A direita...
“As
direitas atuais não guardam relação alguma com a verdade e a ética”
Silvina
Friera
Página/12
– Buenos Aires (Argentina)
28-05-2020
Entrevista
com Jorge Alemán
Psicanalista
argentino, radicado na Espanha
“Não acredito que haverá um colapso quando a
pandemia sanitária
for controlada, de fato, a maioria dos
governos dos países ocidentais
quer sair da crise sanitária, não como dizem
para salvar vidas,
mas para salvar o próprio capitalismo”
JORGE ALEMÁN |
O
psicanalista Jorge Alemán analisa a “radical catástrofe” gerada pela
covid-19 em Pandemónium: notas sobre el desastre, publicado em ebook
por Ned. “O capitalismo já mostrou, e pode voltar a repetir, que é capaz de
se rearmar e seguir seu movimento sem fim, a não ser que os países emergentes
reinventem um possível caminho de emancipação, levando a uma radicalização da
democracia frente às derivas neofascistas tão ativas, neste momento, em todo o
mundo”, explica Alemán em um dos capítulos de seu novo livro, cuja capa é a
reprodução do quadro do pintor inglês John Martin (1789-1854), inspirado em
Paraíso Perdido, poema narrativo de John Milton (1608-1674).
“Não
acredito que haverá um colapso quando a pandemia sanitária for controlada, de
fato, a maioria dos governos dos países ocidentais quer sair da crise
sanitária, não como dizem para salvar vidas, mas para salvar o próprio
capitalismo (FMI, Fundo Europeu, grandes financeiras, bancos etc.) e que a
máquina continue funcionando, mais uma vez, mesmo que esteja gerando maior pobreza
e injustiça social”, acrescenta o psicanalista argentino.
Na
entrevista ao jornal Página/12, o autor de livros fundamentais como Lacán
en la razón posmoderna, Derivas del discurso capitalista e Capitalismo:
crimen perfecto o emancipación, entre outros, explica, de Madri, a cidade
que escolheu para se exilar em 1976, que “essa pandemia está derrubando
todas as ficções que, nos últimos anos, sustentaram o neoliberalismo”.
Eis a
entrevista.
Se é
difícil pensar que após a pandemia ocorrerá um colapso do capitalismo, para
onde está indo o capitalismo? Como se adaptará em um mundo pós-covid-19?
Jorge
Alemán: O capitalismo tem como uma qualidade essencial sua tendência
à reprodução ilimitada, pode se valer de suas próprias contradições
internas, as tensões que o atravessam, seu colapso geral, e sempre estará em
condições de se refazer. Não estou muito certo de que possa atravessar a
pandemia, mas digamos que estruturalmente tem todas as possibilidades para
isso.
O
capitalismo poderia viver na paisagem de Mad Max porque pode se reproduzir
ilimitadamente. Conta com muitos dispositivos para isso e também possui algo
constitutivo do ser humano, que é certa impossibilidade de enfrentar o
igualitário.
Como irá se
adaptar no mundo da pós-pandemia...? É mais provável que seja a pandemia que
irá se adaptar ao capitalismo. E daí talvez vejamos surgir certas
manifestações da sociedade de controle e do biopoder, que embora a princípio tenham sido muito
necessárias, do ponto de vista terapêutico e político, cedo ou tarde,
justamente por causa dessa característica de reprodução do capital, vão acabar
se impondo.
Disponível somente em e-book |
A
pandemia chegou para demostrar algo que já se sabia: as profundas desigualdades
nos países europeus e na América Latina. Esta é uma oportunidade para debater
acerca da igualdade? O século XXI será o século da igualdade?
Jorge
Alemán: Sim, o grande debate será entre igualdade e desigualdade. É
verdade que a morte é para todos porque somos todos mortais, mas também é
absolutamente verdade que a igualdade deve ser concebida a partir da vida,
não da morte. Se concebemos igualdade a partir da vida, obviamente essa
pandemia está derrubando todas as ficções que nos últimos anos sustentaram o
neoliberalismo.
Por
exemplo, o mantra de que o empresariado é o que cria a riqueza está caindo
por terra. Se os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, não
retornam aos locais de produção, este mundo não pode se sustentar. Se não
retornam aqueles que acendem a luz, se não retornam os que limpam, tudo isso
cai. O interessante aqui é que seria um momento marxista da humanidade, mas
por hora não há notícias de que emerja um sujeito histórico igualitário.
Como
imagina um novo projeto de soberania popular de esquerda? Qual papel teria o
Estado e os movimentos sociais nesse projeto?
Jorge
Alemán: A possibilidade de movimentos soberanos deve conduzir a uma
Federação Internacional de Países Soberanos. É claro, o Estado deve ter um
papel central, mas levando em consideração que o neoliberalismo se apropriou
previamente do Estado. O Estado nunca é nosso, sempre que estamos no
Estado, estamos em uma partida em que o inimigo também está presente. Portanto,
a aliança com movimentos sociais é decisiva e imprescindível. E diria mais: não
apenas com movimentos sociais.
Um projeto
emancipatório, hoje em dia, tem que pensar, imaginar e inventar uma nova
maneira de conceber a relação entre Estado, sociedade, comunidade e Forças
Armadas. Quando falo das Forças Armadas, trata-se das Forças Armadas
que passaram no rigoroso exame dos direitos humanos na Argentina, e o grande
filtro histórico que o país supõe fazer com a memória, a verdade e a justiça.
Em
25 de maio, foi realizada uma manifestação na Praça de Maio [Buenos Aires] por
manifestantes contra a quarentena. Alguns gritavam “liberdade!”, outros,
“queremos trabalhar”. Uma marcha semelhante ocorreu, há alguns dias, em Madri,
com o líder do Vox à frente, para pedir “liberdade” e a renúncia de todo o
Executivo. Por que os setores de direita estão tentando tirar proveito do
cansaço gerado pela situação de quarentena?
Jorge
Alemán: Há uma tendência da direita mundial em perceber que a única
maneira que os setores progressistas, na Europa, e os movimentos populares e
nacionais da América Latina (os poucos que existem), possuem é a de introduzir
uma planificação na saúde, como é a quarentena, e certas determinações
em relação ao modo de distribuição de renda. Portanto, extraíram o termo
liberdade - que já ocupava um lugar central no liberalismo e que o
neoliberalismo empregou de modo perverso - para buscar mostrar que todos esses
projetos em que o Estado assume a comunidade são projetos “totalitários”.
Não é nada
novo. De certa forma, todo o desmantelamento do Estado de bem-estar, após a
Segunda Guerra Mundial, também foi realizado em nome da liberdade. O que
acontece é que agora começou a aumentar, porque a DIREITA
introduziu uma novidade, que é a sua ruptura com a verdade e a ética.
Se as direitas conservadoras e liberais ainda mantinham certo fio (fino, mas
mantinham) em relação à verdade e a ética, as direitas atuais praticam a
violência que quase pertence ao estado de exceção. Não guardam relação
alguma, respeito algum, com a verdade e a ética.
Traduzido
do espanhol pelo Cepat.
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