Jogando com vidas humanas
Desordem
e retrocesso
Rosângela Bittar
Jornalista
Em vez de uma política nacional, o Brasil tem
27 opções de enfrentamento do coronavírus - e o presidente da República
trabalhando contra todas elas
ROSÂNGELA BITTAR |
O Brasil
não foi bem, até aqui, dois meses depois de identificada a pandemia, no
enfrentamento da covid-19. Ressalvado o esforço heroico de profissionais da
saúde e a responsabilidade dos governadores em procurar fazer o certo, ficamos
para trás. Por incompreensão do presidente da República, Jair Bolsonaro,
sobre o momento histórico que fez coincidir seu mandato no comando da Nação com
uma doença de extermínio.
Mostrou-se
tonto, desordenado e em fuga da realidade.
Como sua
perspectiva foi a da negação, aconteceu o pior: nada aprendeu com os erros do
presente para consertar e preparar o futuro. Não fez, por exemplo, um plano
sério de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), que se revelou,
na crise do coronavírus, um espetacular instrumento de ação governamental.
Os Poderes
Legislativo e Judiciário deram tímida contribuição, mas foram pouco demandados.
A Presidência da República é que exerce o poder administrativo e cotidiano
de fato, além do exemplo a ser seguido. Esteve, porém, abaixo da omissão
que se poderia tolerar.
Não há uma
política de enfrentamento da doença. O que há é um conjunto de
opiniões, contraditórias no essencial, sobre como encará-la e enfrentá-la. E
até como conceituá-la e avaliar seus efeitos em profundidade.
Bolsonaro
ora não reconhece a existência da pandemia ora se apega a uma informação de que
ela está indo embora. O que se faz é, primeiro, emergencial; segundo, setorial;
terceiro, descoordenado; e, quarto, livre de estratégia.
No meio da
crise e do caos, o presidente trocou o ministro da Saúde, com escárnio e
requintes de ingratidão, porque seguia orientação da OMS e não a sua ideia
particular sobre como deveria ser recebido e tratado o vírus. O novo técnico do
time pediu tempo. E o presidente manteve sua cruzada nacional sobre a falsa
questão que abraçou e nela persiste, a do antagonismo entre a saúde (preservada
no isolamento social) e o emprego (garantido pela abertura do comércio).
A pandemia
é mortal e exige intervenção firme e profunda da medicina e da
ciência, havendo perspectiva de controle só quando houver vacina. Mas, por
aqui, ficamos na mão de um leigo inconformado por não ser obedecido por um
vírus.
JAIR BOLSONARO incomodado e não sabendo usar sua máscara |
Bolsonaro é
ativista da liberação da quarentena e da normalidade da vida urbana, não
importam as consequências. É notório que atribui irrelevância à doença,
contagiosa, que mata a população que governa e quer ver nas ruas. Seu
chanceler traduziu bem o que pode ser o pensamento também do presidente, este é
um vírus inventado por comunistas para acabar com seu governo e impedir sua
reeleição.
O governo
não acompanha seu raciocínio, mas não tem condições ou forças para demovê-lo. A
impressão dominante em Brasília é de que a impaciência do presidente com a
pandemia, que veio atrapalhar seus planos, está próxima de levá-lo a decisões
radicais.
Seu
desespero para desqualificar a saúde e criar uma situação de um mundo já sem
pandemia o levou a autorizar a divulgação de um plano de recuperação econômica,
já engavetado. Preparado numa emergência, era um esboço de boa notícia, porém
falsa. A pandemia não acabou e não há dinheiro para isso, seja lá o que venha a
ser quando ficar pronto.
O
presidente está na contramão do seu modelo, o presidente dos Estados Unidos, na
contramão de países em desenvolvimento e de todos os que reafirmaram sua
condição de primeiro mundo ao enfrentar a pandemia do jeito certo.
Em vez de
uma política nacional, o Brasil tem 27 opções de enfrentamento do coronavírus
[número de estados mais o Distrito Federal] e o presidente da República
trabalhando contra todas elas.
Fonte: O
Estado de S. Paulo – Especial Coronavírus – domingo, 3 de maio de
2020 – Página H6 – Internet: clique aqui.
