Muitos preferem se fazer de cegos
A gente escolhe não ver
Mônica Sodré
Cientista Política e diretora-executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps)
E você? Já decidiu do que vai se esquecer
hoje?
Há sobre todas as coisas uma ética, uma moral e um costume. Há os que se acostumam com tudo.
Pero Vaz de Caminha, quando chegou do lado de cá dos trópicos, definiu esta como a terra em que, se plantando, tudo dá. 522 anos depois, a definição da máxima pode perfeitamente ser alterada para “esta é a terra em que a tudo se acostuma”.
Aqui, a vida segue todos os dias.
Quando se decide que os planos de saúde são obrigados a cumprir estritamente o mínimo, não pelo menos o mínimo.
Quando em ano de eleição o incumbente faz rolês de moto em todos os cantos do país com dinheiro dos cidadãos, ao custo de mais de R$ 6 milhões, e a gente ignora a propaganda eleitoral antecipada.
Quando 172 pessoas desaparecem a cada dia no Brasil —mais de 60 mil por ano. Para se ter uma dimensão, é como se quase uma cidade de Brumadinho (MG) sumisse duas vezes. A cada ano. “Ah, Brumadinho, você se lembra?”
Quando a gente acha normal e segue vivendo depois de o Ministério da Saúde — que deveria cuidar da saúde — dizer que vai investigar pessoas que recorrem ao aborto, mesmo nos casos em que a lei permite. Isso num país em que menos de 3% dos casos de estupro são reportados, que agora acompanha o drama de uma criança de 11 anos impedida de fazê-lo e em que parte da nação opera na lei dos “20 quilos”: se tem mais de 20 quilos, já se está pronto para a vida sexual.
Quando gente eleita, que deveria ter em conta os interesses do país, questiona os procedimentos que fazem uma eleição possível e antecipa que não vai aceitar nenhum resultado que não lhe seja favorável e voltamos aos tempos do exercício do poder absoluto.
Quando assistimos à transformação das Forças Armadas, de responsáveis pela logística das eleições, em garantidoras do processo eleitoral. Num país em que a democracia, interrompida anteriormente pelas Forças Armadas, é mais nova até do que esta que vos escreve.
Quando um em cada dois brasileiros não comeu hoje, não sabe se vai comer ou comeu menos que ontem.
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TIAGO BASTOS DE SANTANA, 24 anos de idade, pede comida em um cruzamento no bairro da Mooca, em São Paulo, capital. Cena cada vez mais comum! Foto: Karime Xavier / Folhapress |
Quando uma vereadora negra, uma das poucas mulheres na política nacional, é assassinada com tiros no rosto e, quatro anos depois, não se tem a menor ideia de quem encomendou o crime e nenhum responsável foi punido.
Quando o número de licenças para armas cresce 325% em três anos e 31 mudanças, todas de caráter flexibilizador, foram feitas nas leis de armas no mesmo período.
Quando um indigenista e um jornalista, ambos a serviço do interesse público, desaparecem no exercício de seus trabalhos, após receberem ameaças de morte, e leva mais de 24 horas para que as autoridades comecem a se mexer.
Quando 11 dias depois aceita-se a justificativa de que foi um crime comum, cometido por dois pescadores, deixando intacta toda a rede de criminalidade que acomete o território há anos e que saqueia, a olhos vistos e de maneira ilegal, o patrimônio público em nome de interesses privados.
A gente escolhe não ver.
Há sobre todas as coisas uma ética, uma moral e um costume.
E justamente aqui reside a nossa definição como povo: extinguiram-se
a ética e a moral.
Deixamos prevalecer o costume de nos acostumarmos com tudo. E de fingir normalidade. Todos os dias.
E você? Já escolheu do que vai se esquecer hoje?
Fonte: Folha de S. Paulo – TENDÊNCIAS / DEBATES – Domingo, 26 de junho de 2022 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (Acesso em: 27/06/2022).
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