Deus e o vírus
Deus
está ao nosso lado,
mas
cabe a nós lutar contra o vírus
Enzo Bianchi
Monge
e biblista italiano, fundador da comunidade de Bose
La
Stampa – Itália
17-05-2020
“Nosso Deus é onipotente apenas no amor,
mas ele não pode nos causar mal.”
PAPA FRANCISCO ora na Praça São Pedro deserta durante a pandemia na Itália Sexta-feira, 27 de março de 2020 |
Nesse longo período de pandemia, a crise, agora de revelação e juízo, situação em que se revela a gravidade da doença e se identifica o caminho da cura, tocou todas as realidades: das mais evidentes, como a economia e as relações sociais, às mais pessoais e íntimas. Uma realidade particularmente abalada, às vezes desestabilizada, foi a Igreja, a comunidade dos fiéis cristãos, muito presente na Itália. Os fiéis cristãos mantêm em sua memória uma imagem que, não por acaso, marcou milhões de espectadores. Em 27 de março, no final do dia, quando já estava escurecendo, sob uma chuva insistente, o Papa Francisco atravessou sozinho uma Praça São Pedro deserta.
Lá ele fez
uma breve oração, depois que um sino triste acompanhou seus passos
rápidos, embora vacilantes. Algumas palavras, entre as quais todos lembram: “Senhor,
não nos deixes à mercê da tempestade!”, junto com a constatação:
“Percebemos que estamos todos no mesmo barco”. As palavras do papa, dirigidas
ao crucifixo geralmente colocado na igreja de San Marcello al Corso
(considerado milagroso por "proteger" Roma da peste no século XVI),
pareceram um grito desesperado; a extrema invocação de um Papa que quer ser
intercessor de todos junto a Deus, que coloca diante dele o sofrimento, a dor e
a morte de homens e mulheres atingidos pela pandemia. Gostaria de refletir
sobre essas palavras como pessoa de fé, com um breve pensamento que pode
intrigar até mesmo aqueles que não professam uma fé religiosa.
Antes de
tudo, deve-se constatar que nessa situação de crise verificou-se uma certa
efervescência religiosa: na tempestade, muitos
voltaram a invocar a Deus, depois de anos em que o haviam deixado de
lado, sem arrependimentos, atitudes e estilos típicos de pessoas de fé. Pode-se
confessar com toda paz: "O homem que está em honra, e não tem
entendimento", de acordo com o refrão do Salmo 49, enquanto no infortúnio
ele se dirige facilmente a Deus ou aos deuses, porque o medo cria os deuses,
como os antigos afirmavam inteligentemente. Até mesmo o Deus dos cristãos
para muitos ainda é o Deus que "vê, examina, inspeciona" os
comportamentos humanos, para sancioná-los, sempre que necessário, com o
castigo. Portanto, apareceram falsos profetas que
arrogaram para si um ministério de condenação, prontos para ler no vírus um
anjo exterminador enviado por Deus para castigar os pecados típicos de nosso
tempo, em sua opinião: aborto, homossexualidade, divórcio, eutanásia, falta
de uma fé militante. Pregadores evangélicos e padres católicos desencavaram
profecias que explicavam assim a pandemia.
«O Deus vingador e castigador não é o Deus de Jesus Cristo,
mas deve ser rejeitado e excluído da vida da fé cristã»
Essa é uma
perversão da imagem de Deus: o Deus vingador e
castigador não é o Deus de Jesus Cristo, mas deve ser rejeitado e excluído da
vida da fé cristã. Na verdade, a única coisa que podemos afirmar é que,
como em qualquer situação, mesmo na pandemia, Deus manifesta sua presença de
forma oculta: ele é invisível, impossibilitado de intervir colocando um fim
ao vírus, da mesma forma que não podia enviá-lo. Nosso Deus é onipotente
apenas no amor, mas ele não pode nos causar mal.
PAPA FRANCISCO caminha pela Via del Corso, em Roma, até a igreja de San Marcello para orar diante de um crucifixo famoso durante a peste negra do século XVI Domingo, 15 de março de 2020 |
Cabe a nós, seres humanos, combater o vírus e a
morte,
assumindo com responsabilidade e cuidando dos outros,
entre os quais
especialmente os mais pobres e fragilizados.
Não
imputemos nossos males a Deus, nem nos perguntemos: "Onde está Deus?", porque o
Deus de Jesus não nos abandona, mas está ao nosso lado com a força do seu
Espírito, para nos ajudar a atravessar a doença e a morte. Então, por que o
Papa ora? Por que oramos a Deus na pandemia? Porque Deus não olha tanto para
as palavras que lhe dizemos, mas para o desejo que elas querem expressar.
Nossa oração não muda a vontade de Deus, não é um ato mágico, não tem poder
contra o que pertence à nossa condição humana marcada pela morte, o limite
extremo do qual nunca poderemos nos libertar. Os cristãos não fazem de Deus o
"tapa-buracos" - de acordo com a expressão de Bonhoeffer -, mas o
sentem como uma:
* presença
invisível, porém eficaz,
* que lhes
dá força,
* sentido,
* vida,
* capacidade
de amar.
Jesus nos
disse: se pedirmos a Deus seu Espírito Santo, ele sempre o dará como força que
opera em nós; mas sem nós Deus não pode fazer nada enquanto habitamos
esta Terra.
«Todo grito que brota da Terra, gerado pela dor,
pelo sofrimento
inerente à natureza ou criado pelos seres humanos, todo grito,
mesmo inarticulado, chega a Deus, que o ouve»
Precisamente
por esse motivo, todo grito que brota da Terra, gerado pela dor, pelo
sofrimento inerente à natureza ou criado pelos seres humanos, todo grito, mesmo
inarticulado, chega a Deus, que o ouve. O grito daquele que não tem fé e o do
ser humano com fé se entrelaçam, e Deus ouve os dois. Até a blasfêmia, que
parece ofender a Deus, às vezes é um protesto, um apelo a Deus, uma fome por
ele, portanto uma oração. Quando Ana, mãe de Samuel, foi ao santuário rezar com
amargura, não se entendia o que seus lábios murmuravam diante de Deus, tanto
que o sacerdote Eli considerou que estivesse bêbada. Em vez disso, Deus a
atendeu e seu murmúrio, não a fórmula de culto do sacerdote (cf. 1 Sm 1,9-18)!
Sim,
estamos todos no mesmo barco, no mar tempestuoso, pessoas com fé e sem fé. Se
nos salvarmos, nos salvamos juntos, não sozinhos!
Traduzido
do italiano por Luisa Rabolini.
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