«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O mito da meritocracia

 Um elevador sempre em manutenção

 Paul Pasquali

Sociólogo francês, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (sigla em francês: CNRS) e autor de Héritocratie. Les élites, les grandes écoles et les mésaventures du mérite (1870-2020) [Heritocracia. As elites, as grandes escolas e as desventuras do mérito (1870-2020)], Paris, La Découverte, 2021 

PAUL PASQUALI

Em geral concentrado no círculo social que envolve as elites, o debate sobre meritocracia tem um ponto cego: a sorte do um terço da população menos escolarizada

Raras são as fórmulas que resistem ao tempo. Forjadas durante a campanha presidencial de 1995 pelo dirigente liberal Alain Madelin, a “pane do elevador social” atravessou sem problema as últimas décadas. “O elevador social funciona pior hoje do que há cinquenta anos”, declarou o presidente da República francês, Emmanuel Macron, em viagem a Nantes para anunciar a revisão da Escola Nacional de Administração (ENA).[1]

Em sua formulação inicial, o “elevador social em pane” não designava nem o mundinho das elites nem o hermetismo social das grandes escolas. Com essas palavras, Madelin denunciava os obstáculos à liberdade de empreender, ligados, segundo ele, às dificuldades burocráticas e ao “igualitarismo” da esquerda. Vindo de uma família modesta (pai operário, mãe datilógrafa), o presidente do partido Democracia Liberal e ex-membro, nos anos 1960, do grupo de extrema direita Ocidente sonhava com uma França do self-made man e de capitães industriais seguindo o modelo de crescimento adotado pelos Estados Unidos. Madelin reativava assim o tema da “sociedade bloqueada”, sustentado 25 anos antes pelo sociólogo Michel Crozier – ele também bastante liberal. 

A metáfora do elevador conheceu uma espécie de abordagem menos favorável do que a da “fratura social”, expressão soprada no ouvido do candidato Jacques Chirac pelo demógrafo Emmanuel Todd, em 1994. Foi sob a “esquerda plural” (1997-2002) que ela se tornou um lugar-comum designando diretamente a incapacidade do sistema escolar em lutar contra as desigualdades sociais e, cada vez mais, o funil do recrutamento das grandes escolas. Para os socialistas, tratava-se de reconhecer o tamanho de problemas como a reprodução social e a endogamia das elites resumidas pela metáfora, sem utilizar palavrões como “classes sociais” e “dominação”. Foi inclusive Claude Allègre, então ministro da Educação Nacional e do Ensino Superior, que lançou em 1998 a primeira medida de abertura, criando bolsas de mérito para estudantes titulares da menção “bom” ou “muito bom” que desejassem ingressar na ENA, na Escola Nacional de Magistratura (ENM), nas faculdades de Medicina ou em outras escolas muito seletivas. A partir dos anos 2000, a “pane no elevador social” se estendeu progressivamente a todo o campo político. Assunto recorrente na mídia e tema de campanha, era possível encontrá-la no centro do discurso de Nicolas Sarkozy em 2007 e de Macron dez anos depois. 

Essa ideia, porém, se instalou como um mal-entendido. Se os debates recorrentes sobre a “meritocracia à francesa” pareciam frequentemente falsos, era porque confundiam dois fenômenos distintos na realidade. Quando se focaliza o topo da pirâmide, deixa-se a base na sombra. Fala-se de “elevador social” para designar o pequeno número de crianças dos meios populares que conseguem ascender às grandes escolas e às posições de poder mais do que para evocar as chances de mobilidade profissional do terço menos diplomado da população. 

Essa confusão, combinada a uma representação idealizada dos Trinta Gloriosos (1945-1975), alimentou o mito de uma “era de ouro meritocrática”. “Antigamente”, as grandes escolas teriam recompensado todos os talentos e os esforços sem distinção de origem ou fortuna. Antigos bolsistas, de Édouard Herriot a Georges Pompidou, seriam a prova viva. A memória coletiva evacua assim a forte segregação que, até os anos 1950-1960, mantinha a escola do povo (o ensino primário e o primário superior) bem longe da escola dos ricos (o ensino secundário e o superior, ao qual apenas raros alunos dos meios populares tinham acesso). 

É uma farsa a tal da ascensão social, apenas, pela via educacional, em uma sociedade que não permite o acesso à educação de qualidade a não ser a uma elite! Enquanto uns vão de elevador, outros vão pelas longas e intermináveis escadarias!

Uma pesquisa hoje esquecida 

Uma vasta pesquisa hoje esquecida sobre o “sucesso social”, lançada pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined) no fim dos anos 1950, dissipa essa ilusão.[2] Publicado em 1961 sob a direção de Alain Girard, sociólogo conhecido por seus trabalhos pioneiros sobre a homogamia social, o estudo descreve com precisão as elites francesas pertencendo às gerações nascidas sob a Terceira República (1870-1940) e que chegaram ao apogeu de suas carreiras no início da Quarta (1946-1958). Um dos tópicos da pesquisa dizia respeito às personalidades que ocupavam as posições mais elevadas em suas áreas. Majoritariamente parisienses, 3% delas tinham pai operário; 4%, assalariado; e 6%, agricultor; contra 23% que tinham pai funcionário público superior (professor do ensino superior ou médio, principalmente); 22%, advogado, médico ou artista; e 17%, empresário. No total, 68% dessas elites provinham dos 5% das categorias sociais mais altas. Nesse período anterior à massificação escolar, 85% dessas elites tinham estudo superior: um quarto na faculdade de Direito e no Instituto de Estudos Políticos de Paris, um quarto nas grandes escolas mais reconhecidas, a Escola Normal Superior da Rua de Ulm (8%), Central (6%), as Minas (4%), HEC (4%), X (3%) ou Saint-Cyr (2%). 

