O mito da meritocracia
Um elevador sempre em manutenção
Paul Pasquali
Sociólogo francês, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (sigla em francês: CNRS) e autor de Héritocratie. Les élites, les grandes écoles et les mésaventures du mérite (1870-2020) [Heritocracia. As elites, as grandes escolas e as desventuras do mérito (1870-2020)], Paris, La Découverte, 2021
PAUL PASQUALI |
Em geral concentrado no círculo social que
envolve as elites, o debate sobre meritocracia tem um ponto cego: a sorte do um
terço da população menos escolarizada
Raras são as fórmulas que resistem ao tempo. Forjadas durante a campanha presidencial de 1995 pelo dirigente liberal Alain Madelin, a “pane do elevador social” atravessou sem problema as últimas décadas. “O elevador social funciona pior hoje do que há cinquenta anos”, declarou o presidente da República francês, Emmanuel Macron, em viagem a Nantes para anunciar a revisão da Escola Nacional de Administração (ENA).[1]
Em sua formulação inicial, o “elevador social em pane” não designava nem o mundinho das elites nem o hermetismo social das grandes escolas. Com essas palavras, Madelin denunciava os obstáculos à liberdade de empreender, ligados, segundo ele, às dificuldades burocráticas e ao “igualitarismo” da esquerda. Vindo de uma família modesta (pai operário, mãe datilógrafa), o presidente do partido Democracia Liberal e ex-membro, nos anos 1960, do grupo de extrema direita Ocidente sonhava com uma França do self-made man e de capitães industriais seguindo o modelo de crescimento adotado pelos Estados Unidos. Madelin reativava assim o tema da “sociedade bloqueada”, sustentado 25 anos antes pelo sociólogo Michel Crozier – ele também bastante liberal.
A metáfora do elevador conheceu uma espécie de abordagem menos favorável do que a da “fratura social”, expressão soprada no ouvido do candidato Jacques Chirac pelo demógrafo Emmanuel Todd, em 1994. Foi sob a “esquerda plural” (1997-2002) que ela se tornou um lugar-comum designando diretamente a incapacidade do sistema escolar em lutar contra as desigualdades sociais e, cada vez mais, o funil do recrutamento das grandes escolas. Para os socialistas, tratava-se de reconhecer o tamanho de problemas como a reprodução social e a endogamia das elites resumidas pela metáfora, sem utilizar palavrões como “classes sociais” e “dominação”. Foi inclusive Claude Allègre, então ministro da Educação Nacional e do Ensino Superior, que lançou em 1998 a primeira medida de abertura, criando bolsas de mérito para estudantes titulares da menção “bom” ou “muito bom” que desejassem ingressar na ENA, na Escola Nacional de Magistratura (ENM), nas faculdades de Medicina ou em outras escolas muito seletivas. A partir dos anos 2000, a “pane no elevador social” se estendeu progressivamente a todo o campo político. Assunto recorrente na mídia e tema de campanha, era possível encontrá-la no centro do discurso de Nicolas Sarkozy em 2007 e de Macron dez anos depois.
Essa ideia, porém, se instalou como um mal-entendido. Se os debates recorrentes sobre a “meritocracia à francesa” pareciam frequentemente falsos, era porque confundiam dois fenômenos distintos na realidade. Quando se focaliza o topo da pirâmide, deixa-se a base na sombra. Fala-se de “elevador social” para designar o pequeno número de crianças dos meios populares que conseguem ascender às grandes escolas e às posições de poder mais do que para evocar as chances de mobilidade profissional do terço menos diplomado da população.
Essa confusão, combinada a uma representação idealizada dos Trinta Gloriosos (1945-1975), alimentou o mito de uma “era de ouro meritocrática”. “Antigamente”, as grandes escolas teriam recompensado todos os talentos e os esforços sem distinção de origem ou fortuna. Antigos bolsistas, de Édouard Herriot a Georges Pompidou, seriam a prova viva. A memória coletiva evacua assim a forte segregação que, até os anos 1950-1960, mantinha a escola do povo (o ensino primário e o primário superior) bem longe da escola dos ricos (o ensino secundário e o superior, ao qual apenas raros alunos dos meios populares tinham acesso).
Uma pesquisa hoje esquecida
Uma vasta pesquisa hoje esquecida sobre o “sucesso social”, lançada pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined) no fim dos anos 1950, dissipa essa ilusão.[2] Publicado em 1961 sob a direção de Alain Girard, sociólogo conhecido por seus trabalhos pioneiros sobre a homogamia social, o estudo descreve com precisão as elites francesas pertencendo às gerações nascidas sob a Terceira República (1870-1940) e que chegaram ao apogeu de suas carreiras no início da Quarta (1946-1958). Um dos tópicos da pesquisa dizia respeito às personalidades que ocupavam as posições mais elevadas em suas áreas. Majoritariamente parisienses, 3% delas tinham pai operário; 4%, assalariado; e 6%, agricultor; contra 23% que tinham pai funcionário público superior (professor do ensino superior ou médio, principalmente); 22%, advogado, médico ou artista; e 17%, empresário. No total, 68% dessas elites provinham dos 5% das categorias sociais mais altas. Nesse período anterior à massificação escolar, 85% dessas elites tinham estudo superior: um quarto na faculdade de Direito e no Instituto de Estudos Políticos de Paris, um quarto nas grandes escolas mais reconhecidas, a Escola Normal Superior da Rua de Ulm (8%), Central (6%), as Minas (4%), HEC (4%), X (3%) ou Saint-Cyr (2%).
