Leia esta “Carta Aberta”
Carta
aberta à Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil
Celso Pinto
Carias
Sobre o papel da Igreja Católica
no Brasil que, hoje, vivemos
CELSO PINTO CARIAS Teólogo católico |
«A fé
cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o
carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde
sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo:
a CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um
grande debate virtual para garantir a democracia», escreve Celso Pinto
Carias, doutor em Teologia pela PUC-Rio, assessor das CEBs do Brasil e do Setor
CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB e, nas palavras do
autor, "um mendigo de Deus".
Eis a
carta.
“Como
sou pouco e sei pouco,
faço o
pouco que me cabe
me dando
por inteiro”
(Ariano
Suassuna)
No dia
seguinte a exibição da reunião ministerial [do dia 22 de abril] liberada
pelo ministro do Supremo Celso de Melo, um padre muito meu amigo fez um pedido
inusitado: fazer uma nota pedindo que a CNBB se pronunciasse a respeito.
Respondi dizendo que não estava muito inspirado, pois me sentia navegando em um
barco à vela, sem vento, sem bússola e em uma noite sem estrelas. E certamente,
a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] não faria tal nota. Mas
este padre é um santo homem, e aí resolvi escrever esta carta aberta. Não
sei se vai ao encontro do amigo. Mas vou tentar.
Mais
algumas coisas, além da santidade do padre, motivaram-me. Lembrei-me de um
filme que eu e família assistimos na semana passada: “A menina que roubava
livros”. Em uma cena na qual um judeu está sendo levado pelos nazistas,
conhecido dos moradores da localidade de longa data, e um personagem vai ao
encontro da polícia dizer que o judeu era um bom homem. É empurrado e bate com
a cabeça no chão. Em casa a menina pergunta: “Por que eles fizeram isto com o
senhor?” Resposta: “Minha ação tentou mostrar a humanidade deles, e neste
momento eles odeiam isso”. A outra foi o término da homilia de domingo
passado (24/05) do padre que acompanha a Comunidade que participo (Batismo do
Senhor) em Duque de Caxias, RJ (Estamos fazendo orações simultâneas duas vezes
por dia pelo Whatsapp e domingo comungamos da Palavra, claro em nossas casas. O
padre faz uma breve homilia). No final ele disse: “Jesus é a nossa
humanidade junto de Deus”. E ainda encontrei a frase do Suassuna no Facebook de um amigo.
Ora, em que
uma cartinha “mixuruca” poderia alterar neste quadro um tanto quanto
desolador? Não sei. Mas sei que não quero sentir minha humanidade se esvaindo,
e como seguidor de Jesus Cristo gostaria, pela mediação Dele, sentir minha
humanidade junto de Deus. E aí, resolvi dizer algumas palavras.
Na
Conferência de Aparecida, em 2007, os bispos da América Latina e do Caribe já
observaram que estamos diante de uma grave crise. Crise que vem se
aprofundando, e em vários níveis: social, político, econômico e cultural. E
agora, diante de tal crise, aparece a pandemia pelo coronavírus. E se a
covid-19, doença provocada pelo vírus, parasse de matar agora, já teria causado
uma das mais violentas tragédias dos últimos tempos. Muitos podem perguntar: “E
daí? Vamos rezar pelo fim da crise e da pandemia e pronto”. Porém, não
posso me conformar com isso. A oração é antes
mais nada um ato de comunhão com Deus, e não um balcão de negócios.
Não posso
me conformar que uma primeira iniciativa, logo no início do isolamento, de
algumas dioceses, tenha sido organizar como o dízimo seria pago. Evidentemente
sei da necessidade da manutenção. Sei também, principalmente, que graças a
Deus, muitas iniciativas de solidariedade surgiram e continuam a acontecer. Mas
a situação é muito grave. Grave porque há uma crise que ultrapassa uma
doença virótica altamente perigosa. E por favor, quem diz não é um modesto
teólogo da Baixada Fluminense, mas a grande maioria dos infectologistas e
centros de pesquisa do mundo, das mais diversas concepções ideológicas.
AGOSTINHO DE HIPONA - Santo Agostinho (354-430) Bispo e um dos maiores filósofos e teólogos de todos os tempos |
Muita dificuldade
para entender como setores que se afirmam cristãos, com um legado cultural que
fez surgir de Agostinho a Teilhard de Chardin, homens e mulheres inspirados
pelo Caminho de Jesus, com enorme capacidade de diálogo com a realidade da
vida, possa reduzir a análise do que está acontecendo pelo víeis moral e com
concepções ideológicas de baixíssimo valor intelectual.
Não é possível, repito, não é possível, que depois de
tantas figuras emblemáticas na realidade cultural, ainda haja cristãos e
cristãs que se colocam do lado da mais absurda ignorância.
Bem antes
da pandemia, quando algumas revelações começaram a aparecer quanto ao governo
atual, um bispo me disse: “Tudo bem, o importante é que tiramos a esquerda”.
