Igrejas fechadas: um sinal de Deus?
Tomáš Halík*
Vita e
Pensiero
24-04-2020
É tempo de acolhermos aquilo que, agora, se
passa como um kairós: um momento oportuno para “avançar para águas mais
profundas” e
procurar uma nova identidade para o
cristianismo
TOMÁŠ HALÍK |
O nosso
mundo está doente. Não me refiro apenas à pandemia do coronavírus, mas também
ao estado da nossa civilização que esse fenômeno global revela. Em
termos bíblicos, é um sinal dos tempos.
Depois desta experiência global, o mundo já não será mais o mesmo,
e, provavelmente, é bom que seja assim
No início
desta insólita Quaresma, muitos de nós pensávamos que a epidemia iria conduzir
a uma espécie de blecaute de curta duração, a uma interrupção das atividades
sociais habituais de um modo ou de outro previsíveis, e, depois, tudo voltaria
a ser como antes.
Mas não vai
ser assim. Aliás, nem seria bom que tentássemos que fosse. Depois desta
experiência global, o mundo já não será mais o mesmo, e, provavelmente, é bom
que seja assim.
Durante as
grandes calamidades, é natural que nos preocupemos sobretudo com as
necessidades materiais em vista da sobrevivência, mas “nem só de pão vive o
homem”. Talvez tenha chegado o momento de examinar as implicações mais
profundas deste ataque à segurança do nosso mundo. Podemos dizer que o
inevitável processo de globalização chegou ao seu apogeu: a vulnerabilidade
global de um mundo global é agora evidente.
A
Igreja como hospital de campanha
Que tipo de
desafio essa situação representa para o cristianismo, para a
Igreja (um dos primeiros “agentes globais”) e para a teologia?
O Papa
Francisco disse que a Igreja deveria ser um “hospital de campanha”:
uma metáfora que indica que a Igreja não deve ficar em um esplêndido
isolamento do mundo, mas deve derrubar as suas fronteiras e ir, levar ajuda
a todos os lugares onde as pessoas se encontrem necessitadas física, mental,
social e espiritualmente. Sim, é assim que a Igreja pode fazer penitência pelas
feridas que os seus representantes infligiram recentemente aos mais indefesos, mas
tentemos refletir mais profundamente sobre o significado desta metáfora,
tentemos pô-la em prática.
Como qualquer bom hospital,
a Igreja também deve realizar outras tarefas.
Deve fazer diagnósticos,
fazer prevenção e
fazer convalescência
Se a Igreja
deve ser um “hospital”, obviamente ela deve continuar oferecendo a mesma
assistência sanitária, social e caritativa que ofereceu desde as origens da sua
história. Mas, como qualquer bom hospital, a Igreja também deve realizar
outras tarefas. Deve fazer diagnósticos (identificando os “sinais
dos tempos”), fazer prevenção (criando um “sistema imunológico”, em uma
sociedade em que dominam os vírus malignos do medo, do ódio, do populismo e do
nacionalismo), e fazer convalescência (ultrapassando os traumas do
passado com o perdão).
Versão italiana do artigo de Tomáš Halík publicado em Christ & Welt, suplemento do jornal Die Zeit, Alemanha |
Igrejas
vazias como sinal e desafio
No ano
passado, justamente antes da Páscoa, a Catedral de Notre-Dame de Paris
sofreu um incêndio. Neste ano, durante a Quaresma, não houve celebrações
religiosas em centenas de milhares de igrejas em diversos continentes, mas,
também, em sinagogas e mesquitas. Como padre e teólogo, reflito sobre essas
igrejas vazias ou fechadas como um sinal e um desafio de Deus.
Compreender
a linguagem de Deus, nos acontecimentos do nosso mundo, exige a arte do
discernimento espiritual, que, por sua vez, exige um desapego contemplativo
das nossas emoções e dos nossos preconceitos exacerbados, assim como das
projeções que damos aos nossos medos e aos nossos desejos.
Nos
momentos de calamidade, os “agentes adormecidos de um Deus mal e vingativo”
difundem o medo e preparam um capital religioso para si mesmos. Há
séculos, a sua visão de Deus levou água ao moinho do ateísmo.
Vejo Deus como uma fonte de força que opera naqueles que,
nessas situações, dão provas de solidariedade e
de um amor desinteressado
Mas, em um
momento de calamidade, eu não vejo Deus como um diretor de mau humor,
comodamente sentado nos bastidores dos acontecimentos do nosso mundo. Mas sim
como uma fonte de força que opera naqueles que, nessas situações, dão provas
de solidariedade e de um amor desinteressado, incluindo também aqueles que
agem sem uma “motivação religiosa”. Deus é amor humilde e discreto.