Outra parte da pesquisa se
concentrava nos ex-alunos das grandes escolas: normalistas da Rua de Ulm,
politécnicos, centrais, alunos da Agro ou da ENA. Aqui as tendências eram ainda
mais claras. Maciçamente parisienses no conjunto, dois terços desses
diplomados provinham das classes favorecidas, ou seja, treze vezes mais que na
população. Apenas 2% deles eram filhos de operários; 6%, de agricultores; e
4,5%, de assalariados – as três categorias que formavam a imensa maioria do
país. A título de comparação, segundo um estudo recente, 83% dos estudantes das
quatro escolas mais cotadas (ENS Ulm, X, HEC e Sciences Po Paris) provêm dos
meios favorecidos, e 4,5%, dos meios desfavorecidos.[3] Quanto
aos antigos vindos das classes médias, eles provinham principalmente de famílias
de comerciantes (7%) e de professores primários (4%), mais do que de famílias
de artesãos (2%).
Nessa época, metade dos alunos que entravam no ENSINO
FUNDAMENTAL 2 deixava a escola antes de chegar ao MÉDIO, e apenas 10% dos
alunos dos meios populares entravam no FUNDAMENTAL 2, contra 80% a 90%
dos de meios superiores.
Os autores da pesquisa faziam esta constatação:
“As elites são recrutadas não no conjunto da população, mas em
grande parte em grupos muito restritos, já no alto da hierarquia social”.
Até mesmo na Rua de Ulm, um templo do elitismo republicano e, de fato, levemente mais aberta socialmente que as outras escolas de mesmo nível, os filhos de operários representavam apenas 2% dos alunos. Quanto aos politécnicos, a pesquisa mostra que a parcela de filhos de operários na instituição era estável desde a criação do estabelecimento… em 1794! Cerca de 1%, proporção observada hoje. Mesmo a jovem ENA, criada em 1945 com o objetivo de democratizar a cúpula do Estado, recrutava “como as outras grandes escolas […] na parte mais favorecida da população”. Apenas os pequenos funcionários aprovados no concurso interno pegavam um “elevador” – já – em mau estado. Três décadas antes da “pane no elevador social”, essa metáfora já apontava um problema cujos dados e respostas mudaram com o tempo, mas não a amplitude nem a recorrência.
Esse trabalho rico em ensinamentos caiu no esquecimento, eclipsado pelas pesquisas de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (Les Héritiers [Os herdeiros], 1964, e La Reproduction, 1970). Desde seu lançamento, no entanto, a pesquisa do Ined encontrou um amplo eco, tanto na imprensa como nos meios sobre os quais tratava. Misturando curiosidade, desconfiança e divertimento, as reações dão testemunho da ausência de consenso sobre um período frequentemente apresentado como o apogeu de uma França que reconhecia o mérito, com suas bolsas e seus prêmios de excelência, onde quer que ela se manifestasse. Mas a ilusão retrospectiva não resiste aos fatos: nos anos 1950, a própria ideia de uma elite selecionada segundo seus méritos não tinha nada de evidente. Em 1957, o [jornal] Figaro ironizava uma pesquisa que obrigava os entrevistados a fabular, ameaçados de descrédito se revelassem que seu sucesso se devia ao acaso ou a seus privilégios. No mesmo ano, o Le Progrès de Lyon ria de uma pergunta dos pesquisadores (“A que você atribui seu sucesso?”): “Parece que algumas pessoas responderam: ‘À minha total falta de escrúpulos’. Ao que um ex-ministro acrescentou: ‘Eu não tive sucesso: sou um fracassado’. É preciso reconhecer que na França pelo menos existem institutos que conseguem nos fazer rir”.[4]
No France Nouvelle, jornal semanal do Partido Comunista Francês, o escritor André Wurmser dirigia uma carta ao diretor do Ined, Alfred Sauvy.[5] Ela desenhava o retrato de um humilde militante encarnando uma contrassociedade em que só existia o sucesso coletivo. Originário de uma família de “extrema modéstia”, Wurmser apresentava sua existência como o produto de seu engajamento político: “Foi [o partido] que me fez o que eu sou. Pouca coisa, sem dúvida, mas ainda assim um comunista! Quer dizer, do ponto de vista da honestidade, do desinteresse, da fraternidade e da consciência, algum sucesso”. Fortalecido pela audiência do PCF nas classes populares, Wurmser afirmava sem meias-palavras que as elites não eram escolhidas “pela sociedade”, mas por elas mesmas; não em uma “massa imensa”, mas numa “sociedade hierarquizada em classes”.
