O preço de uma pandemia
Covid-19
aumentará desigualdade em hora muito infeliz para Brasil
Fernando
Canzian
Entrevista
com Walter Scheidel
Historiador
austríaco, Professor de História Antiga na Stanford University (EUA)
Para austríaco Walter Scheidel, pandemia
reflete diferenças
na distribuição do desemprego e favorecerá
quem já tem
melhores oportunidades
WALTER SCHEIDEL |
O
historiador austríaco Walter Scheidel, 53, produziu um marco ao publicar, em
2017, o best-seller "The Great Leveler", que agora chega ao Brasil
como "Violência e a História da Desigualdade - Da Idade da Pedra ao
Século 21" [Editora Zahar, 2020, 616 páginas].
No livro, o
professor de história antiga da Universidade Stanford, na Califórnia, argumenta
que a concentração de renda no mundo têm sido a regra ao longo dos tempos,
não uma exceção provocada por disfuncionalidades econômicas.
Apoiado em minuciosa
pesquisa, o autor sustenta que a desigualdade
jamais diminuiu de forma pacífica.
Quando
caiu, sempre houve episódios violentos, combinados ou não, que Scheidel chama
de “quatro cavaleiros niveladores":
* Estados em
colapso,
* revoluções
transformadoras,
* grandes
guerras ou
* pandemias
catastróficas.
Ao longo da
história, essas ações niveladoras (leveler, em inglês) aumentaram
ou mantiveram constante a remuneração do trabalho, enquanto, por outro lado,
reduziram ganhos de capital no topo da pirâmide.
Grandes
guerras levaram à necessidade de maior taxação sobre os ricos e de
intervenções posteriores para ajudar os mais pobres. Revoluções, como a
russa e as chinesas no século 20, ou Estados em colapso reduziram a
influência de classes dominantes.
Episódios
como a peste negra na Europa, em meados dos anos 1300, inflacionaram o
valor da mão de obra ao dizimar boa parte da população.
Nesse
contexto, seria a pandemia da Covid-19 uma força niveladora? Para
Scheidel, ela não tem essa dimensão. Ao contrário, a não ser que a crise
econômica atual provoque uma disrupção profunda, o coronavírus poderá tornar
o mundo ainda mais desigual.
Para o
historiador, nesse contexto, o Brasil está em um momento “muito infeliz”.
Eis a
entrevista.
O
sr. menciona quatro “cavaleiros niveladores”. Temos uma pandemia global, mas
vivemos em um mundo moderno, com ciência, hospitais e UTIs. O coronavírus pode
ter um efeito nivelador?
Walter
Scheidel: Essa pandemia é diferente não só por causa da medicina, mas
por causa do vírus. Mesmo se não tivéssemos nenhum tipo de tratamento, ele
provavelmente não mataria tanta gente quanto as pandemias do passado. A
gripe espanhola foi bem mais severa, especialmente entre os jovens.
Nesse
sentido, não teremos choque demográfico ou diminuição da mão de obra que
levem os salários para cima. A desigualdade não será reduzida por esse
mecanismo. Ao contrário, no curto prazo não há dúvida de que ela deve crescer,
refletindo as diferenças na distribuição do desemprego em setores distintos.
Também já vemos o mercado de ações se recuperando em meio a forte aumento do
desemprego. Tudo isso favorecerá quem já tem melhores oportunidades.
A questão é
se ao final desse processo não haveria uma redução da desigualdade como
consequência das políticas adotadas contra a pandemia. Mas também não seria
otimista, pois a história mostra que só há grande potencial transformador
quando a crise é muito profunda.
Essa
pandemia vem sendo razoavelmente bem administrada, com os bancos centrais intervindo
para manter as economias à tona e políticas de curto prazo para impedir que a
pobreza exceda um certo limite. São ações que tendem a preservar a ordem
estabelecida. A crise teria que sair totalmente do controle, com o mundo
entrando em algum tipo de depressão que nos levasse a uma situação parecida com
a dos anos 1930. Ou se o vírus não pudesse ser controlado no futuro nem por uma
vacina.
Como
o sr. vê as perspectivas do Brasil? O sr. já mencionou no passado que o país
fazia um trabalho interessante no governo Lula, com programas voltados aos mais
pobres. Agora, temos um governo supostamente liberal e uma pandemia.
Walter
Scheidel: O momento para o Brasil e para a América Latina é muito
infeliz. A primeira década deste século foi muito positiva, e não apenas para o
Brasil. Houve um boom econômico, mudanças políticas que levaram a uma
maior distribuição de renda e políticas para a educação. Muitas coisas juntas
ocorreram no momento de um boom de demanda da China por commodities.
Isso ajudou
a reduzir as desigualdades, mas os problemas começaram a aparecer cedo na
década atual, e a tendência de equalização social parou repentinamente. A
partir daí houve uma mudança política radical que não chega a surpreender se
levarmos em conta o quão profundamente arraigado está o conservadorismo nessas
sociedades. Isso talvez fosse até inevitável. E tudo talvez fique ainda pior
com a crise em andamento agora.