Mas não
posso deixar de me perguntar se este tempo de igrejas vazias e fechadas não é
uma espécie de visão que nos alerta contra aquilo que poderia ocorrer em um
futuro relativamente próximo: dentro de poucos anos, elas poderiam estar assim,
em grande parte do nosso mundo. Já não fomos avisados, várias vezes, sobre
aquilo que acontece em muitos países, onde um número cada vez maior de igrejas,
mosteiros e seminários se esvaziaram ou foram fechados? Por que atribuímos por
tanto tempo essa evolução a influências externas (o “tsunami secular”) e não
nos demos conta de que se encerrava outro capítulo da história do cristianismo,
e que é hora de nos prepararmos para um novo?
Preocupamo-nos muito em converter o “mundo” (o “resto”),
e menos em convertermo-nos a nós mesmos
Talvez este
tempo de edifícios eclesiais vazios ponha simbolicamente em evidência o vazio
escondido das Igrejas e o seu possível futuro – se não fizermos um sério
esforço de mostrar ao mundo um rosto do cristianismo completamente diferente. Preocupamo-nos
muito em converter o “mundo” (o “resto”), e menos em convertermo-nos a nós
mesmos; e isso não significa apenas “melhorarmo-nos”, mas passar
radicalmente de um estático “ser cristãos” a um dinâmico “tornar-se cristãos”.
Quando a
Igreja medieval fez um uso excessivo das proibições como sanções, levando toda
a máquina eclesial a uma espécie de “greve geral”, na qual não se realizavam
mais as celebrações e não se administravam mais os sacramentos. Como
consequência, as pessoas começaram a procurar cada vez mais uma relação pessoal
com Deus, uma “fé nua”. Proliferaram fraternidades leigas, e
assistiu-se a uma onda de mística que, sem dúvida, contribuiu para
preparar o caminho para a Reforma – de Lutero e Calvino, por um lado, mas
também, por outro, a reforma católica ligada aos jesuítas e à mística
espanhola. Talvez a descoberta da contemplação pudesse contribuir, hoje,
para completar o “percurso sinodal”, rumo a um novo CONCÍLIO reformador.
Um
apelo à reforma
Talvez
devamos aceitar a atual abstinência de serviços religiosos e de atividades da
Igreja como kairós, como uma oportunidade para pararmos e fazermos
uma reflexão profunda e empenhada diante de Deus e com Deus. Estou
convencido de que chegou o momento de refletir sobre como continuar o
necessário caminho de reforma, indicado pelo Papa Francisco: não tentar
regressar a um mundo que já não existe e, também, não confiar apenas em
meras reformas estruturais exteriores, mas ir ao centro do Evangelho, fazer
uma viagem ao interior.
Não tentar regressar a um mundo que já não existe e, também,
não confiar apenas em meras reformas estruturais exteriores,
mas ir ao centro do Evangelho
Não vejo
como uma solução limitada, sob a forma de substitutos virtuais – como, por
exemplo, a transmissão das missas pela televisão –, possa ser uma solução
suficiente, neste momento em que o culto público está suspenso. Uma passagem à
“devoção virtual”, à “comunhão a distância”, de joelhos na frente de uma tela,
é algo sumamente bizarro. Creio que deveríamos, sim, pôr à prova a
veracidade das palavras de Jesus: “Onde estão dois ou três reunidos no
meu nome, aí estou Eu no meio deles”.
Realmente
pensávamos que poderíamos resolver a falta de padres na Europa importando
“peças de reposição” para o maquinário eclesial a partir de depósitos,
aparentemente infinitos, na Polônia, na Ásia e na África? Devemos obviamente
tomar a sério as propostas do Sínodo Amazônico, mas, ao mesmo tempo, há a
necessidade de aumentar o alcance do ministério dos leigos na Igreja (não
nos esqueçamos de que, em muitos territórios, a Igreja sobreviveu sem clero por
muitos séculos).
Nossas comunidades cristãs
deveriam procurar se aproximar do ideal que deu origem
às universidades europeias:
uma escola de sabedoria na qual
a verdade é buscada através do livre debate e, também,
da profunda contemplação
Talvez esse
“estado de emergência” atual seja um indicador do novo rosto da Igreja. E
também um precedente histórico. Estou convencido de que as nossas comunidades
cristãs – paróquias, congregações, movimentos eclesiais e comunidades
monásticas – deveriam procurar se aproximar do ideal que deu origem às
universidades europeias: uma comunidade de alunos e de professores, uma escola de sabedoria na qual a verdade é buscada através
do livre debate e, também, da profunda contemplação.
