da Cecília (minha
sobrinha-neta) chancelou para sempre meu amor a vida desde sua origem. Nenhuma
ideologia, ciência, medicina, e nenhum médico está acima da vida ou a pode
tratá-la como objeto ou coisa. A questão
da doença espiritual (fanatismo) aqui não é a de assumir a indispensável luta
contra o aborto, mas a cegueira que impede o crente de pensar mais além. A vida não vale somente enquanto está no útero materno, ela
vale sempre. Hoje, a fixação exclusiva nesta causa serve muito mais aos
projetos do grande poder econômico que, neste caso, instrumentaliza uma causa nobilíssima dos cristãos para impor seus
mesquinhos interesses políticos.
Novamente é o Papa Francisco que convoca à
lucidez e afirma no seu mais recente documento sobre o chamado à santidade no
mundo atual:
“Mas é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que
vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando algo
superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então
relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se
interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser
clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da pessoa
humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente
de seu desenvolvimento. Mas igualmente é sagrada a
vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na
exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos
privados de cuidados, nas novas formas de escravatura e em todas as formas de
descarte. Não podemos nos propor um ideal de santidade que ignore a injustiça
deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem sua vida às
novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora
enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente” (Exortação
Apostólica Gaudete et Exsultate 101).
Entendo que Francisco está nos pedindo para não
permitir que uma questão tão importante como a sacralidade da vida seja
instrumentalizada, a ponto de os mesmos
que defendem ferrenhamente a vida do nascituro sejam os que pregam o ódio, a
violência, a tortura, o racismo, a homofobia etc.
Os pensamentos acima são frutos da inquietação
de um pastor que se angustia muito com os fenômenos do nosso tempo e que entende que não tem o direito de se
calar. Silenciar sobre estes temas que estão pautando o momento político
brasileiro seria para mim muito mais difícil de administrar, do que correr o
risco do equívoco tanto no mérito da minha manifestação quanto na interpretação
dos que a lerem. Fico à disposição para
todo tipo de crítica e de discordância, contanto que não seja mera agressão.
Vale lembrar o que dizia Dom Helder Câmara: “se discordas de mim, tu me enriqueces”.
O que eu quero crer de verdade é que não cheguemos ao ponto de ter que
pedir socorro aos ateus, para que nos livrem do fanatismo de cristãos adoecidos
que estão prestes assumir o governo do nosso país.
O que exponho aqui não pretende ser toda a verdade,
muito menos a única verdade. É apenas minha palavra.
Dom
Sílvio Guterres Dutra
Bispo
Diocesano de Vacaria-RS
Comentários
Postar um comentário