«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Colocando Deus a serviço do horror!

 Patriarca Kirill da Rússia faz contorcionismos teológicos e éticos para apoiar o impossível

 Marco Politi

Jornalista, ensaísta italiano e vaticanista (Il Fatto Quotidiano: 08-03-2022) 

Patriarca Russo Ortodoxo KIRILL (de costas) e Putin: alinhamento total!

Patriarca demonstra total alinhamento com a política russa

Eles teriam que se encontrar o quanto antes possível. Francisco, pontífice romano e Kirill patriarca de todas as Rússias. A diplomacia do Vaticano estava trabalhando intensamente para organizar um novo encontro cara a cara após aquele histórico em Havana em 2016.

Encontro de Papa Francisco com o Patriarca Kirill da Igreja Russa Ortodoxa, em Cuba, 2016
Aí a situação geopolítica implodiu. Putin invadiu a Ucrânia e Moscou se viu em contraposição frontal com Washington, a União Europeia e a OTAN. Agora, tudo parece suspenso. Havia muita expectativa no domingo pela homilia que o patriarca faria para a “festa do perdão”, em 6 de março, uma celebração importante para a tradição ortodoxa russa. Muitos se perguntavam, na Rússia, mas também internacionalmente e no Vaticano, como o patriarca lidaria com a questão da guerra e eventuais perspectivas de paz.

Sabe-se – e é fato – que o patriarcado de Moscou sempre esteve ao lado do poder estatal. No entanto, a linguagem eclesiástica também é rica em nuances há séculos...

Portanto, uma atmosfera de suspense acompanhava a intervenção de Kirill. 

A homilia foi desastrosa. Nem uma palavra sobre a entrada de tropas russas na Ucrânia e sobre o conflito em curso em torno de suas principais cidades. O patriarca só falou do Donbass.

Por oito anos houve tentativas de destruir o que existe no Donbass”, exclamou. “Quem ataca a Ucrânia hoje, onde [verificam-se] oito anos de supressão e extermínio de pessoas no Donbass, oito anos de sofrimento e o mundo inteiro está em silêncio - o que isso significa?”,

... continuou em total alinhamento com a política de Putin (que por sua vez rotulou a invasão desde o início como “operação militar especial”). 

Num crescendo surreal, o patriarca acabou mencionando a palavra “guerra”. Sim, está ocorrendo uma guerra, declarou ele, e é a guerra lançada pelas poderosas forças mundiais contra os crentes ortodoxos para impor o credo homossexual, para impor o orgulho gay. Exige-se uma prova de fidelidade a um complexo de forças prepotentes que defendem o consumo excessivo e uma aparente felicidade e se disfarçam com palavras como “liberdade”. 

Patriarca Kirill, durante celebração de domingo, 6 de março de 2022, na Catedral Russo-Ortodoxa de Moscou: ataque aos gays, nenhuma condenação à guerra!

“Aqueles que reivindicam o poder mundial”, enfatizou Kirill, pretendem uma prova de submissão, uma “prova muito simples e ao mesmo tempo aterrorizante: trata-se de um desfile do orgulho gay”. E quem não se submete é marginalizado pelo “clube” internacional. 

Aqui está o ponto - parece que pode ser entendido – sobre o que todo o planeta está prendendo a respiração nestas horas. De Washington a Pequim, de Bruxelas a Brasília, a Tóquio. Existe um pecado alimentado por paradas de orgulho gays, um pecado “condenado pela Palavra de Deus”, que Deus, embora perdoando o pecador como indivíduo, absolutamente não pode aceitar e que os verdadeiros crentes jamais poderão tolerar como padrão de vida. 

Kirill foi lapidar: “Se a humanidade aceitar que o pecado não é uma violação da lei de Deus... então a civilização humana terminará aí”. Culpa mortal das paradas do orgulho gay é demonstrar que o pecado seria apenas uma variante do comportamento humano. Sobre isso, no ano da graça de 2022, com o espectro do conflito nuclear pairando sobre os povos, obviamente não se pode transigir! 

No entanto, na Igreja Ortodoxa russa se manifestam também fermentos muito diferentes: 236 sacerdotes e diáconos russos escreveram recentemente uma carta ao Patriarca Kirill, denunciando a guerra “fratricida” em andamento na Ucrânia e pedindo um empenho com a reconciliação e um cessar-fogo. Para as relações ecumênicas e o processo de aproximação entre a Igreja de Roma e a Igreja de Moscou, o texto e o tom da homilia patriarcal representam um choque. 

Epifânio I, primaz da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, comparou o presidente russo Vladimir Putin ao Anticristo e fez uma crítica ao chefe da Igreja Ortodoxa Russa

No domingo, o Papa Francisco disse algo bem diferente.

“Na Ucrânia - recordou – se derramam rios de sangue e lágrimas. Não se trata apenas de uma operação militar, mas de uma guerra, que semeia morte, destruição e miséria. As vítimas são cada vez mais numerosas, assim como as pessoas em fuga… Naquele país martirizado, a necessidade de assistência humanitária está crescendo dramaticamente de hora em hora”. São necessários autênticos corredores humanitários para oferecer a salvação aos “nossos irmãos e irmãs oprimidos pelas bombas e pelo medo”.