Outra parte da pesquisa se concentrava nos ex-alunos das grandes escolas: normalistas da Rua de Ulm, politécnicos, centrais, alunos da Agro ou da ENA. Aqui as tendências eram ainda mais claras. Maciçamente parisienses no conjunto, dois terços desses diplomados provinham das classes favorecidas, ou seja, treze vezes mais que na população. Apenas 2% deles eram filhos de operários; 6%, de agricultores; e 4,5%, de assalariados – as três categorias que formavam a imensa maioria do país. A título de comparação, segundo um estudo recente, 83% dos estudantes das quatro escolas mais cotadas (ENS Ulm, X, HEC e Sciences Po Paris) provêm dos meios favorecidos, e 4,5%, dos meios desfavorecidos.[3] Quanto aos antigos vindos das classes médias, eles provinham principalmente de famílias de comerciantes (7%) e de professores primários (4%), mais do que de famílias de artesãos (2%).

Nessa época, metade dos alunos que entravam no ENSINO FUNDAMENTAL 2 deixava a escola antes de chegar ao MÉDIO, e apenas 10% dos alunos dos meios populares entravam no FUNDAMENTAL 2, contra 80% a 90% dos de meios superiores.

Os autores da pesquisa faziam esta constatação:

“As elites são recrutadas não no conjunto da população, mas em grande parte em grupos muito restritos, já no alto da hierarquia social”.

Até mesmo na Rua de Ulm, um templo do elitismo republicano e, de fato, levemente mais aberta socialmente que as outras escolas de mesmo nível, os filhos de operários representavam apenas 2% dos alunos. Quanto aos politécnicos, a pesquisa mostra que a parcela de filhos de operários na instituição era estável desde a criação do estabelecimento… em 1794! Cerca de 1%, proporção observada hoje. Mesmo a jovem ENA, criada em 1945 com o objetivo de democratizar a cúpula do Estado, recrutava “como as outras grandes escolas […] na parte mais favorecida da população”. Apenas os pequenos funcionários aprovados no concurso interno pegavam um “elevador” – já – em mau estado. Três décadas antes da “pane no elevador social”, essa metáfora já apontava um problema cujos dados e respostas mudaram com o tempo, mas não a amplitude nem a recorrência. 

Esse trabalho rico em ensinamentos caiu no esquecimento, eclipsado pelas pesquisas de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (Les Héritiers [Os herdeiros], 1964, e La Reproduction, 1970). Desde seu lançamento, no entanto, a pesquisa do Ined encontrou um amplo eco, tanto na imprensa como nos meios sobre os quais tratava. Misturando curiosidade, desconfiança e divertimento, as reações dão testemunho da ausência de consenso sobre um período frequentemente apresentado como o apogeu de uma França que reconhecia o mérito, com suas bolsas e seus prêmios de excelência, onde quer que ela se manifestasse. Mas a ilusão retrospectiva não resiste aos fatos: nos anos 1950, a própria ideia de uma elite selecionada segundo seus méritos não tinha nada de evidente. Em 1957, o [jornal] Figaro ironizava uma pesquisa que obrigava os entrevistados a fabular, ameaçados de descrédito se revelassem que seu sucesso se devia ao acaso ou a seus privilégios. No mesmo ano, o Le Progrès de Lyon ria de uma pergunta dos pesquisadores (“A que você atribui seu sucesso?”): “Parece que algumas pessoas responderam: ‘À minha total falta de escrúpulos’. Ao que um ex-ministro acrescentou: ‘Eu não tive sucesso: sou um fracassado’. É preciso reconhecer que na França pelo menos existem institutos que conseguem nos fazer rir”.[4] 

No France Nouvelle, jornal semanal do Partido Comunista Francês, o escritor André Wurmser dirigia uma carta ao diretor do Ined, Alfred Sauvy.[5] Ela desenhava o retrato de um humilde militante encarnando uma contrassociedade em que só existia o sucesso coletivo. Originário de uma família de “extrema modéstia”, Wurmser apresentava sua existência como o produto de seu engajamento político: “Foi [o partido] que me fez o que eu sou. Pouca coisa, sem dúvida, mas ainda assim um comunista! Quer dizer, do ponto de vista da honestidade, do desinteresse, da fraternidade e da consciência, algum sucesso”. Fortalecido pela audiência do PCF nas classes populares, Wurmser afirmava sem meias-palavras que as elites não eram escolhidas “pela sociedade”, mas por elas mesmas; não em uma “massa imensa”, mas numa “sociedade hierarquizada em classes”. 

