Missa da Noite de Natal – Ano A – Homilia
Evangelho: Lucas 2,1-14
Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas)
A ternura e a bondade dominaram a escuridão e
conquistaram o coração humano
Em uma homilia durante a Missa da Vigília de Natal, 24 de dezembro de 2018, na catedral de Codroipo, município italiano da região do Friuli-Venezia Giulia, província de Udine, o estudioso bíblico Alberto Maggi descreve a festa de Natal da seguinte forma:
«Tão magro e seco é o que os Evangelhos escrevem sobre o Natal, como
se tornou melosa a forma de apresentá-lo e vivê-lo. O nascimento de Jesus
é, de fato, como se untado em um melaço adocicado, que corre o risco de
atolar a verdade evangélica em um belo conto de fadas que toca as cordas
dos sentimentos, mas que pouco ou nenhum efeito tem sobre a vida de quem crê».
Palavras
fortes, claro, mas eu as sinto tão verdadeiras. Pensando nas muitas conversas
das últimas semanas, estou convencido de que é por causa desse doce melaço que
para muitos o Natal se tornou um feriado maldito. Vazio de qualquer
referência evangélica, resta apenas a lembrança amarga das alegrias
passadas, separações dolorosas, doenças e lutos. E os médicos nessas horas têm
trabalho adicional porque muitas vezes essas feridas da alma são transferidas
para o corpo.
Em vez disso, o que é apresentado nos evangelhos é o oposto da história de um feitiço infantil. É necessário, portanto, proceder a uma eficaz operação de limpeza, para atingir o sentido profundo da narração evangélica, fazendo-a ressurgir daquele acúmulo de lendas, tradições, devoções, folclore, que a sepultaram. O biblista continua: «A luz que surge depois da obra de restauração é o anúncio da realização do desígnio de Deus para a humanidade: “E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”» (Jo 1,14).
Lucas
2,1-2:** «Naqueles dias foi publicado um
decreto do imperador Augusto ordenando o recenseamento do mundo inteiro. Esse
primeiro recenseamento aconteceu quando Quirino era governador da Síria.»
Esta é a nova canção de Natal que traz os traços de uma revolta, uma revolta não violenta, contra os poderosos e valentões deste mundo, como César Augusto que conta os homens (= recenseamento) para conseguir dinheiro e poder.
Lucas
2,3-5: «Todos
iam registrar-se, cada um em sua própria cidade. Também José – que era da casa
e da linhagem de Davi – subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à
cidade de Davi, chamada Belém, para registrar-se com Maria, sua esposa, que
estava grávida.»
PRIMEIRA
SURPRESA: Lucas escreve que neste contexto de controle social «José
subiu da Galileia à cidade de Davi, chamada Belém». Quem conhece a Bíblia
sabe que a cidade de Davi é Jerusalém, a capital onde o grande rei
iniciou sua monarquia. Mas Lucas discorda. Afirma que a cidade de
Davi é Belém. Sim, porque em Belém Davi era pastor, em Jerusalém era
rei. Quer deixar claro que aquele que está para nascer será descendente de
Davi, mas não terá as características de um rei, mas sim de um pastor. E isso
é subversivo, se você pensar que os rabinos pregavam que no dia do juízo o
Messias varreria da terra todos os ímpios e, antes de tudo, os pastores, porque
eram considerados homens muito livres, bandidos.
E nesta
versão da cidade de Davi, Deus manifesta seu poder por meio do evento “invisível”
do nascimento de uma criança.
Um acontecimento insignificante que brota logo no censo, mostrando a
força mansa, mas implacável do tenro broto de Jessé que consegue erguer o solo
mais resistente.
E, aqui, está o julgamento histórico. Se o homem divinizado, César Augusto, mortifica os homens verificando-os e contando-os, o Deus feito homem garantirá que todos os homens sejam colocados em posição de se tornarem plenamente humanos. Dele aprenderão a viver neste mundo radicalizando o bem.
