Catolicismo pós-pandemia
Quatro
características do catolicismo
pós-pandemia
Christopher
Lamb
The
Tablet
28-05-2020
O catolicismo que emergirá da crise sob a
liderança do Papa Francisco
será mais enxuto e mais claro em sua missão
PAPA FRANCISCO |
A pandemia
da Covid-19 terá repercussões duradouras para a Igreja.
Uma
pandemia virulenta pode ter forçado os edifícios da Igreja ao redor do mundo a
fecharem, mas a própria Igreja nunca fecha. Como Jesus nos diz em Mateus
24,35, “o céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”.
O
Pentecostes, o aniversário da Igreja, é um momento apropriado para refletir
sobre que tipo de missão e testemunho surgirá da crise e sobre como o Papa
Francisco avançará a sua visão para a evangelização missionária quando a
tempestade da Covid-19 começar a enfraquecer.
“O que
estamos vivendo agora é uma espécie de metanoia e temos a chance de
começar. Então, não deixemos que ela escape de nós. Sigamos em frente”,
disse Francisco em entrevista à The Tablet no mês passado.
Em dois
documentos proféticos, seu manifesto para este papado, Evangelii gaudium,
publicado em 2013, seguido dois anos depois pela sua encíclica Laudato
si’, um poderoso chamado a proteger o mundo natural, o papa oferece
um mapa para atravessar a crise e rumo ao futuro.
O
coronavírus suspendeu a vida “normal’ da Igreja, com
muitas pessoas ainda privadas de acesso aos sacramentos. Foi uma prova de fé
que alguns países não viam há séculos. Após semanas de confinamento, os
católicos agora estão gradualmente retornando às igrejas, participando da missa
e recebendo os sacramentos, mas apenas de uma forma altamente restrita. É
improvável que isso mude em breve, e a Igreja deve se adaptar à nova situação. As
coisas não voltarão facilmente a como eram antes.
“Este é um
momento para reiniciar”, diz Augusto Zampini-Davies, padre argentino que
o papa pediu para desempenhar um papel de liderança na Comissão Covid-19 do
Vaticano, acrescentando: “O que é essencial? Essa é a questão. O que é
essencial que a Igreja retome, regenere e permita que o Espírito Santo acenda,
como dimensão essencial do cristianismo? Se Cristo está caminhando conosco
neste momento trágico, aonde Ele quer nos levar?”
PE. AUGUSTO ZAMPINI-DAVIES |
As dioceses
e as paróquias têm visto sua renda cair em queda livre, o que
está levando à perda de empregos e a algumas instituições a enfrentar o
fechamento. Como escreveu Stephen Bullivant no início deste mês na The
Tablet, é provável que o declínio de longo prazo na participação nas
missas na Europa e nos Estados Unidos seja acelerado pela pandemia.
Razões de esperança
Mas também há
razões de esperança. O coronavírus revelou uma fome de fé e mostrou que a
Igreja atende a uma necessidade essencial. Uma recente pesquisa da ComRes
apontou para isso, quando constatou que um quarto dos adultos no Reino Unido
havia assistido ou ouvido um rito religioso durante o confinamento. Mas a
medida da saúde da Igreja nunca pode se basear apenas nos números do
comparecimento à missa ou em uma grande presença institucional. “Não somos
chamados a ter sucesso, mas a ser fiéis”, costumava dizer Madre Teresa de Calcutá.
Outro líder
profético do século XX, o falecido cardeal Carlo
Maria Martini, dizia desta maneira: “Jesus pergunta: será que o Filho
do Homem, quando voltar, encontrará fé? Ele não pergunta: ‘Encontrarei uma
Igreja grande e bem organizada?’”.
Para Francisco, a crise não é uma oportunidade
para reestruturar as instituições.
É um momento para refletir e perguntar o que
pode ser feito para garantir que
todos os aspectos da vida eclesial se
concentrem na evangelização missionária,
para que ela se aproxime da Igreja dos
primeiros séculos.