Eu ficaria
bastante pessimista em relação às perspectivas de o Brasil conseguir retomar
uma trajetória de diminuição de suas desigualdades como o fez há 10 ou 15 anos. A não ser
que, como disse, as coisas fiquem tão ruins que a pressão para mudanças seja
muito grande. E, apenas, se livrar do atual governo talvez não seja o
suficiente. Teria de haver um descontentamento muito grande entre os pobres
e mesmo na classe média para que algo assim pudesse ocorrer.
O
mundo viveu um significativo aumento da desigualdade nos últimos 40 anos. Não
houve grandes guerras, revoluções ou epidemias. A desigualdade é mesmo o
normal?
Walter
Scheidel: Temo que sim. Quando há um período de estabilidade, e
temos tido algo assim desde 1945 na maior parte do mundo, isso tende a
favorecer a desigualdade. Basicamente porque as pessoas que têm suas
vantagens tendem a preservá-las quando não há rupturas capazes de mudar o
estado das coisas.
Quanto mais
o tempo passa, mais a renda e a riqueza acabarão concentradas no topo. No máximo
a desigualdade vai se estabilizar em um nível muito alto, como temos visto em
alguns países. Historicamente, vemos um alto grau de desigualdade sempre
esperando pelo próximo choque para mudar as coisas. De um modo mais geral, os
países têm mantido as mesmas trajetórias em relação à desigualdade por várias
gerações. Os níveis divergem, mas a trajetória é a mesma.
Se
por um lado nunca tivemos na história recente um nível tão alto de desigualdade,
também nunca tantas pessoas deixaram a miséria e a pobreza para trás, sobretudo
na Ásia.
Walter
Scheidel: Se as duas únicas escolhas fossem sermos todos pobres
ou sermos menos pobres, mas mais desiguais, provavelmente escolheríamos
a segunda opção. Mas creio que essas não sejam as únicas saídas. Idealmente
poderíamos pensar em um cenário onde haveria crescimento econômico e os pobres
deixassem de ser pobres sem que a desigualdade aumentasse muito.
O
sr. acaba de lançar "Escape from Rome" (Fuga de Roma; ainda
não publicado no Brasil). Do que se trata?
Walter
Scheidel: O livro fala sobre os diferentes aspectos que tornaram o
mundo moderno. Tem a ver com o fato de que, desde o fim do Império Romano,
há 1.500 anos, a Europa nunca mais foi unificada sob um império e viveu um
período de grande competição e fragmentação não só entre países, mas
internamente.
Esse tipo
de ambiente, muito pouco usual em termos históricos, foi central em permitir
alguns desdobramentos que não veríamos de outro modo na história. Estamos
falando de crescimento econômico, da criação de instituições independentes,
de ciência, de conhecimento. Mesmo o colonialismo europeu foi produto dessa
competição, levando os europeus para todos os cantos do mundo.
Tudo isso
foi estimulado pela competição entre eles, que era grande na Europa e
extrapolou para o mundo. Isso tudo criou uma condição fértil para a
modernidade e a industrialização. Em um certo sentido, o mundo teve que
escapar de Roma, um império monopolístico, para que tudo isso pudesse
acontecer.
Sobre
esse ponto, antes mesmo do coronavírus já assistíamos a uma tendência de os
países se fecharem, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, com o
multilateralismo em xeque. Isso vai piorar?
Walter
Scheidel: Eu tendo a ser conservador nesse ponto. Vejo muitas pessoas
dizendo que tudo vai mudar de uma forma dramática, mas não estou seguro disso.
Certamente algumas coisas vão mudar na margem. O fluxo de mercadorias e
capitais provavelmente continuará mais ou menos inalterado. O de pessoas
talvez seja outra história nos próximos anos, mas isso não necessariamente será
duradouro ou afetará a integração econômica.
É bastante
provável que o crescimento econômico baseado na globalização continue sendo a
regra, embora em ritmo mais lento. Mas a epidemia vai acelerar tendências
que já vinham ocorrendo. Se a China conseguir proteger a sua
população e recuperar a produção ao nível anterior à crise e os outros países
falharem nisso, os chineses vão emergir em uma posição bem mais forte.
Mas isso só
vai acelerar uma tendência, pois a China está nesse caminho há décadas.
É mais ou menos como na crise de 2008 na Europa. Ela exacerbou problemas que já
estavam latentes. Há algumas coisas que podemos esperar, como:
* o
fortalecimento da China,
* o
enfraquecimento do federalismo entre o governo central e os estados nos Estados
Unidos,
* uma maior
fragmentação na Europa e
* um aumento
do populismo na América Latina.
Mas são
tendências que estão aí há algum tempo. Só serão amplificadas por essa crise.
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