Falar sobre Deus
Continua-se
a falar “demais” e “mal”
Francesco Cosentino
Professor
de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana
Roma –
Itália
“Como se um vírus, em vez de nos fazer
eventualmente refletir
sobre a relação entre nós e o mundo em que
vivemos,
fosse uma força escura vinda do além”
Durante o
período de isolamento forçado da quarentena, tive a oportunidade de retornar a
uma fonte que muitas vezes nutre meu caminho espiritual e teológico; mergulhei
nas ricas sugestões poéticas e teológicas de Michael Paul Gallagher,
jesuíta que lecionou durante anos na Universidade Gregoriana, com quem o
vínculo pessoal logo foi além dos laços acadêmicos que marcavam meu ritmo de
estudante.
Como fino
observador dos movimentos profundos da vida e do coração humano, Gallagher
nunca reduzia a teologia - e muito menos a fé - a uma série de conceitos
dogmáticos frios; ele argumentava - misturando com elegância sua formação
literária e a espiritualidade inaciana - que é preciso prestar atenção ao
que vivemos, abrir-se à surpresa, capturar os raios da graça no vale às vezes
monótono da vida cotidiana.
Assim,
talvez para aproximá-los mais do público em geral, ele decidiu “traduzir” os
gigantes da teologia do século XX, imaginando também monólogos em que eles
davam voz ao que sua empreitada teológica procurava comunicar (M.P. Gallagher, Mappe
della Fede. Dieci grandi esploratori cristiani, Vita e Pensiero, Milão
2011).
Uma
lição de Flannery O'Connor
Entre esses
grandes nomes, portanto, Gallagher inclui em seu texto Flannery O'Connor,
a escritora estadunidense que morreu aos 39 anos e que, com suas histórias,
consegue desafiar um catolicismo convencional e conformista, reduzido a uma
experiência religiosa tranquilizadora, na qual Deus é preso nas malhas de
definições e lugares comuns. Deus, por outro lado, é acima de tudo uma
surpresa permanente, como muitas vezes repete o Papa Francisco, e O'Connor
pretende narrar precisamente o “choque” causado pela graça divina ao visitar
a vida cotidiana.
Gallagher
coloca estas palavras na boca de O'Connor: “Ao longo dos anos, estou cada vez
mais enraizada no meu catolicismo e, ao mesmo tempo, cada vez mais reticente em
relação às fáceis certezas sobre Deus ... O Todo-Poderoso não pode ser encaixado
em nossas categorias intelectuais”.
As palavras
lembram a conhecida “teologia negativa”, que afirma a importância do
silêncio sobre a palavra quando estamos diante do Mistério de Deus. Não é o
silêncio daqueles que não sabem ou não podem dizer, mas o assombro diante da
grandeza de Deus que nunca pode ser aprisionado em palavras, raciocínios e
esquemas humanos. É aquele silêncio da fé e da oração que - como afirmava
Rahner - é a última palavra antes da adoração a Deus.
Bento XVI,
durante uma audiência geral em 2008, nos lembrou que “podemos dizer mais
facilmente o que Deus não é, o que não expressa, do que Ele realmente é”;
aliás, a figura proeminente da teologia negativa, Dionísio, o Areopagita, hoje “aparece
como um grande mediador no diálogo moderno entre o cristianismo e as teologias
místicas da Ásia, cuja mais conhecida característica é a crença de que não se
pode dizer quem seja Deus; dele só podemos falar de formas negativas”.
O
Deus que castiga não é o de Jesus
E assim
chegamos a uma das fáceis “certezas” sobre Deus que também surgiram no
seio do catolicismo - mas não somente - neste período de pandemia. Um vírus no
vírus, que se espalha como fogo, muitas vezes preenchendo a falta de uma
formação cristã adequada, compensando o analfabetismo bíblico e, acima de tudo,
penetrando astutamente nos pântanos de uma religiosidade fundada no medo e
frequentemente alimentada pela superstição. Fala-se demais de Deus nessa
pandemia - ao contrário do que se afirma - e o problema é que se fala mal dele.
Assim, no
colorido mercado da oferta religiosa e na bulimia das mensagens que tentam “explicar”
o vírus usando as teses mais improváveis, as vozes dos pregadores
evangélicos, imãs e padres católicos frequentemente destacam a velha
superstição religiosa do “Deus castigador” ou da Bíblia que “o havia predito”
e outras estranhas mensagens do além.
Poder-se-ia
refletir bastante - e a partir do Evangelho - sobre o quanto seja falsa e
anticristã a imagem de um Deus que castiga, que, cheio de indignação e
raiva, envia um vírus que lota os leitos de hospitais e frequentemente mata; um
Deus que, em vez de ser o Pai da misericórdia narrado por Jesus, diverte-se
causando sofrimento aos homens. Talvez faça isso por razões pedagógicas
como um pai terreno poderia fazer e, por outro lado, na Bíblia às vezes se fala
dos castigos de Deus; exceto considerar depois as numerosas exegeses bíblicas
desses textos e, talvez, evitar ler as palavras das Escrituras literalmente e
estudar o revestimento linguístico e cultural da linguagem usada por aqueles
autores sagrados. E Deus, no entanto, permanece sempre maior que qualquer
pai terreno e de seus critérios.