Dois cardeais, Konrad Krajewski e Michael Czerny, foram enviados pelo papa à Polônia e à Hungria com a missão de entrar no território ucraniano e verificar diretamente a situação, também em vista do aumento da ajuda humanitária. O Cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin reiterou a disponibilidade da Santa Sé de apoiar novas iniciativas diplomáticas. É urgente, ressaltou o cardeal, “parar as armas, parar os combates, mas sobretudo evitar uma escalada”. E também deve ser bloqueada em todas as direções a tendência para uma “escalada verbal” que corre o risco de levar a efeitos militares extremamente arriscados. Assim Parolin se manifestou na emissora dos bispos TV2000. 

Dois cardeais enviados pelo Papa: KONRAD KRAJEWISK (à esquerda) à Polônia e MICHAEL CZERNY (à direita) à Hungria - Papa oferece-se para mediar negociações de paz

O L’Osservatore Romano coloca na primeira página a eloquente fotografia de um cobertor estendido no chão de onde emerge o braço de um homem morto, com a mão encolhida e suja de sangue. O título é seco. “Rios de sangue e lágrimas. PAREM!”. Ao lado da imagem está o editorial intitulado “Chamar as coisas pelo seu nome”. Aquela na Ucrânia - está escrito - não é uma operação militar, mas uma guerra. Não pode valer subterfúgio verbal para mascarar a cruel realidade dos fatos. 

No domingo, o Patriarca Kirill evocou uma luta “metafísica” entre aqueles que querem impor a normalidade do pecado homossexual e aqueles que resistem. É preciso rezar, continuou ele, para que o povo ortodoxo de Donbass preserve a sua fé e não sucumba à tentação. “Devemos rezar para que a paz chegue o mais rápido possível, para que o sangue de nossos irmãos e irmãs pare de ser derramado e para que o Senhor tenha misericórdia da terra de Donbass…”. No domingo, Francisco frisou:

“Imploro que cessem os ataques armados e que a negociação prevaleça – e também prevaleça o bom senso. E voltemos a respeitar o direito internacional!”.

Nesse cenário, a divergência hoje parece total. 

Teologia “ad usum Cyrilli”: formas de discurso eclesial em tempo de guerra

 Andrea Grillo

Teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo (Roma) – blog “Come Se Non”: 07-03-2022 

PATRIARCA KIRILL, em celebração na Catedral russo-ortodoxa de Moscou, domingo, 6 de março de 2022 - justificando o ato de guerra de seu país

Uma teologia doente para justificar o injustificável

Pode ser útil examinar cuidadosamente o Sermão de domingo do Patriarca Kirill [da Rússia], julgando-o no nível puramente teológico. Isso poderia ajudar a avaliar tanto as reações escandalizadas que suscitou em muitos leitores, tanto os pressupostos teóricos sobre os quais se alicerça, quanto a qualidade teológica e eclesial de que é portador. Gostaria de distinguir os diferentes planos de avaliação, procurando respeitar o seu lugar numa tradição diferente da católica (a russo-ortodoxa), mas também captando as profundas afinidades com uma parcela não marginal da mens católica. 

Afinal, alguns “lugares-comuns” do discurso teológico são paralelos às diferentes tradições e igualmente apreciáveis ou questionáveis. Cada plano que examinarei corresponde a um “uso” mais ou menos infundado ou plausível da teologia. E se adapta com certa aproximação ao discurso que foi proferido domingo em Moscou, no décimo dia da guerra, na Catedral da capital da Rússia, país que está destruindo militarmente cidades inteiras da Ucrânia, com milhares de soldados e civis que sucumbem nos confrontos. 

Charge trazendo Putin, à cavalo sobre o Patriarca russo-ortodoxo Kirill

Teologia de corte 

É uma variante da teologia que se situa diretamente no plano da “gestão da autoridade”. Para que serve a teologia neste caso? Uma vez estabelecida a “escolha política” a ser assumida, os argumentos teológicos mais fortes são encontrados por parte da Igreja para justificá-la. Isso é fazer “teologia de corte”: a teologia é reduzida a um arsenal de argumentos, com maior ou menor autoridade, para sustentar uma determinada posição política, social, moral. Quase sempre, esta escolha coincide com uma teologia de “visões curtas”, porque deixa à contingência histórica do momento, no nosso caso a guerra na Ucrânia a justificar, uma autoridade excessiva e uma relevância exagerada, que esmaga toda a tradição e a reduz à mera função (e ficção). 