Enquanto isso...
Crise
trazida pelo coronavírus acelera o empobrecimento do brasileiro
Érica Fraga
Em 2000, renda no Brasil era 9% maior que a
média mundial;
neste ano, deve ser 19% abaixo da média
Filas e aglomerações de pessoas em agência da Caixa Econômica Federal: símbolo de desorganização e desrespeito com a população! |
A crise
econômica causada pelo novo coronavírus deverá acelerar o empobrecimento do brasileiro
em relação à média da população mundial, iniciado em 2015.
Segundo
dados da consultoria britânica EIU (Economist Intelligence Unit), a
renda per capita do Brasil recuará de US$ 16.670, no ano passado, para US$
15.910, em 2020.
Esses
valores são aferidos em paridade do poder de compra (PPC), medida que
considera e nivela as diferenças nos custos de vida dos países para permitir
comparações internacionais.
Se a
projeção da consultoria se confirmar, a renda média do brasileiro encerrará
este ano 18,6% abaixo da média mundial, que deverá cair para US$ 19.550, um
pouco abaixo dos US$ 19.730 registrados no ano passado.
A diferença
reflete uma forte reversão ocorrida nos últimos anos. Em 2000, a renda per
capita do Brasil (em PPC) era 9% superior à do cidadão global médio. Essa
vantagem relativa se manteve — ora maior, ora menor — até 2014, quando teve
início uma das mais severas recessões da história do país.
A crise
colocou o Brasil em uma espiral de empobrecimento tanto absoluto — a renda
per capita em reais caiu — quanto relativo, levando o poder aquisitivo
de países diversos, como China, Costa Rica, Botsuana e Iraque, a ultrapassar o
do brasileiro.
A lenta
retomada da economia a partir de 2017 não foi suficiente para alterar esse
processo de distanciamento entre a renda brasileira e a de outros países, e,
com a crise econômica provocada pela pandemia de Covid-19, a situação tende a
piorar.
A EIU,
braço do grupo que publica a revista The Economist, foi uma das
primeiras a reduzir, drasticamente, sua projeção para o PIB (Produto Interno
Bruto) do Brasil, após a eclosão do coronavírus. A consultoria espera uma
contração de 5,5% da atividade econômica do país neste ano.
Logo em
seguida, o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional) também
ajustaram significativamente suas estimativas. As duas instituições
multilaterais projetam recuos de 5% e 5,3%, respectivamente, do PIB brasileiro
em 2020.
Estagnado
há uma década, poder de compra brasileiro se distancia do de chineses,
uruguaios e chilenos. Veja o gráfico abaixo:
Renda per capita em 2010 (em US$, ajustados pela paridade do poder de compra)
Singapura
Estados Unidos
Alemanha
Reino Unido
Coreia
Chile
China
Botsuana
Mundo
Tailândia
Costa Rica
Iraque
Brasil
Colômbia
Índia
Entre os
analistas brasileiros, as projeções, compiladas pelo Banco Central, vêm se
deteriorando semana após semana e, atualmente, indicam uma recessão de 3,3%.
“Esse foi
um golpe terrível justamente quando o Brasil parecia se levantar de novo e
caminhar para um crescimento superior a 2% de forma mais sustentável”, diz
Robert Wood, economista-chefe da EIU para a América Latina.
Ele destaca
que, embora o cenário do país ainda fosse frágil, o desemprego vinha caindo
lentamente e havia alguma perspectiva de reformas estruturais, como a
tributária, apesar do ruído político.
Agora,
afirma o analista, o Brasil terá algum poder de fogo para mitigar o efeito da
pandemia, mas não tanto quanto outros países.
“Por isso,
o sofrimento, particularmente dos mais pobres, será mais severo no Brasil”, diz Wood.
“E há o
desafio extra de implementar os programas de assistência anunciados, como os vouchers
[de R$ 600] para os mais vulneráveis, em um contexto de alta informalidade e
fraquezas institucionais”, completa ele.
No primeiro
trimestre do ano, 1,218 milhão de pessoas ficaram desempregadas — dois
terços deles atuavam na informalidade —, levando a taxa de desocupação a
subir para 12,2%, segundo o IBGE.