O termo “meritocracia” ainda não existia. Inventado em 1958 pelo sociólogo inglês Michael Young e importado uma década depois pela França, depois da tradução de seu romance distópico The Rise of The Meritocracy, ele logo perdeu seu sentido e sua corrosividade originais à medida que a consciência de classe e as solidariedades forjadas nas lutas diminuíam. Mesmo que a sociedade dos Trinta Gloriosos não tivesse muita coisa a ver com o “elevador social”, ela tinha, no entanto, melhorado a vida de diversas pessoas pouco ou nada diplomadas. Sem entrar na competição escolar nem apresentar um curriculum vitae, era razoavelmente possível almejar o aprendizado de uma profissão, receber um salário decente, ter boas condições de trabalho, obter uma promoção. Por exemplo, um operário qualificado podia esperar um dia se tornar contramestre, ou um técnico com ensino médio completo poderia ser promovido a chefe, com a condição de ter provado sua competência e ser bem-visto pela hierarquia. O estado do mercado de trabalho, os modos de enquadramento e as relações de força nas empresas importavam bem mais do que a esperança das famílias pobres de mandarem seus filhos para a Sorbonne ou para a Rua de Ulm.
A verdadeira mudança, em relação a
isso, reside na irresistível diminuição, nos últimos cinquenta anos, das
chances de ascensão profissional para os pouco ou nada diplomados.
Consequência direta de um alongamento
geral das escolaridades e da massificação dos primeiros ciclos universitários,
os que simplesmente concluíram o ensino médio ou fizeram dois anos de estudos
após sua conclusão não têm mais chances de “crescer” ao longo da carreira.
Enquanto em 1970:
* 61% dos filhos de operários que
haviam concluído o ensino médio ou o fundamental 2 tinham acesso a um cargo
de chefia médio ou superior,
* esse era o caso de apenas 27%
deles no fim dos anos 1990.[6]
* Para as filhas de operários de 30
anos, as proporções eram respectivamente de 20% e 12%.
Ainda que o aumento da taxa de diplomados no ensino médio (65% de uma geração em 2010 e 80% em 2019, contra 5% em 1945) dê testemunho de um progresso incontestável, ela também tem por efeito condenar os menos diplomados a abandonar as esperanças de “se virarem”.
Longe das exortações dos primeiros da
fila, os pouco ou nada diplomados continuam sendo os mais expostos ao
desemprego e à precariedade. Segundo o Instituto Nacional de
Estatísticas e de Estudos Econômicos (Insee), seu salário mensal médio é de
1.500 euros, chegando a 1.288 euros nos empregos pouco ou nada qualificados.[7] Ao
contrário, o dos titulares de pelo menos um diploma de três anos de estudo
depois da conclusão do ensino médio é de 2.500 euros (em média, todas as
profissões misturadas) a 2.900 euros (nas profissões mais qualificadas). Nessas
condições, as tensões que minam a sociedade francesa [brasileira,
também] não podem se acalmar aumentando-se o número de bolsistas nas grandes
escolas.
Apenas um sistema econômico que garanta a todos boas condições de
vida (salários, direitos, jornada de trabalho, promoções etc.) é a solução.
Para fazer um mundo comum, as pontes são mais úteis que os elevadores – ou as escadas de serviço.
Acaba de ser publicado, no Brasil, um livro que vale a pena ler sobre o assunto da “meritocracia”. Ei-lo:
Publicado no Brasil pela Intrínseca Editora, em setembro de 2021. Preço de capa: R$ 79,90 |
[1] “Macron enterre l’ENA, un ‘totem’
français” [Macron enterra a ENA, um “totem” francês], Courrier International,
9 abr. 2021. A história esboçada aqui se funda sobre uma análise de quatro
jornais (Le Monde, Libération, L’Humanité, Le Figaro) com a ajuda da base
Factiva e dos arquivos disponíveis on-line dos três primeiros.
[2] Alain Girard (org.), La Réussite
sociale en France [O sucesso social na França], Presses Universitaires de
France, Paris, 1961.
[3] Cécile Bonneau, Pauline Charousset,
Julien Grenet e Georgia Thebault, Quelle démocratisation des grandes écoles
depuis le milieu des années 2000? [Qual democratização das grandes escolas
desde meados dos anos 2000?], relatório de pesquisa, Instituto das Políticas
Públicas, Escola de Economia de Paris, 2021.
[4] Georges Ravon, Le Figaro,
Paris, 24 out. 1957; e Pierre Durosne, Le Progrès de Lyon, 9 out. 1957.
[5] André Wurmser, France Nouvelle,
Paris, 31 out.-6 nov. 1957.
[6] Christian Baudelot e Roger Establet,
Avoir 30 ans, en 1968 et en 1998 [Ter 30 anos, em 1968 e em 1998],
Seuil, Paris, 1998.
[7] Claude Picart, “Le non-emploi des peu ou pas diplômés en France: un effet classement du diplôme” [O não emprego dos poucos ou nada diplomados na França: um efeito classificatório do diploma], Insee Références, Montrouge, 2020.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Mundo – Edição 172 – Novembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 14/02/2022).
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