Então, poderia ser que o autor do discurso tenha se perguntado: como posso justificar tal “operação especial”? Caso fosse possível demonstrar que essa “operação” não é uma guerra, mas uma “luta entre o bem e o mal”, e que o mal é a modernização das formas de vida e dos costumes, bastará evocar o espectro das “marchas do orgulho gay” para justificar tudo, com o intuito de impedir o fim da civilização. Se for colocada no prato a hipótese de perder tudo e, mais ainda, de perder a identidade, toda reação, mesmo a mais desumana, poderá parecer lícita e também deverá ser abençoada. A modernidade é amaldiçoada nas marchas pela dignidade dos sujeitos, enquanto é abençoada nas bombas de fragmentação contra escolas ou nos mísseis contra prédios de apartamentos, que defendem a honra violada, mas tornam os homens e as mulheres meros objetos negligenciáveis. 

Ativistas dos direitos gays marcham em São Petersburgo, Rússia, em 1º de maio de 2013, durante sua manifestação contra uma lei controversa na cidade que os ativistas viam como uma violação dos direitos dos gays. | OLGA MALTSEVA/AFP via Getty Images

Teologia anestésica 

A teologia pode se tornar a mais cômica e a mais trágica das ciências, porque permite trabalhar em um nível tão profundo das experiências que, se mal manejada, produz danos e equívocos intermináveis. Pode ter um efeito anestésico muito poderoso.

A teologia pode ser um escudo e uma zombaria muito poderosa.

Pode pretender distrair dos tiros de canhão contra as casas, dos recém-nascidos destruídos por estilhaços em seus carrinhos, dos tiros de morteiro que aniquilam famílias inteiras, dos franco-atiradores que abatem civis em fuga com as malas, e permite que você fale sobre a primavera, sobre a Quaresma e sobre o verdadeiro problema da nossa época: o orgulho gay! 

Quando a Grande Quadragésima se torna um Enorme Álibi, uma Majestosa Tela, um Esconderijo Monumental, um Imenso Para-raios, então aquela pedra de moinho pendurada no pescoço de que fala o Evangelho poderia ser reconhecida como a única palavra sábia.

Quando a teologia distorce o olhar até este ponto, quando chama o bem de mal e o mal de bem, pode se revelar uma PATOLOGIA GRAVE, uma distorção que desfigura, tanto mais se provém os líderes de uma Igreja.

Quando um Patriarca inicia assim a sua Quadragésima, para os demais 40 dias o que ele terá que inventar a fim de distrair a atenção comum do escândalo do mal organizado, perpetrado e infligido ao próximo indefeso? 

O uso inadequado transforma a teologia em “ópio”: não como teoria geral da religião, mas pelo uso inadequado de categorias sem equilíbrio e sem proporção, por meio de palavras irresponsáveis de um vértice, que se mostra bem abaixo do nível mínimo da decência. Teologicamente, isso é um desastre total. Tal teologia é “anestésica” em dois sentidos:

a) entorpece os sentidos e

b) castra toda sensibilidade, torna cegos e surdos, sem coração e sem sentimentos.

O monstro que você se torna é o produto da má teologia que você frequenta e alimenta.

Nesta teologia há um grande poder que não te perdoa: se o provocas com teus joguinhos de posição, ele te agarra e te destrói. 

Teologia arbitrária 

Chegamos assim ao último nível. Uma teologia de Deus que é amor, e que justamente a tradição ortodoxa conhece e sabe expressar nos mínimos detalhes, com toda a poesia de uma língua e de uma expressão poderosa e inesquecível, como pode chegar a reduzir este Deus do mistério e da divina liturgia a um legislador escrupuloso, carrancudo e armado de balança de precisão, que legisla e julga os erros como um magistrado inflexível, distante e vingativo?

Na “festa do perdão”, se poderia evocar a “vingança contra os gays” como o horizonte sério de um discurso a uma nação que há dias leva a guerra a outra nação, com tantos mortos e feridos?

Isso realmente parece ser um exercício de teologia desajeitado e sem retidão, como se quem que o propõe fosse ao mesmo tempo cego e alucinado, desorientado e teleguiado, prepotente e escravo do poder, sem respeito e sem vergonha. 

Um princípio geral sempre vale, para todo pastor e para todo teólogo: se você não mantiver o equilíbrio, se você não considerar todos os lados da questão, se você não disser “toda a verdade”, você transforma coisas secundárias em primárias e assim você afunda para o fundo, no invisível e no disponível, aquele corpo carbonizado que clama ao céu por vingança.

O fato de uma Igreja tão importante se curvar tão totalmente diante do poder das armas, e que até mesmo fortalece teologicamente a sua violência, é um fato gravíssimo.

É a negação da teologia. É teologia negada e violada. É contratestemunho e abuso de funções, de forma escandalosa. 

Bem-aventurados os aflitos e bem-aventurados os perseguidos”: Sua Beatitude [Kirill], que sobre bem-aventurados deveria entender, pelo menos por nome, prefere justificar os perseguidores e abençoar quem ataca. Precisamente por causa dessas contradições, a teologia, quando sai do controle, pode se tornar a mais cômica e a mais trágica das palavras. 

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 9 de março de 2022 – Internet: clique aqui e aqui (Acesso em: 09/03/2022).

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