1º Domingo da Quaresma – Ano C – Homilia
Evangelho: Lucas 4,1-13
Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano
"As Tentações de Cristo" - mosaico da Basílica de São Marcos, em Veneza (Itália) |
Deus é amor que se coloca a
serviço dos homens, o diabo é poder que domina as pessoas
No primeiro domingo da Quaresma, a liturgia apresenta as Tentações do Deserto, segundo a interpretação que Lucas dá no seu Evangelho no capítulo 4.
Lucas 4,1:** «Naquele tempo: Jesus,
repleto do Espírito Santo, voltou do rio Jordão e, pelo Espírito, era conduzido
deserto adentro.»
Essa cena, portanto, se passa após o batismo de Jesus. Depois do batismo, sobre Jesus, desceu o Espírito Santo, o qual converteu Jesus na manifestação visível do perdão e do amor de Deus. O deserto recorda o êxodo de Israel, quando iniciou o caminho para entrar na terra prometida, a partir da escravidão egípcia. Agora, a terra prometida se transformou em uma terra de escravidão da qual Jesus deve libertá-la.
Lucas 4,2a: «Ali, foi tentado pelo diabo, durante quarenta dias.»
A instituição religiosa, no tempo de Jesus, por seus
próprios interesses, por sua própria conveniência, tomou posse de Deus e
Jesus deve libertar o povo de suas garras. A tentação, segundo Lucas, durou
“quarenta dias”. Os números, nos Evangelhos e na Bíblia, nunca devem ser
interpretados de forma aritmética, matemática, mas sempre de modo figurado. O número
quarenta indica uma geração. O evangelista quer dizer-nos: o que vos
apresento agora não diz respeito a um único período da vida de Jesus, mas a toda
a sua existência.
O evangelista nos diz que Jesus foi tentado “pelo diabo”. Aqui, está certo traduzir assim. Mas para nós, “tentação” sempre significa algo que nos leva a fazer o mal. Nada disso se vê aqui. O diabo, veremos mais adiante, não se apresenta como rival de Jesus, mas como seu colaborador. Assim, mais do que tentações, poderíamos falar das seduções do diabo no deserto.
Lucas 4,2b: «Nesses dias, não comeu nada e, no final, teve fome.»
Aqui, não se trata de jejum. Jesus não jejuou, mas “não comeu nada”, diz o evangelista. Ele evita a palavra jejum, porque a fome de Jesus era uma fome diferente. Mais adiante, no Evangelho, Jesus dirá: “Tenho desejado, ardentemente comer convosco esta ceia pascal, antes de padecer” (Lc 22,15). Mas, precisamente, não é uma fome de pão. Pois, ao final, se apresenta o diabo. Quem é o diabo? Enquanto Deus é amor que se coloca a serviço dos homens, o diabo é poder que domina as pessoas.
Lucas 4,3: «O diabo, então, disse-lhe: “Se és filho de Deus, dize a
esta pedra que se transforme em pão”.»
Não se trata, aqui, de um questionamento da filiação divina, que já foi afirmada no batismo, mas significa: “Já que você é filho de Deus, use suas habilidades em seu próprio benefício”. Portanto, use suas capacidades a seu favor.
Lucas 4,4: «Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não se vive somente de pão’”.»
É uma citação do livro de Deuteronômio (8,3). Vemos que a disputa entre Jesus e o diabo assemelha-se a uma disputa teológica entre escribas ou rabinos. De fato, o evangelista a constrói dessa maneira.
Lucas 4,5-6: «O diabo o levou para o alto, mostrou-lhe, num relance,
todos os reinos da terra e lhe disse: “Eu te darei toda esta autoridade, bem
como a riqueza destes reinos, pois a mim foi dada e eu a dou a quem eu quiser”.»
O “alto” indica a condição divina. Esta afirmação que
Lucas atribui ao diabo é terrível.
Não é Deus, mas o diabo quem confere PODER e RIQUEZA.
Assim, aqueles que detêm o poder e a riqueza não os recebem de Deus, mas a sua atividade é diabólica porque a recebem do diabo. É uma denúncia muito séria e típica do evangelista Lucas.
Lucas 4,7-8: «Portanto, se me adorares, tudo será teu”. Jesus respondeu-lhe:
“Está escrito: ‘Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele prestarás culto’”.»