Desigualdades sociais e econômicas deverão aumentar, ainda mais, no Brasil |
Descoordenação
e turbulências políticas agravam a situação
De acordo com Wood, o cenário brasileiro é
complicado também pela falta de consenso e coordenação em relação às medidas de
afastamento social contra a Covid-19.
“Isso é
algo problemático, que não tem sido tão visto em outros países onde há maior
unidade de propósito, incluindo até os Estados Unidos”, afirma o especialista.
A fraqueza
anterior da economia brasileira, somada à turbulência institucional
recente e à falta de coordenação nas respostas à pandemia, pode agravar a
crise econômica.
A queda de
5,5% esperada pela EIU para o Brasil é mais do que o dobro da contração de 2,5%
projetada para a economia global.
Isso
contribuirá para aumentar o crescente hiato de renda que separa o Brasil da
média mundial e de outros emergentes, como a China.
Segundo a
consultoria britânica, apesar de sofrer uma forte desaceleração, a atividade
econômica no país asiático encerrará 2020 com uma pequena expansão de 1%.
Com isso, o
poder aquisitivo do brasileiro (em PPC) ficará quase 30% abaixo do chinês neste
ano. Essa distância representa uma mudança brutal em relação ao verificado no
início da década de 1980, quando a renda per capita brasileira era 15 vezes
maior do que a chinesa.
Segundo o
economista Samuel Pessôa, mesmo se considerados apenas os últimos anos, o
distanciamento entre os dois países foi significativo. Isso porque o PIB per
capita chinês (em PPC) atingiu o mesmo nível que o brasileiro apenas em 2016.
“Essa
abertura de quase 30% de diferença em apenas quatro anos é muito grande”, diz ele,
que é colunista da Folha e pesquisador do Ibre-FGV.
“Isso é
fruto da nossa tragédia e do desempenho espetacular da China”, afirma.
O
economista ressalta que há limites para a replicação das políticas adotadas no
país asiático, que vive sob um regime autoritário, em nações democráticas, como
o Brasil.
“Eles têm
atrasado o processo de urbanização e, portanto, o crescimento desordenado das
cidades, porque restringem a mobilidade das pessoas”, cita o economista.
Escola da Coreia do Sul |
Lições
dos países asiáticos
No entanto,
há aspectos reproduzíveis do desenvolvimento de países asiáticos, como a valorização
da educação e a preocupação com a poupança.
“Nesses países, não há servidores públicos
com renda como a do Brasil,
não tem criança não estudando, o consumo
é mais moderado e
as famílias têm reservas”,
diz.
Na América
Latina, alguns desses fatores que conduzem ao crescimento não são tão presentes
como na Ásia. No Brasil, tanto a taxa de poupança quanto a de investimento
estão, há anos, estagnados em patamares muito baixo e a qualidade da
educação permanece baixa.
Mas, de
acordo com Pessôa, há países na região que têm conseguido melhor desempenho
relativo, como Chile, Colômbia e Peru.
Para
analistas, o fato de o Brasil ter sido atingido pela pandemia com a economia
ainda desequilibrada poderá complicar o cenário de recuperação do país mais do
que o de outras nações.
Wood, da
EIU, diz que uma de suas preocupações é o impacto negativo que o inevitável
aumento da já elevada dívida pública brasileira terá sobre as finanças do
governo.
Outra é o
risco de que muitas pequenas e médias empresas sejam afetadas de forma
permanente e acabem falindo. Esses dois fatores, diz o analista, limitarão
o potencial de crescimento do Brasil nos próximos anos.
De acordo
com especialistas, seria positivo se os efeitos devastadores da crise criassem
ímpeto para a realização de reformas necessárias que vinham sendo discutidas
antes da pandemia, como a tributária.
“Há frentes
nas quais podemos avançar, como aumentar os impostos pagos por profissionais
de renda alta que atuam como PJs [pessoas jurídicas]”, afirma
Pessôa.
Wood acrescenta
que, após a pandemia, os investidores observarão o avanço do Brasil em sua
agenda de reformas. Mas, para ele, a proximidade do ciclo eleitoral de 2022 e o
cenário político conturbado tornam as perspectivas de progresso nessa frente
mais sombrias.
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