Um conflito inventado, criminoso!

 Fumaça tóxica sobre a Covid-19

 Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade 

ESPER KALLÁS

A história tem exemplos de campanhas de desinformação para refutar evidências científicas

Após a primeira guerra mundial, um novo hábito passaria a se tornar cada vez mais popular: o uso de cigarros. Seu uso cresceu, inclusive entre jovens, acompanhado de um aumento de:

* problemas pulmonares graves,

* distúrbios circulatórios e

* câncer de pulmão, doença relativamente rara até então. 

A descoberta de que o fumo causa câncer de pulmão, hoje uma obviedade, trilhou caminho extremamente tortuoso para ser admitida como um fato. Mesmo assim, persiste contestada por poucos, incluindo o recém-falecido Olavo de Carvalho. 

O assunto foi pesquisado em detalhes por dois ingleses: Richard Doll, médico e fumante à época, e Austin Bradford Hill, epidemiologista e estatístico. Juntos, aplicaram questionário em projeto conhecido como The British Doctors Study, a mais de 40 mil médicos, a partir de 1951.

Em 1954 já foi possível perceber a associação do fumo com o câncer de pulmão e, em 1956, com o infarto.

O estudo continuou por muitas décadas e conseguiu mostrar a relação com diversos outros problemas de saúde. 

A indústria do tabaco reagiu ruidosamente, atribuindo o aumento de câncer à poluição e outros fatores ambientais. Não só refutavam a associação, como também investiam grandes somas de dinheiro em propaganda e estudos com metodologias pouco rigorosas para negar o inegável. 

A percepção pela opinião pública também foi lenta. Em 1960, por exemplo, quase metade dos médicos americanos ainda fumavam.

Somente no fim dos anos 1990 que a indústria do tabaco admitiu o cigarro como causa de câncer e outras doenças.

As décadas de negacionismo continuam deixando um rastro de morte e sofrimento. O cigarro é considerado o artefato mais mortal da história, responsável por mais de 8 milhões de mortes ao ano, segundo a OMS.


A polêmica gestou os critérios de Hill: uma série de premissas para avaliar a associação tipo causa e efeito. Tais critérios vêm sendo aprimorados e servem como base para análises rigorosas de evidências científicas e fomentou a discussão sobre as melhores práticas para responder questões relevantes em saúde, inclusive adoção de tratamentos e prevenções biomédicas. 

Muitos anos depois, já vivendo a pandemia de Covid-19, algo parecido se desenrola, envolvendo o tratamento da doença. Após períodos de incertezas, temos um conjunto grande de estudos rigorosos que apontam quais estratégias e medicamentos são úteis ou não. 

A propaganda enganosa, o artifício em se buscar estudos inadequados e usar exceções tentam afastar médicos e opinião pública das diretrizes que deveriam ser preconizadas. A nota da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, ao negar o parecer preparado pela comissão de especialistas e aprovado pela Conitec para o tratamento da Covid-19, faz lembrar os piores momentos da luta contra o tabaco e desconsidera critérios científicos, que deve estar fazendo Hill revirar no túmulo. 

O diversionismo emprega táticas para afastar o observador de evidências sólidas, como fazia Olavo de Carvalho ao questionar a relação entre tabagismo e doenças.

ABSURDO DOS ABSURDOS: pacientes internados no Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre (RS) - foto, receberam o medicamento PROXALUTAMIDA, fabricado na China e tratado por Bolsonaro como a "nova cloroquina". Detalhe: não havia liberação de importação desse medicamento nem para testá-lo em seres humanos!!!

 Dicas para não ser enganado: 

Fazer a opinião pública entender a distorção não é tarefa fácil. Mas seguem algumas dicas:

a) evite usar casos raros para chegar a conclusões, olhe para o todo.

b) Prefira pautar-se por estudos rigorosos, publicados em boas revistas científicas.

c) Busque informações de especialistas sobre o assunto, não oportunistas de ocasião.

d) Finalmente, leia bastante sobre ciência, pois ajuda a construir e exercitar a crítica.

Fazendo isso, fica-se mais próximo da verdade. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Colunas e Blogs – Terça-feira, 1º de fevereiro de 2022 – 12h18 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (Acesso em: 01/02/2022).

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