Lucas
2,6-7: «Quando
estavam ali, completaram-se os dias de ela dar à luz. Ela deu à luz o seu
filho, primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura, porque não
havia lugar para eles na hospedaria.»
O
nascimento de Jesus em Belém é narrado por Lucas como uma história de
resiliência. José e Maria são obrigados a submeter-se aos caprichos do
imperador, fazem uma viagem cansativa e perigosa, adaptam-se a um abrigo
improvisado, passam a noite com pastores e animais foragidos. No entanto, esses
eventos adversos não os irritam, pelo contrário, os impulsionam a fazer todo o
possível a partir de sua pobreza, invisibilidade social, falta de poder
para mudar as coisas.
E, assim, brota a força branda, mas poderosa, aquela que nasce da fraqueza, de ter sofrido abusos, mas sem se deixar dobrar. É assim que o bem começa a crescer no ritmo da vida de uma criança, até se tornar implacável, um contrapoder que se mostrará o único capaz de mudar as coisas.
Lucas
2,8-14: «Na
região, havia pastores que passavam a noite no campo, tomando conta do rebanho.
Um anjo do Senhor apresentou-se a eles e a glória do Senhor os envolveu de luz.
Eles ficaram tomados de grande temor. O anjo então lhes disse: “Não temais! Eu
vos anuncio uma grande alegria, que será também a de todo o povo: hoje, na
cidade de Davi, nasceu para vós o Salvador, que é o Cristo Senhor! E isto vos
servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deitado
numa manjedoura”. De repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste
louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e na terra,
paz a todos por ele amados!”»
Caríssimos,
o Natal ensina-nos a procurar o futuro na história dos pequeninos deste
mundo, entre os invisíveis, os rejeitados, os descartados. Ali está o
verdadeiro laboratório do qual depende o destino da humanidade. E é nesses
mundos paralelos que devemos buscar nossas alianças.
Então o
Natal nos ensina que o verdadeiro poder está sempre desarmado. A difusão de
episódios de protesto cada vez mais belicosos e violentos volta a encher
as páginas dos noticiários:
* grupos de militantes neonazistas;
* grupos de ataque aos membros da comunidade
LGBTQIAP+;***
* feminicídios;
* estudantes que disparam e matam nas escolas;
* grupos racistas que atacam, ferem e matam
moradores em condição de rua, indígenas, etc.
Na web
(= internet), nas redes sociais e nos jornais, as linguagens estão cada vez
mais ferozes. Assim, acabamos nos dilacerando, talvez em nome de uma
reivindicação extrema de liberdade. Se olharmos de perto. O exército dos
indignados muitas vezes descarrega apenas uma raiva surda, mais filha do
vazio do que da injustiça.
Também de Belém começa uma revolução, mas construtiva, que acredita
na força da mansidão, na dignidade da pessoa e na onipotência dos sentimentos
que, se cultivados, podem habitar o seu coração.
E aqui
está o SEGUNDO MILAGRE: no meio da noite, figura de todas as noites da
história da humanidade, a ternura se manifesta. Ternura precisamente
onde poderiam ter surgido a arrogância, a violência, a indiferença e a maldade.
Lucas nos conta não só o cumprimento do mistério de Deus, mas também o
cumprimento do mistério do homem nas atitudes de Maria e José.
Assim, o nascimento do Salvador molda um modo de vida, dá forma à
humanidade.
Em
Maria, o acolhimento do Filho torna-se uma série de gestos simples, mas
inequívocos: deita-o na manjedoura, envolve-o em panos, oferece-o ao mundo no
encontro de quem quer aproximar-se dela.
Somos
levados a pensar que esta ternura instintiva se
torna o fundamento da humanidade de Jesus e, se pensarmos bem, o
fundamento de todo o seu Evangelho.
Assim é o milagre humano que ilumina a noite de Belém, a força
silenciosa que permite que o milagre divino permaneça na história e não se
perca na noite.
