Para quem, ainda, não percebeu a gravidade
É voto de sobrevivência, não é voto útil
Professor de Direito Constitucional da USP, é doutor em Direito e Ciência Política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
GERALDO ALCKMIN & LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA |
Numa
eleição incomparável, dar a Bolsonaro chance do segundo turno põe tudo em risco
Política democrática é política do sonho e da frustração. Muita frustração. Impõe escolhas não-ideais e subótimas, mas entrega o que regimes não democráticos sonegam: canais para reivindicação de direitos e controle do poder. Abre portas para reclamar por liberdade e dignidade. Por desenvolvimento econômico e social. Distribui o direito de disputar o passado, o presente e o futuro a partir de regras compartilhadas.
Envolve paixão, mas também requer responsabilidade. Requer disposição de eleitores e candidatos para perderem sem melar o jogo. Requer atenção para reconhecer quando a possibilidade de jogar está em risco evidente, e maturidade para minimizar esse risco.
Autocratização – mudando o regime político
A violação estrutural e contumaz de regras eleitorais sempre foi o modo bolsonarista de competir. Não é apenas traço de caráter, mas projeto orquestrado de mudança regressiva de regime político, também chamado de autocratização. Um projeto tão claro nunca esteve em curso nos 30 anos anteriores.
A eleição presidencial de 2022 converteu-se numa eleição
existencial. Se quiser provas, percorra as páginas do jornal de hoje, de
ontem, de amanhã. Não se compara com qualquer eleição entre 1994 e 2014. Nem
mesmo à eleição de 2018. Por nenhum critério relevante.
Somente a INDIFERENÇA ou a CEGUEIRA à espiral da violência
política, do armamento militante de grupo atiçado por filosofia política da
supressão do mais fraco, levam a conclusão diferente.
Antes de qualquer coisa, a eleição de 2022 é a eleição da clareza negativa, um consenso minimalista sobre o que não se quer. Exige visão da magnitude do risco, senso de emergência e cuidado para não cair na armadilha do “narcisismo das pequenas diferenças”, aquele conflito fratricida que emerge, às vezes, entre os que mais se parecem, mas não se suportam.
A polarização é entre Bolsonaro e todo o resto
Não há polarização entre Bolsonaro e Lula, mas entre Bolsonaro e qualquer ente que atrapalhe desejos seus e da grande família. A política democrática, outra senhora que lhe tira do sério, é um desses obstáculos.
Bolsonaro está armado. Pede deferência ou morte. Cidadãos estão com medo de sair à rua. Outros sendo mortos ou ameaçados. Adversários vêm sendo abordados no espaço público por gente com pistola na cintura. É assim que se opera em Rio das Pedras, é assim que se opera no planalto bolsonarista.
Não pode haver 2º turno!
Um segundo turno é a colher de chá que deseja: o prêmio de quatro semanas em que pode disparar, sem afetar interesses eleitorais de aliados, seu arsenal atômico.
A ideia de que Simone Tebet ou Ciro Gomes oferecem vias despolarizantes é tão sagaz quanto a ideia de que Aras descriminalizou a política, Gilmar Mendes resgatou o estado de direito e Damares protege a vida, a mulher e a família. Tão proba e honesta quanto ministro de corte superior que aceita mimos na Europa pagos por advogado que se beneficia de decisões do agraciado. Tão desconcertante quanto candidatar Paulo Guedes para o Nobel de economia.
A recusa em admitir a anormalidade brutal da política bolsonarista, mesmo pelos frágeis padrões de normalidade dos últimos 30 anos, está ajudando a liquidar os ativos democráticos que restam.
Negacionistas do risco democrático, essa turma animada que congrega cientistas políticos, jornalistas, economistas, autoridades e até ministros do STF, sambaram no palco da preguiça analítica e da apatia política. Ironizaram o alarme num edifício em chamas. Chamaram de alarmismo os esforços pragmáticos de autodefesa. E descansaram na poltrona reclinada do antialarmismo sedentário.
QUEM NÃO PERCEBEU??? Tudo o que Bolsonaro quer é um 2º Turno!!! |
Enquanto as casas de tolerância à delinquência política continuam a brochar, Bolsonaro remove pilares democráticos. Politicamente, nunca brochou. E pensavam que ele se referia à sua contestada potência sexual. Não era só um pândego de palanque, com pânico de brochar, mas um profissional da violência simbólica e concreta.
O voto resignado em Lula no primeiro turno não se confunde com “voto
útil” porque nosso repertório conceitual da normalidade política não se aplica
a uma eleição existencial.
No conceituário da emergência, “voto útil” perde lugar. Frívola demais, a noção subestima a enormidade do perigo. Fraca demais, não justifica nem explica escolhas eleitorais nessa conjuntura.
Estamos diante de “voto de sobrevivência”. Sobrevivência de um projeto de vida individual e coletivo. Onde igualdade na diferença e liberdade na interdependência tenham alguma chance.
Fonte: Folha de S. Paulo – Política/Eleições 2022 – Quinta-feira, 15 de setembro de 2022 – Pág. A12 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/09/2022 – às 09h30).
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