Um livro que está dando o que falar!
“O
que é o homem?”
Interroga-se
a Pontifícia Comissão Bíblica
Franca Giansoldati
Jornal
«Il Messaggero» - Roma (Itália)
18-12-2019
Divórcio, os teólogos abrem uma brecha:
“Possível, se falta a expressão do amor”
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Tradução do título: "O que é o homem? Um itinerário de antropologia bíblica" Livro, ainda, a ser publicado no Brasil |
Divorciar,
mas com cautela. Um livro acaba de ser publicado pela Libreria Editrice
Vaticana, que contém uma brecha sem precedentes, uma luz nada certa,
mas preciosa para todos aqueles casais católicos que naufragaram, caindo em mil
pedaços, na dor da derrota existencial. Os teólogos, embora deixem claro que
existe “a indissolubilidade” do matrimônio, deram um passo adiante afirmando que
o marido ou a esposa que conscientemente percebem a própria impossibilidade de
continuar o caminho conjugal já não mais baseado no amor, “não estão fazendo um
ato contra o casamento”.
Em suma, é
uma abertura para o divórcio, embora com mil distinções e muitas cautelas.
O livro chamado Che cosa è l'uomo (O que é o homem, em
tradução livre) aborda o tema em um parágrafo inteiro. “O Mestre
peremptoriamente afirma a indissolubilidade do matrimônio, proibindo o divórcio
e novos casamentos”, mas, no entanto, os teólogos lembram que “não faz um
ato contrário ao casamento o cônjuge que - constatando que o relacionamento
conjugal não é mais expressão de amor - decide separar-se daquele que ameaça a
paz ou a vida dos familiares; aliás, ele paradoxalmente atesta a beleza e a
santidade do vínculo precisamente ao declarar que ele não realiza seu
significado em condições de injustiça e infâmia”.
Magistério
O papa
desde o início do pontificado havia se concentrado no desconforto de tantos
casais divorciados e depois recasados. Durante uma audiência, ele até mencionou
a possibilidade de um divórcio “cristão”, refletindo sobre muitas situações
de violência escondida e oculta entre os muros domésticos: “Não devemos
insistir no fato de ser possível ou não dividir um casamento. Às vezes acontece
que o relacionamento não funciona e é melhor se separar para evitar uma guerra
mundial, esta sim é uma desgraça”. O estudo recém-publicado é uma leitura
antropológica sistemática da Bíblia atualizada até os dias atuais e analisada de
acordo com diferentes ângulos.
O jesuíta,
padre Pietro Bovati, secretário da Pontifícia Comissão Bíblica,
redator do texto, explicou que o pedido veio pessoalmente do Papa e o
resultado são os quatro capítulos de investigação cognitiva da criatura humana
e sua relação com o Criador, assim como são narrados pelas Escrituras. “Em
sua história milenar, a humanidade progrediu no conhecimento científico,
aprimorou gradualmente sua consciência dos direitos do homem, testemunhando um
crescente respeito pelas minorias, pelos indefesos, pelos pobres e
marginalizados”.
O texto da
Comissão do antigo Santo Ofício também colocou outras temáticas espinhosas sob
a lupa, como a questão do gênero. “Parece-nos - acrescentou o
padre Bovati - ter respondido precisamente ao que a Igreja nos pede, isto é,
não dizer coisas que não são as que a Bíblia apresenta. Por isso, aceitamos
abordar as questões, respeitando o nível de informação que temos das
Escrituras. Existem perguntas que os homens apresentam hoje, que não encontram
uma resposta imediata e precisa nas Escrituras, porque as situações culturais
dos tempos antigos não são nossas”.
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PIETRO BOVATI Padre jesuíta italiano, exegeta, professor do Pontifício Instituto Bíblico - Roma Atual Secretário da Pontifícia Comissão Bíblica |
“O
que é o homem” – e a questão de gênero?
Massimo Battaglio
Gionata.org
19-12-2019
Muitas vozes internas à Igreja reivindicam
uma nova acolhida
da homossexualidade e das uniões homossexuais
como
expressão legítima e digna do ser humano
O poderoso
livro publicado nos últimos dias pela Comissão Bíblica da Congregação para a
Doutrina da Fé e intitulado Che cosa è l’uomo? [O que é o
homem?, em tradução livre] está dando o que falar.
De fato, é
um documento estrondoso, no qual os biblistas oficiais da Igreja parecem querer
mudar toda a doutrina sobre a homossexualidade. E, como quem encomendou a obra
foi o papa em pessoa, muitos o estão comentando como a abertura definitiva
de Francisco à modernidade. Outros se limitam a falar dele como “mais
uma façanha de Bergoglio”.
Extraímos
alguns trechos que nos interessam.