Portanto, o diabo convida Jesus a um ato de idolatria,
mas ele responde, também desta vez, citando o Deuteronômio (6,13 e 10,20).
É a incompatibilidade entre Deus e o poder, entre o amor e o
serviço.
Assim, Jesus rejeita categoricamente a proposta do diabo, essa idolatria do poder.
Lucas 4,9: «Depois, o diabo levou Jesus a Jerusalém e, colocando-o no
ponto mais alto do templo, disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, lança-te daqui
abaixo...”.»
O diabo parece familiarizado com os lugares santos e da Bíblia.
Pois, leva Jesus a Jerusalém e “o colocou no ponto mais alto do templo”.
Por que ele o colocou lá? Porque havia uma tradição religiosa que dizia que
ninguém sabia quem era o Messias. Porém, improvisamente, durante a Festa das Tendas,
ele apareceria no ponto mais alto do templo. Então, o diabo o convida a se
manifestar acrescentando um sinal espetacular.
Notamos que na primeira e terceira sedução, tentação, o diabo diz: “Já que és Filho de Deus”. Para a segunda sedução, aquela do poder e do dinheiro, não precisou perturbar a condição divina, pois é uma tentação a que todos os homens sucumbem, a da corrupção, a do poder e do dinheiro. Mas, aqui, novamente, o diabo lança mão da expressão: “Se és o Filho de Deus”, isto é, “já que tu és o Filho de Deus”.
Lucas 4,10-12: «“... pois está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus anjos
a teu respeito para que te guardem’, e: ‘Nas mãos te carregarão, para
que não firas teu pé em alguma pedra’”. Jesus lhe respondeu: “Também foi
dito: ‘Não tentarás o Senhor, teu Deus’”.»
E o diabo parece ser um grande especialista em Sagrada Escritura, porque, como Jesus rebateu citando frases do livro de Deuteronômio, o diabo rebateu Jesus citando o salmo 91,11-12. A imagem do diabo como um entendido nas Escrituras sagradas é o modo do evangelista nos fazer entender que, aqui, se trata das disputas teológicas que Jesus teve com os rabinos, os escribas, que são os verdadeiros instrumentos do diabo. Jesus respondeu-lhe novamente com o livro do Deuteronômio (6,16 – versão grega). Jesus afirma plena confiança na ação do Pai sem a necessidade de provocá-lo para que a ação aconteça.
Lucas 4,13: «E, terminada toda tentação, o diabo afastou-se dele até o
tempo oportuno.»
O verbo “tentar” aparecerá, então, novamente para descrever
a ação dos doutores da lei. Eis aqueles que são os demônios, esses defensores
da doutrina! Na realidade, o evangelista os denuncia como instrumentos do
diabo.
Qual pode ser esse “tempo oportuno”? Pelos dados que temos no Evangelho,
o tempo oportuno é o momento da cruz, um momento tremendo, dramático do
fim de Jesus, quando serão os líderes do povo que dirão a Jesus: “Salve-se
a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Eleito!” (Lc 23,35b). Ou
seja, deixe-o usar suas habilidades para se salvar.
Mas Jesus tudo o que era, todas as suas forças, todas as suas
energias, todas as suas capacidades nunca as usou para o seu próprio interesse,
mas sempre para o interesse dos outros. Não para conveniência própria, mas para
conveniência dos homens; ele não pensava em sua vida, mas na vida dos outros.
Eis, então, a diferença que emerge entre Deus e o diabo:
Deus é amor que se põe a serviço e coloca o interesse do outro em
primeiro lugar, o diabo é um poder que domina e pensa apenas em sua própria
conveniência.
* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.
** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 4. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2020.
Reflexão PessoalPe. Telmo José Amaral de Figueiredo
“O diabo pode citar as Escrituras
quando isso lhe convém.” (William Shakespeare: 1564-1616 – dramaturgo
e poeta inglês)
A Quaresma, deste ano, abre-se com uma séria advertência a cada um de nós: “Não sejais o diabo dos outros, mas Deus presente na vida de todos!”
O grande risco que as
pessoas religiosas correm é confundir fé com posse e domínio de Deus! Ter fé
não é:
* possuir
Deus;
* ser
fiel a uma doutrina;
* apegar-se
ao que os seres humanos determinam como o certo, o correto;
* ter
práticas cultuais e devocionais!