Se isso for verdade, então entendemos que celebrar o Natal do Evangelho nos educa a sermos mais humanos, a evitar a indiferença e a praticar a mansidão. E se aqueles que vão se cumprimentar nestas horas realmente o celebrassem sob esta luz, talvez houvesse menos desespero ao nosso redor.
Sim,
porque a mansidão e a ternura evangélica se opõem a qualquer sentimentalismo
vazio, pois pedem para se tornar um gesto no cuidado da vida, na sensibilidade
por tudo o que é frágil e vulnerável.
Tenha
cuidado para não ceder à poesia novamente, no entanto. A ternura não é apenas a
atitude de uma mãe para com seu filho. A ternura é constitutiva do amor
adulto e maduro. É o aspecto visível daquele amor que – como diz São Paulo –
não inveja, não busca os próprios interesses, não mente, não falta respeito,
não se vangloria, não se orgulha, não humilha, não despreza, pelo contrário,
tudo lamenta, tudo acredita, tudo espera, tudo suporta (cf. 1Cor 13,4-7).
A
ternura é o destilado desse amor que nunca vai acabar. Mas é um destilado
poderoso. Em Belém cumpriu-se a palavra da Escritura:
«18,14 De fato, quando um tranquilo silêncio envolvia todas
as coisas e a noite chegava ao meio do seu curso, 18,15 a tua
Palavra todo-poderosa, vinda do céu, do seu trono real, precipitou-se... ao
meio de uma terra condenada ao extermínio. 19,6 Então, a criação inteira, obediente às tuas ordens,
foi remodelada em cada espécie de seres, como no princípio, para que teus
filhos fossem preservados ilesos.» (Sb 18,14-15; 19,6)
E assim continuará a acontecer em cada geração, até ao fim dos tempos, onde a Palavra mansa, mas poderosa será acolhida e vivida com inexorável ternura.
*
Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.
**
Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução
oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed.
Brasília (DF): Edições CNBB, 2021.
*** A sigla LGBTQIAP+ significa: L = lésbica; G = gay; B = bissexual; T = transgênero, travesti e transexuais; Q = queer; I = intersexual; A = assexual; P = pansexual; + = o sinal de mais está aqui para indicar que a comunidade inclui mais expressões de gênero e de sexualidade, como o arromantismo (não ter desejo de viver um romance) e o poliamor (cultivar vários relacionamentos amorosos ao mesmo tempo).
«Senhor Jesus, nesta noite santa
contemplamos o rosto de Deus no teu rosto, o teu esplendor recorda-nos o nosso
antigo esplendor e antecipa e assegura-nos que, pela tua paixão, morte e
ressurreição, também nós, um dia, teremos parte nesse brilho e graça. Pelo teu
dom. E hoje nós, inconscientes como os pastores, chegamos à gruta para
observar, para querer compreender, para tocar com as mãos o anúncio do anjo...
Diante de tanta bondade e luz, fica muito claro para nós o que devemos fazer:
tirar os sapatos, vestir a veste branca da graça, converter-nos e depois...
comportar-nos como Maria: contemplar-te com os olhos em adoração, alimentar-nos
com os olhos e o coração do teu Corpo santo que alimenta e dá vida, e... parar
para apreciar todas essas coisas, ponderando-as em nossos corações. Depois e só
depois de nos teres fortalecido por te teres feito nosso dom, dom da graça e
instrumento de vida nova, também nós somos chamados, com os pastores, a
regressar à nossa pálida vida quotidiana "glorificando e louvando a Deus
por tudo o que eles tinham ouvido e visto”. Amém.»
(Fonte: Marino Gobbin. Natale del Signore: orazione finale. In: CILIA, Anthony
O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico A.
Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 73-74.)
Fonte: Collaborazione Pastorale di Codroipo – Omelia nella Notte di Natale – Duomo di Codroipo, 24 dicembre 2018 – Internet: clique aqui (Acesso em: 15/12/2022).
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