É verdade,
reitera-se em “O que é o homem?”, que “a instituição matrimonial,
constituída pela relação estável entre marido e mulher, é constantemente
apresentada como evidente e normativa em toda a tradição bíblica”. Também é
verdade que, na Bíblia, não existem “exemplos de união legalmente
reconhecida entre pessoas do mesmo sexo”.
Contudo,
muitas vozes internas à Igreja reivindicam uma nova acolhida “da homossexualidade
e das uniões homossexuais como expressão legítima e digna do ser humano”.
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"A criação de Adão" Pintor: Michelangelo - Capela Sistina - Vaticano |
Atenção:
não se fala vagamente de acolhida
Até ontem,
“acolher” uma pessoa homossexual muitas vezes significava “fechemos um olho,
Deus também te ama”. Agora, o ex-Santo Ofício registra (e é algo
impressionante) que uma grande parte do pensamento católico considera legítimas
e dignas as uniões LGBT. Repito: muitos cristãos não consideram os atos
homossexuais cometidos em uma relação de casal como pecado.
O que é estrondoso
é que, até ontem, uma afirmação dessas seria seguida por: “Bem, quem
sustenta essas distorções se equivoca e deve ser condenado assim como os gays”.
Agora, ao contrário, diz-se algo bem diferente:
“Uma compreensão nova e mais adequada da pessoa humana
impõe uma radical reserva sobre a exclusiva valorização da união heterossexual
em favor de uma análoga acolhida da homossexualidade e das uniões homossexuais.”
“Além
disso, argumenta-se às vezes que a Bíblia diz pouco ou nada sobre esse tipo
de relação erótica, que, por isso, não deve ser condenada.”
“O exame
exegético realizado sobre os textos do Antigo e do Novo Testamentos trouxe à
tona elementos que devem ser considerados para uma avaliação da
homossexualidade em seus aspectos éticos. Certas formulações dos autores
bíblicos [...] requerem uma interpretação inteligente, que salvaguarde
os valores que o texto sagrado pretende promover, evitando repetir literalmente
aquilo que traz consigo também traços culturais daquele tempo.”
* * * * *
PE. GIANLUCA CARREGA Turim - Itália |
O Pe.
Gianluca Carrega é professor de Novo Testamento na Faculdade Teológica de
Turim e responsável pela mesa diocesana sobre fé e homossexualidade. Ele se diz
confiante: “O adjetivo que melhor descreve o meu sentimento neste momento é
precisamente este: confiante. Eu ainda não li o texto, mas conheço Bovati como
uma pessoa reta e livre” (Bovati, membro da Comissão Bíblica e consultor da
Congregação para a Doutrina da Fé, é o principal autor do texto).
“‘O que é o
homem?’ pode dar indicações menos fundamentalistas do que aquelas a que
estamos acostumados. Estou na expectativa, embora não tenha ilusões.”
Alguns
objetam que, se não existem muitas fontes bíblicas sobre a homossexualidade, a
Escritura, porém, não é a única fonte da revelação. A exegese bíblica, dizem,
deve ser reconciliada com a moral, com a tradição. O que o senhor acha?
Gianluca
Carrega – É claro, também existem as outras disciplinas: moral,
teologia... Mas elas não podem contradizer a Escritura. Onde a Escritura
não parece ter as respostas específicas sobre casos particulares, mesmo assim
ela fornece as orientações. E essas orientações são, acima de tudo, o princípio
da misericórdia, o mandamento do amor. A doutrina ou uma exegese
parcial demais não podem pôr em discussão esses pressupostos.
* * * * *
Franco
Barbero é ex-padre, suspenso na época de Bento XVI justamente por
causa da sua proximidade com as temáticas LGBT. Pergunto-lhe, acima de tudo, o
que ele acha do documento:
“Finalmente,
uma primeira abertura. É preciso ver se são coisas reais e não apenas palavras
um pouco novas. Mas não me surpreende que se tenha chegado a uma reavaliação de
velhas categorias, porque estávamos em um estado de barbárie. Se esses pontos
não forem mudados, a Igreja vai ao fracasso.”
Até
ao fracasso da Igreja?
Franco
Barbero – Certamente. Os bispos alemães estão dando a entender
isso muito bem. Lá, onde os fiéis têm a alternativa protestante à sua
disposição, o risco é justamente este: que abandonem a Igreja Católica
porque a consideram desatualizada, distante. E já estão fazendo isso.
Mas
então é apenas uma questão, digamos assim, política?
Franco
Barbero – É uma questão séria. Esse texto finalmente reflete
sobre como se deve ler a Bíblia. Há anos dizemos isto: ao nos aproximarmos
das Escrituras, devemos depor os óculos do dogma. Não podemos nos aproximar
da Palavra de Deus, esperando que ela confirme as nossas ideias, para que elas
se tornem dogmáticas. Não podemos jogar sobre elas os nossos preconceitos. Devemos
analisá-la e nos deixar inspirar por ela, e não vice-versa. Os judeus
também aprenderam a ver a Bíblia como um texto dinâmico, que fala a cada um no
seu tempo. Nós devemos fazer o mesmo.