Tais ilhas
de espiritualidade e de diálogo poderiam ser a fonte de uma força capaz de
curar um mundo doente. Na véspera da eleição papal, o cardeal Bergoglio citou
um trecho do Apocalipse em que Jesus está à porta e bate. E acrescentou: hoje,
Cristo bate a partir de dentro da Igreja e quer sair. Talvez seja aquilo
que ele acabou de fazer.
Tomáš Halík encontra-se com Papa Francisco e lhe entrega uma carta solicitando reformas na Igreja Católica Vaticano, 27 de fevereiro de 2019 |
Onde
fica a Galileia de hoje?
Há vários
anos, reflito sobre o conhecido texto de Friedrich Nietzsche sobre o “homem
louco” (o tonto é o único que pode dizer a verdade) que proclama a
“morte de Deus”. Esse capítulo termina com o louco que vai à igreja para cantar
Requiem aeternam deo e pergunta: “Afinal, o que são estas igrejas
senão, somente, os túmulos e os sepulcros de Deus?”. Devo admitir que,
durante muito tempo, diversos aspectos da Igreja me pareceram sepulcros frios e
opulentos de um deus morto.
“Ele não está aqui. Ressuscitou! Ele vos precederá na Galileia”.
Onde fica a Galileia de hoje,
onde podemos encontrar o Cristo vivo?
Neste ano,
muitas das nossas igrejas estavam vazias na Páscoa. Mas pudemos ler na nossa
casa as passagens do Evangelho sobre o túmulo vazio. Se o vazio das igrejas
evoca o túmulo vazio, não ignoremos a voz que vem do Alto: “Ele não está
aqui. Ressuscitou! Ele vos precederá na Galileia”. Onde fica a Galileia de
hoje, onde podemos encontrar o Cristo vivo?
A pesquisa
sociológica mostra que o número daqueles a quem eu chamo “residentes” (dwellers),
ou seja, aqueles que se identificam profundamente com a forma tradicional da
religião e também aqueles que declaram um ateísmo dogmático, está em
diminuição, enquanto aumenta o número dos que estão “à procura” (seekers).
Além disso, está obviamente em aumento também o número dos “apáticos”, os
indiferentes, pessoas que absolutamente não estão interessadas nas questões
religiosas ou na resposta tradicional que lhes é dada.
A principal linha de demarcação, hoje, é entre
aqueles que estão “em busca” sendo crentes e,
há quem não seja crente, mas, ao mesmo tempo,
sente o desejo ardente de algo que satisfaça a sua sede de sentido
A principal
linha de demarcação já não é entre os que se consideram crentes e os que se
consideram não crentes. Há quem esteja “em busca” sendo crente (aqueles para
quem a fé não é uma “herança”, mas sim um “caminho”), e há quem seja não
crente, que rejeita os conceitos religiosos que lhe são propostos pelos que o
rodeiam, mas, ao mesmo tempo, sente o desejo ardente de algo que satisfaça a
sua sede de sentido.
Estou
convencido de que a “Galileia de hoje”, onde devemos procurar Deus que
sobreviveu à morte, é esse grupo dos que estão “em busca”.
Buscar
Cristo entre os buscadores
A teologia
da libertação nos ensinou a buscar Cristo entre as pessoas que estão à margem
da sociedade. Mas também é preciso buscá-lo por entre as pessoas
marginalizadas na Igreja, entre aqueles “que não nos seguem”. Se
quisermos entrar em relação com eles como discípulos de Jesus, devemos
abandonar várias coisas.
O Senhor já bateu à porta a partir “de dentro” e saiu,
cabe a nós buscá-lo e segui-lo
Devemos
abandonar muitas das nossas velhas ideias sobre Cristo. O Ressuscitado é
radicalmente transformado pela experiência da morte. Como lemos nos
Evangelhos, até mesmo as pessoas que lhe eram mais próximas e por Ele mais
queridas não o reconheceram. Não devemos só tomar como boas as notícias à nossa
volta, mas também insistir em querer tocar as feridas. Além disso, onde
estaríamos certos de poder encontrá-lo senão nas feridas do mundo e nas feridas
da Igreja, nas feridas do corpo que Ele assumiu sobre si?
Devemos
abandonar os nossos objetivos de proselitismo. Não entramos no mundo dos
buscadores para “convertê-los” o mais rapidamente possível e encerrá-los nos
perímetros institucionais e mentais das nossas igrejas. Nem mesmo Jesus tentou
introduzir à força aquelas “ovelhas perdidas da casa de Israel” nas estruturas
do judaísmo do seu tempo. Ele sabia que o vinho novo deve ser derramado em
odres novos.