Ter fé é muito mais que isso! Ter fé é confiar, plenamente, absolutamente, em Deus! É não criar ídolos e colocá-los no lugar do verdadeiro e único Deus! Jesus, em toda a sua vida nesta terra, fez exatamente isso.
Por isso, não há perversão
maior do Evangelho do que apresentar a obra e mensagem de Cristo
consistindo em:
* milagres,
*
mistérios e
*
autoridade.
Com isso, anulamos o
Evangelho, enfraquecemos o que Cristo nos deixou! Confundimos fé com religião!
O resultado, como enfatiza o teólogo espanhol J. M.
Castillo, é:
“Nem a religião conserta este
mundo nem o Evangelho nos torna mais humanos e mais felizes. “
As três SEDUÇÕES, as quais Cristo foi exposto em toda a sua vida, seguem sendo as mesmas as quais a Igreja e cada um dos cristãos estão expostos hoje. Ou seja:
1ª sedução: usar
de nossas capacidades, habilidades a fim de obtermos proveito, vantagens,
privilégios para nós mesmos! O objetivo, a meta jamais é o OUTRO, a pessoa que necessita,
o pobre, o desvalido, o enfermo, o esquecido, o fraco, mas... EU! Apenas, eu
importa! Olhemos ao nosso redor para verificarmos se, por acaso, não é bem isso
que encontramos na sociedade e, pior ainda, dentro de nossa própria Igreja!
2ª sedução: nos
vendermos pelo dinheiro e poder deste mundo! E, como frisa o evangelista Lucas,
isso é coisa do diabo! Poder e riqueza não são dons divinos! Ao contrário do
que muitos falsos pastores e profetas modernos pregam, Deus não é compatível
com poder e riqueza, pelo contrário! Por isso, escandaliza sobremaneira o nosso
povo, perceber o quanto seus guias religiosos (padres, bispos, pastores,
religiosos e religiosas), em alguns casos, são tão apegados à segurança que o
dinheiro, o bem-estar, o conforto e luxo podem lhes proporcionar!
3ª sedução: essa é mais presente e comum do que nunca! É a sedução de agir para obter glória, fama, reconhecimento, elogios, afagos, recompensas emocionais dos mais variados tipos! É claro que o ser humano, todo ele, necessita de reconhecimento, elogio, estímulo e respeito. Aqui, não se trata disso! O diabo propõe que Jesus se atire do ponto mais alto do templo de Jerusalém, a fim de dar um espetáculo, a fim de obter aplausos, a fim provocar manifestações de êxtase no povo, a fim de encurtar seu trabalho de convencimento das pessoas (educação das consciências!), de evangelização e obter, rapidamente, o sucesso! Qualquer semelhança com aquilo que assistimos hoje, em nossa Igreja e nas demais, NÃO É MERO ACASO!
Quem sabe, não seja por tudo isso, que não estejamos conseguindo contagiar, convencer o mundo de que: Só Cristo salva! As pessoas não estão, talvez, percebendo AMOR naquilo que fazemos, pregamos e celebramos!
«Concede-me
Senhor o dom do amor.
O dom
de amar todo o mundo,
de
amar tudo em toda a terra
e,
sobretudo, os homens, nossos irmãos,
que
são, por vezes, tão infelizes.
De
amar também as pessoas felizes,
que
tantas vezes são pobres fantoches.
Dá-nos,
Senhor, a força de amar sobretudo os que não nos amam,
antes
de tudo os que não amam ninguém,
para
os quais, quando a Hora soar, tudo acaba para sempre.
Que a
nossa vida seja o reflexo do Teu amor!
Amar o
próximo que está no cabo do mundo;
amar o
estrangeiro que está ao nosso lado;
consolar,
perdoar, abençoar, estender os braços.
Amar
aqueles que se esgotam
em
correrias inúteis em redor de si mesmos:
fazer
brotar uma fonte no deserto do coração;
libertar
os solitários, erguer os prostrados,
abrir
com um sorriso os corações fechados. Amar, amar...
Então
uma grande primavera transformará a terra
e tudo
em nós reflorirá.»
(Raul
Follereau: 1903 a 1977 - escritor, jornalista e filantropo
francês, conhecido por ter fundado uma associação de luta contra a lepra)
Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – I Domenica di Quaresima – 10 marzo 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 04/03/2022).
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