* * * * *
SELENE ZORZI Teóloga italiana |
Selene
Zorzi é teóloga, desde sempre estudiosa das temáticas femininas e
LGBT. Ela escreveu textos como “Il Genere di Dio” [O gênero de Deus,
em tradução livre]. E parece menos entusiasmada.
“Nada
disso. Estamos longe de formular reflexões concluídas. Digamos que é um
passo. E me surpreendeu, depois do documento sobre o gênero publicado em
maio pela Congregação para a Educação Católica.”
Na
sua opinião, quais argumentos contribuíram para a formulação e para a
publicação de “O que é o homem”?
Selene
Zorzi – Acima de tudo, o Papa Francisco, que sempre desejou uma
Igreja com várias vozes e aberta ao debate. De várias partes vinham
críticas de incoerência sobre a doutrina. Mais cedo ou mais tarde, deviam ser
ouvidas. Além disso, já existe uma vasta literatura sobre a homossexualidade.
Informações, testemunhos, pesquisas científicas e também teológicas chegam ao
Vaticano. A cúpula da Igreja não pode ignorá-los se não quiserem correr
o risco de testemunhar o velho ou o falso.
Contradições
da doutrina?
Selene
Zorzi – Sim. Quando se afirma, na constituição conciliar Gaudium
et spes, que a sexualidade é um dom, que garante o progresso
pessoal e o destino eterno de cada um dos membros da família etc., e
depois se impede que uma grande quantidade de pessoas viva esse dom. É
uma contradição.
E
por que só agora é que se decidiu enfrentar essas contradições?
Selene
Zorzi – Na realidade, muitos estudos estavam prontos há algum
tempo. Só que, até agora, o clima no Vaticano não era favorável. Agora,
tendo mudado a cúpula e os colaboradores mais próximos, começa a haver
realmente espaço para todos.
* * * * *
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FRANCESCO LEPORE Ex-padre que trabalhou no Vaticano |
Francesco Lepore aprofunda
esse último aspecto. Ele é um ex-padre e trabalhou durante anos no Vaticano,
em estreito contato com os cardeais.
“‘O que
é o homem?’ é um estudo encomendado pelo papa e foi desenvolvido junto à
autoridade mais alta e competente. Portanto, deve ser levado a sério. Pode ser
lido como uma reação às conclusões do Sínodo sobre a Família.”
No
sentido de que é uma espécie de resposta às famosas “dubia” que alguns
purpurados [cardeais] faziam ao papa para pôr em discussão as suas aberturas?
Francesco
Lepore – É uma resposta à Igreja. Uma resposta escritural,
portanto, profunda e, de certa forma, definitiva. De certa forma, também
pode ser entendida como um apoio ao futuro sínodo dos bispos alemães,
que pré-anunciaram que levantarão questões de modo muito claro. Com “O que é o
homem?”, fornecem-se indicações que vão ao seu encontro, colocando algumas
indicações. Portanto, quer-se aproveitar o pedido de atualização, evitando
avanços excessivos.
Acha
que serão possíveis novos desdobramentos?
Francesco
Lepore – Veja, durante muitos séculos, interpretou-se a
questão do véu para as mulheres em um sentido normativo. Até recentemente, para
uma mulher, assistir sem véu a uma ação de culto era considerado um pecado
grave. Por outro lado, São Paulo havia dito isso, os Padres da Igreja haviam
reiterado isso. Depois, entendeu-se que era um preceito filho dos tempos em que
havia sido elaborado, que devia ser relido, talvez em chave simbólica. E
simplesmente caiu em desuso.
* * * * *
Gianni
Geraci é há anos animador e responsável do grupo de cristãos LGBT Il
Guado, de Milão. Ele nos revela alguns pequenos segredos.
“Na
realidade, ‘O que é o homem?’ não faz nada mais do que retomar um
documento de 1993 sobre a ‘Interpretação da Bíblia na Igreja’, no qual
já se dizia que uma abordagem literal aos textos bíblicos era perigosa.
Naquele caso, porém, os membros da Comissão Bíblica (incluindo o cardeal
Martini) não tiveram coragem de dar exemplos. Muito menos de falar de
homossexualidade. Por outro lado, o ar era muito menos salubre para quem dizia
certas coisas na Igreja Católica. Finalmente agora, o clima de medo que
existia até alguns anos atrás na Igreja acabou. Isso permitiu que a
Pontifícia Comissão Bíblica detalhasse livremente os casos em que aquela
leitura fundamentalista produziu os maiores danos.”
E
nós, pessoas LGBT, estávamos entre os mais prejudicados.
Gianni
Geraci – Sim.
Traduzido
do italiano por Luisa Rabolini (1º artigo) e Moisés Sbardelotto
(2º artigo).
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