Do tesouro
da tradição que nos foi confiada, queremos tirar coisas novas e velhas e
fazê-las participar de um diálogo com os que buscam, um diálogo no qual
possamos e devamos aprender uns com os outros. Devemos aprender a ampliar
radicalmente os limites da nossa visão da Igreja. Já não nos basta abrir,
magnanimamente, um “pátio dos gentios”. O Senhor já bateu à porta a partir
“de dentro” e saiu – e cabe a nós buscá-lo e segui-lo. Cristo atravessou a
porta que nós havíamos trancado por medo dos outros. Pulou o muro que tínhamos
erigido à nossa volta. Abriu um espaço cuja amplitude e profundidade nos dão
vertigens.
Substituíram os holocaustos e sacrifícios de sangue
pelo “sacrifício dos lábios”:
a reflexão, o louvor e o estudo das Escrituras
No início
da sua história, a Igreja primitiva dos judeus e dos pagãos viu a destruição do
templo em que Jesus pregava e ensinava aos seus discípulos. Os judeus daquela
época encontraram uma solução corajosa e criativa: substituíram o altar do
templo demolido pela mesa familiar, e substituíram a prática do sacrifício pela
oração privada e comunitária. Substituíram os holocaustos e sacrifícios de
sangue pelo “sacrifício dos lábios”: a reflexão, o louvor e o estudo das
Escrituras.
Mais ou
menos na mesma época, o cristianismo primitivo, banido das sinagogas, procurou
uma nova identidade. Sobre os destroços das tradições em ruína, judeus e
cristãos aprenderam a ler a Lei e os Profetas começando do zero e a
interpretá-los de novo. Não é uma situação semelhante à dos nossos dias?
Deus
em todas as coisas
Quando Roma
caiu, no início do século V, houve quem encontrasse de imediato uma explicação:
para os pagãos, tratava-se de uma punição dos deuses pela adoção do
cristianismo; para os cristãos, uma punição de Deus a Roma por ter continuado a
ser a “prostituta da Babilônia”. Santo Agostinho rejeitou ambas as
explicações e, naquele momento de divergência, desenvolveu a sua teologia da
luta secular entre duas “cidades” opostas; já não entre cristãos e pagãos,
mas sim entre dois “amores” que habitam o coração humano: o amor a si,
fechado à transcendência (amor sui usque ad contemptum Dei), e o
amor que se doa e, assim, encontra Deus (amor Dei usque ad
contemptum sui).
“Sabemos onde a Igreja está,
mas não sabemos onde ela não está”
Este nosso
tempo de mudança de civilização não requer,
talvez, uma nova teologia da história contemporânea e um novo modo de
entender a Igreja?
“Sabemos
onde a Igreja está, mas não sabemos onde ela não está”, ensinava
o teólogo ortodoxo Pavel Nikolaevic Evdokimov. Talvez o que o último Concílio
disse sobre a catolicidade e sobre o ecumenismo deva agora adquirir um conteúdo
mais profundo. Chegou o tempo de ampliar e aprofundar o ecumenismo, de
uma busca mais audaz de Deus “em todas as coisas”.
Podemos,
naturalmente, aceitar estas igrejas vazias e silenciosas simplesmente como uma
medida temporária que, em breve, será esquecida. Mas também podemos acolher
isso como um kairós: um momento oportuno para “avançar para
águas mais profundas” e procurar uma nova identidade para o cristianismo,
em um mundo que se transforma radicalmente debaixo dos nossos olhos. A atual
pandemia não é, certamente, a única ameaça global para o nosso mundo, nem agora
nem no futuro.
Façamos
deste tempo um desafio para buscar Cristo novamente. Não
procuremos Aquele que vive entre os mortos! Busquemo-lo com coragem e
tenacidade, e não fiquemos surpresos se ele aparecer a nós como um estrangeiro.
Vamos reconhecê-lo pelas suas feridas, pela sua voz, quando nos falar
intimamente, pelo Espírito que traz a paz e afasta o medo.
Traduzido
do italiano por Moisés Sbardelotto. A versão italiana do original pode
ser encontrada aqui.
* TOMÁŠ HALÍK é Padre, Teólogo,
Filósofo e escritor tcheco. Professor de Sociologia na Universidade Charles, de
Praga, presidente da Academia Cristã Tcheca e doutor honoris causa pela
Universidade de Oxford (Inglaterra). Autor renomado de vários livros, sendo que
os principais foram publicados no Brasil (conferir: aqui)
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