O termo “meritocracia” ainda não existia. Inventado em 1958 pelo sociólogo inglês Michael Young e importado uma década depois pela França, depois da tradução de seu romance distópico The Rise of The Meritocracy, ele logo perdeu seu sentido e sua corrosividade originais à medida que a consciência de classe e as solidariedades forjadas nas lutas diminuíam. Mesmo que a sociedade dos Trinta Gloriosos não tivesse muita coisa a ver com o “elevador social”, ela tinha, no entanto, melhorado a vida de diversas pessoas pouco ou nada diplomadas. Sem entrar na competição escolar nem apresentar um curriculum vitae, era razoavelmente possível almejar o aprendizado de uma profissão, receber um salário decente, ter boas condições de trabalho, obter uma promoção. Por exemplo, um operário qualificado podia esperar um dia se tornar contramestre, ou um técnico com ensino médio completo poderia ser promovido a chefe, com a condição de ter provado sua competência e ser bem-visto pela hierarquia. O estado do mercado de trabalho, os modos de enquadramento e as relações de força nas empresas importavam bem mais do que a esperança das famílias pobres de mandarem seus filhos para a Sorbonne ou para a Rua de Ulm. 

A verdadeira mudança, em relação a isso, reside na irresistível diminuição, nos últimos cinquenta anos, das chances de ascensão profissional para os pouco ou nada diplomados.

Consequência direta de um alongamento geral das escolaridades e da massificação dos primeiros ciclos universitários, os que simplesmente concluíram o ensino médio ou fizeram dois anos de estudos após sua conclusão não têm mais chances de “crescer” ao longo da carreira.

Enquanto em 1970:

* 61% dos filhos de operários que haviam concluído o ensino médio ou o fundamental 2 tinham acesso a um cargo de chefia médio ou superior,

* esse era o caso de apenas 27% deles no fim dos anos 1990.[6]

* Para as filhas de operários de 30 anos, as proporções eram respectivamente de 20% e 12%.

Ainda que o aumento da taxa de diplomados no ensino médio (65% de uma geração em 2010 e 80% em 2019, contra 5% em 1945) dê testemunho de um progresso incontestável, ela também tem por efeito condenar os menos diplomados a abandonar as esperanças de “se virarem”. 

Longe das exortações dos primeiros da fila, os pouco ou nada diplomados continuam sendo os mais expostos ao desemprego e à precariedade. Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e de Estudos Econômicos (Insee), seu salário mensal médio é de 1.500 euros, chegando a 1.288 euros nos empregos pouco ou nada qualificados.[7] Ao contrário, o dos titulares de pelo menos um diploma de três anos de estudo depois da conclusão do ensino médio é de 2.500 euros (em média, todas as profissões misturadas) a 2.900 euros (nas profissões mais qualificadas). Nessas condições, as tensões que minam a sociedade francesa [brasileira, também] não podem se acalmar aumentando-se o número de bolsistas nas grandes escolas.

Apenas um sistema econômico que garanta a todos boas condições de vida (salários, direitos, jornada de trabalho, promoções etc.) é a solução.

Para fazer um mundo comum, as pontes são mais úteis que os elevadores – ou as escadas de serviço. 

Acaba de ser publicado, no Brasil, um livro que vale a pena ler sobre o assunto da “meritocracia”. Ei-lo:

Publicado no Brasil pela Intrínseca Editora, em setembro de 2021. Preço de capa: R$ 79,90


NOTAS:

[1] “Macron enterre l’ENA, un ‘totem’ français” [Macron enterra a ENA, um “totem” francês], Courrier International, 9 abr. 2021. A história esboçada aqui se funda sobre uma análise de quatro jornais (Le Monde, Libération, L’Humanité, Le Figaro) com a ajuda da base Factiva e dos arquivos disponíveis on-line dos três primeiros.

[2] Alain Girard (org.), La Réussite sociale en France [O sucesso social na França], Presses Universitaires de France, Paris, 1961.

[3] Cécile Bonneau, Pauline Charousset, Julien Grenet e Georgia Thebault, Quelle démocratisation des grandes écoles depuis le milieu des années 2000? [Qual democratização das grandes escolas desde meados dos anos 2000?], relatório de pesquisa, Instituto das Políticas Públicas, Escola de Economia de Paris, 2021.

[4] Georges Ravon, Le Figaro, Paris, 24 out. 1957; e Pierre Durosne, Le Progrès de Lyon, 9 out. 1957.

[5] André Wurmser, France Nouvelle, Paris, 31 out.-6 nov. 1957.

[6] Christian Baudelot e Roger Establet, Avoir 30 ans, en 1968 et en 1998 [Ter 30 anos, em 1968 e em 1998], Seuil, Paris, 1998.

[7] Claude Picart, “Le non-emploi des peu ou pas diplômés en France: un effet classement du diplôme” [O não emprego dos poucos ou nada diplomados na França: um efeito classificatório do diploma], Insee Références, Montrouge, 2020. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Mundo – Edição 172 – Novembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 14/02/2022).

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