O
derrotismo, declara Francisco na Evangelii gaudium, “nos
transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara de vinagre” [n.
85]. O papa quer:
* uma Igreja
voltada para fora,
* em
permanente estado de missão e
* focada nos
pobres,
* em vez de
ter um olhar voltado para dentro e autorreferencial.
“Não gastem
tempo e recursos demais olhando-se no espelho, elaborando planos autocentrados
nos mecanismos internos, em funcionalidades e competências do próprio aparato. Olhem
para fora”, disse o papa em uma mensagem enviada às Pontifícias Obras
Missionárias na semana passada. “Quebrem todos os espelhos de casa!”
CARLO MARIA MARTINI (1927-2012) Cardeal, biblista, teólogo e escritor italiano |
1. Simplicidade missionária
Então, como
a Igreja emergirá da pandemia e como será? Eu sugiro que haverá quatro
“marcas” da Igreja no mundo pós-Covid-19.
A primeira
é a simplicidade missionária. O coronavírus
está forçando a Igreja a se concentrar em sua mensagem principal. Ao longo do
seu pontificado, a mensagem do papa à Igreja tem sido simples: concentrar-se
em levar as Boas Novas de Jesus Cristo às “periferias”, aos lugares onde se
encontram os mais vulneráveis, os mais pobres e os esquecidos.
Uma Igreja
de discípulos missionários será marcada pela sua simplicidade. Não “erigirá
obstáculos” para as pessoas que buscam a fé. “Por que complicar algo tão
simples?”, pergunta o papa na Evangelii gaudium ao falar sobre o
clamor dos pobres e a necessidade da misericórdia de Deus. “Jesus nos ensinou
este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus
gestos. Para que ofuscar o que é tão claro?” [n. 194]. Essa Igreja da
simplicidade missionária também será caracterizada pela alegria em meio às
dificuldades e por uma abertura ao Espírito Santo, o agente da verdadeira
reforma. “A alegria se adapta e se transforma, mas sempre permanece”,
enfatiza o papa.
2. Foco nos pobres
A segunda
“marca” da Igreja emergente será que, embora possa ser menor, será mais
focada nos pobres. É inevitável que a crise econômica global causada pelo
confinamento levará a uma “peneiração” de certos órgãos e instituições da
Igreja e o fechamento de algumas paróquias e atividades, por causa da queda na
renda e nos números.
Mas, ao
longo da história da Igreja, houve uma “poda” seguida por um novo crescimento. Agora
é a hora de discernir quais estruturas “podem chegar a condicionar um dinamismo
evangelizador”, como Francisco afirma, e quais o servem [n. 26].
Se a Igreja
for menor, será caracterizada pelo serviço:
* da ajuda
aos destituídos até
* a educação
dos mais necessitados,
* passando
pelo fato de estar ao lado daqueles que lidam com a sua saúde mental.
O
desemprego e as dificuldades financeiras que ocorrerão por causa da Covid-19 e
que afetarão mais os mais pobres tornarão a missão social da Igreja mais vital
do que nunca.
Uma
instituição mais ágil, mais clara em suas prioridades, mais capaz de responder
às necessidades maiores pode agir como fermento na sociedade. Jesus, disse o
papa à comunidade católica de Marrocos no ano passado, “colocou-nos no meio da
sociedade como um punhado de fermento: o fermento das Bem-aventuranças e do
amor fraterno, pelo qual, como cristãos, todos podemos nos unir para tornar
presentes o seu Reino”.
3. Relação renovada com o mundo natural e a
ciência
A terceira
marca que caracterizará a Igreja no mundo pós-Covid-19 será uma relação
renovada com o mundo natural e com a ciência. Ao fechar os edifícios da
igreja e suspender suas liturgias, as lideranças da Igreja estavam respondendo
a conselhos científicos.
A fé não se
opõe à razão ou à ciência. A relação entre fé e ciência é de enriquecimento
mútuo. Francisco já demonstrou isso com a Laudato si’, que reúne a
espiritualidade de Francisco de Assis e a melhor ciência sobre a proteção do
ambiente.