Depois da queda do Muro de Berlim, o que é esquerda e direita? Diria o
meu mestre na arte de refletir teologia: “O dualismo antropológico platônico
continua forte, gordo e corado”. O bem e o mal, anjos e demônios, fé e
vida, e por aí vai. Um maniqueísmo que parece não cessar nunca. É difícil compreender
que Deus criou a vida por inteiro? Que não há competição entre corpo e
alma? Que é uma unidade?
Não se
trata de defender governo “A” ou atacar governo “B”. Não se trata de “torcer”
para dar certo ou errado, como se estivéssemos em um torneio de política. A
realidade política, social e econômica é bem mais complexa que uma partida de
futebol. “Ah, tá bom, a reunião foi ridícula, mas é melhor defender a
família, Deus, etc. do que aqueles ladrões e aborteiros esquerdistas”. Custo
a acreditar que pessoas com formação filosófica e teológica façam análises tão
rasteiras.
Pergunto-me,
apenas pergunto, se por trás de desculpas tão grosseiras não estaria uma
perspectiva de manutenção de privilégios. Rotula-se determinados conceitos
como demoníacos e aí nenhum debate prospera.
Cultiva-se ódio, prega-se violência,
apoiam-se em fundamentalismos bíblicos
que estão superados faz décadas, para iludir
um povo muito religioso
e que sempre sofreu sob o impacto da
injustiça.
Recordam
que havia teologia para justificar a escravidão? Alguém é
capaz de negar?
Irmãos e
irmãs. A situação é dramática. Sabe-se que
já havia uma crise econômica que espreitava o planeta. A pandemia certamente
será uma grande justificativa para aprofundar ainda mais dores e sofrimentos ao
povo. E todos nós que trabalhamos com o simbólico não podemos ser
instrumentalizados pelo poder da acumulação, mas devemos estar a serviço do
outro e da outra. Devemos lavar os pés uns dos outros. Ou achamos que o serviço
foi só um teatro de Jesus de Nazaré? “Tende em vós o mesmo sentimento de
Cristo Jesus” (Filipenses 2,5).
Assim
sendo, somos interpelados, em profunda comunhão com o Pai, por meio de Jesus
Cristo, em unidade com o Espírito Santo, a agir como homens e mulheres que acreditam
no Amor de Deus. Nestes dias o Evangelho de João tem nos alertado que
poderemos sofrer tribulações. Mas vamos nos omitir?
Durante a
pandemia devemos escutar a voz de quem estuda com profundidade tal situação.
Podem errar? Naturalmente. Mas na dúvida não ultrapasse. Por que pressa em
abrir as igrejas? Parecemos àqueles setores que acreditam ser a economia
mais importante que a vida. E o Papa Francisco já alertou: “Esta economia mata” (Evangelii Gaudium, 53).
A pandemia nos alerta para reconstruir o caminho espiritual de nossa fé que
pode estar centrada em prédios e não na Comunidade propriamente. Que pode
estar centrada em vaidades pessoais na lógica do sucesso midiático.
Voltemos a sinodalidade da origem de nossa fé. Mais do que nunca é preciso
caminhar juntos.
A fé
cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o
carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde
sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo: a
CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um grande debate
virtual para garantir a democracia. A Igreja sozinha não consegue. Sozinho
ninguém consegue. Mas podemos tentar unir todos os setores sociais que
acreditam que os direitos humanos são valores fundamentais desenvolvidos
pelo mundo moderno, e não uma ONG para defender bandidos.
Pelo amor
de Deus. Não existe intervenção militar democrática. Sabemos que a democracia
não é perfeita. Aliás, a democracia representativa já deu sinais claros de
esgotamento. Precisamos caminhar para uma democracia
participativa. Mas como diria Winston Churchil: “A democracia é a
pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Não deixemos que a
institucionalidade cristã, mas uma vez, precise no futuro explicar por que se
deixou envolver com o que tem de pior na sociedade. Que um futuro papa não
tenha que repetir o grandioso gesto de São João Paulo II em pedir perdão por
erros que foram cometidos no passado.
Sejamos
capazes de nutrir aquela esperança apocalíptica dos primeiros tempos:
“Eis
a tenda de Deus com os homens.
Ele
habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele,
Deus-com-eles, será o seu
Deus.
Ele
enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte,
nem luto, nem
clamor, e nem dor haverá mais.
Sim! As coisas antigas se foram!”
(Ap
21,3-4)
Nota
do autor
Pela Graça
de Deus sou doutor em Teologia pela PUC-Rio. Consegui até publicar livros.
Hoje, além de professor na PUC, sou assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs
da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB. Mas gosto de me
apresentar como “mendigo de Deus”, expressão que encontrei em livro de
teologia para designar o trabalho teológico: um pedinte diante de Deus.
Que Ele tenha
misericórdia do nosso Brasil, sobretudo dos excluídos morrendo de covid-19
e familiares recebendo o atestado de óbito como Síndrome Respiratória Aguda
Grave (SRAG) sem ter o luto respeitado.
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