E funciona
nos dois sentidos. Brune Poirson, ministro
da Ecologia da França e não crente, elogiou a Laudato si’ – que neste
mês completou seu quinto aniversário – dizendo à publicação francesa La Vie
na semana passada que não pode haver “transição ecológica” sem uma
compreensão do transcendente.
BRUNE POIRSON Ministra da Ecologia da França |
“Desde o
início, a resposta pastoral de papa Francisco à pandemia levou em consideração
as recomendações de cientistas e especialistas médicos”, apontou Richard
Galliardetz, presidente do Departamento de Teologia do Boston College. “Uma
das características mais notáveis da encíclica Laudato si’ do Papa
Francisco foi a atenção que ela dedicou às ideias da ciência moderna.”
Galliardetz
levanta uma pergunta surpreendente: “O catolicismo poderia sair da pandemia,
sob a liderança de Francisco, situado de forma singular para demonstrar ao
mundo moderno que a crença na ciência moderna não precisa ser sacrificada
sobre o altar da crença religiosa?”
4. Criatividade litúrgica e pastoral
A quarta
característica, e talvez a mais delicada, será a criatividade litúrgica e
pastoral. A Igreja já está encontrando novas formas de levar os
sacramentos e a mensagem do Evangelho aos fiéis no contexto das restrições
à saúde pública.
“O desafio mais difícil é a liturgia:
tudo parece estar focado na missa e
não em outras experiências litúrgicas
possíveis”,
explicou Massimo Faggioli, historiador da
Igreja e professor de teologia
na Villanova University.
“Isso
mostra os limites da recepção dos ensinamentos do Vaticano II sobre as
Escrituras.”
É provável
que os ritos virtuais continuem sendo populares, e, à medida que as restrições
forem levantadas, as pessoas poderão ir à missa com menos frequência. O
mundo pós-Covid-19 exigirá que os católicos assumam mais responsabilidade pela
própria fé, exigindo uma mudança para um discipulado
ativo em vez de serem meramente “consumidores religiosos” passivos.
A
criatividade será mais importante, como o surgimento de:
* missas
ao ar livre,
* liturgias
domésticas,
* orientação
espiritual via Zoom e outras inovações.
Como
ressalta o Pe. Zampini-Davies, “nós não
somos os donos da graça de Deus”.
MASSIMO FAGGIOLI Historiador da Igreja |
Há
um perigo, segundo Faggioli, de que a pandemia não apenas acelere as
tendências secularizantes, mas também force uma desaceleração de uma das
principais maneiras pelas quais o Papa Francisco espera dar vida à Igreja
prevista pelo Concílio Vaticano II: a sinodalidade.
Grandes
reuniões da Igreja, como os sínodos, não serão possíveis em curto prazo. A Igreja
australiana já suspendeu por 12 meses o Concílio Plenário que estava preparando
para realizar em outubro deste ano. “Roma e as Igrejas locais devem
encontrar uma forma de manter a sinodalidade”, diz Faggioli.
O mundo
está olhando para o cristianismo em busca de liderança, para nos ajudar a
entender a espiritualidade da tragédia da Covid-19. Galliardetz sugere que o
Papa Francisco pode sair da pandemia com uma reputação de líder pastoral
aumentada, em contraste com “alguns prelados que agiram como se o batismo cristão
oferecesse a sua própria inoculação contra as doenças”.
A Covid-19
atingiu duramente os cristãos e os seguidores de todas as religiões. O
confinamento coincidiu com a Páscoa, afastando as pessoas da preciosa força
vital dos sacramentos no ponto alto do ano litúrgico. No entanto, também há
sinais de uma vida nova – e da possibilidade de uma Igreja emergir da crise
mais focada em sua missão principal e em confiar na promessa deixada por Jesus
de “fazer obras ainda maiores do que estas” (João 14,12).
Traduzido
do inglês por Moisés Sbardelotto.
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