Recentemente,
dediquei uma publicação sobre o tema das falsas imagens de Deus. Nomes com mais
autoridade do que a minha limparam o campo do perigo de cultivar imagens desse
tipo, especialmente em tempos de pandemia.
O bispo de
Noto, Antonio Staglianò, afirmou ao final de uma celebração eucarística:
“Não acreditem naqueles que dizem que Deus castiga, não acreditem naqueles
que lhes dizem que Deus está vos punindo por vossos pecados, por todas as
condições infelizes ... des-graças, isto é, estar fora da graça de Deus,
não existem. Existem as tragédias, os dramas, os grandes sofrimentos, mas
não as desgraças, porque os dramas, as tragédias e os sofrimentos estão todos
dentro da Graça de um Deus da Providência... em quem vocês devem acreditar?
Vocês devem acreditar em Jesus de Nazaré. E Jesus disse: Deus não é assim como
vocês o estão imaginando, como o contaram para vocês. Eu vos digo que Deus é
sempre e somente Amor e intervém em nossas tragédias sofrendo conosco, chorando
conosco, sempre na cruz... e, se você não for libertado da morte,
certamente será libertado por Deus na morte”.
Respondendo
aos leitores da Famiglia Cristiana sobre o coronavírus como castigo de
Deus, o teólogo Giuseppe Lorizio concentrou-se no episódio evangélico do
homem cego [cf. João 9,1-41] e na pergunta que fazem a Jesus: “Quem pecou, ele
ou seus pais?” [João 9,2]. Nessa ocasião - afirma Lorizio – “Jesus critica a
teologia de seu tempo, que interpretava toda forma de sofrimento como
consequência do pecado. Portanto, exclui o paradigma do castigo”. Pelo
contrário, "toda circunstância, mesmo as mais dramáticas, nos são dadas
para que nelas se manifeste ‘mistério do Reino de Deus’".
Lorizio
afirma que, antes disso, a cura se dá a partir do encontro entre o divino e
o humano, como no caso do cego de nascença: “A saliva de Jesus é o sinal do
divino, do sobrenatural, que em sua humanidade se expressa, enquanto a terra,
que se transforma em barro, nos fala que a cura será produzida a partir da
terra, ou seja, do nosso empenho, através da inteligência e da ciência (= a
pesquisa científica) e do exercício da livre vontade (= o respeito pelas
regras e a solidariedade)”.
Há outro
episódio do evangelho em que o Papa Francisco analisou, o da torre de
Siloé [Lucas 13,1-5]: “Jesus conhece a mentalidade
supersticiosa de seus ouvintes e sabe que eles interpretam aquele tipo
de evento de maneira errada. De fato, eles pensam que, se esses homens
morreram de forma tão cruel, é um sinal de que Deus os castigou por alguma
falha grave que cometeram; como se dissesse: ‘eles mereciam’ ... Jesus
rejeita claramente essa visão, porque Deus não permite que as tragédias
punam as culpas e afirma que aquelas pobres vítimas não eram piores que as
outras. Em vez disso, ele nos convida a extrair desses fatos dolorosos um aviso
que diz respeito a todos, porque somos todos pecadores... Mesmo hoje, diante de
determinados infortúnios e eventos tristes, podemos ser tentados a
‘descarregar’ a responsabilidade sobre as vítimas, ou até mesmo sobre o próprio
Deus. Mas o Evangelho nos convida a refletir: que ideia de Deus fizemos? Estamos
realmente convencidos de que Deus é assim, ou essa seria mais uma nossa
projeção, um deus feito ‘à nossa imagem e semelhança?’”.
FRANCESCO CONSENTINO Teólogo italiano - Autor deste artigo |
Fala-se
sobre Deus “demais” e “mal”
A solução
do “Deus que castiga” serve para nos dar uma explicação fácil e desresponsabilizada
que, além da aparente dureza, é na realidade confortável: nós precisamos apenas
nos converter, fazer alguma penitência e Deus nos perdoará. E voltaremos
felizes a saquear a natureza, poluir os rios, idolatrar o mercado e concentrar
tudo sobre a produção. Como se um vírus, em vez de nos fazer eventualmente
refletir sobre a relação entre nós e o mundo em que vivemos, fosse uma força
escura vinda do além.
A fé reduzida à religião e a religião que se
torna superstição surgem com soluções fáceis e irreais para
resolver enigmas diante dos quais não queremos pensar muito.
Gallagher
faz Flannery O'Connor dizer: “A fé não é simplesmente um tipo de cobertor
térmico. Se avançamos em direção a uma nova liberdade, chutando e gritando, é
porque os lugares mais antigos e apertados parecem mais seguros e certamente
custam menos”.
Talvez nem
seja suficiente desmentir categoricamente essa imagem malsã de Deus. O que é
necessário para a teologia e para a pregação cristãs é parar o excesso de
palavras diante do mistério do mal e do sofrimento. Não encaixar Deus nos
esquemas conceituais humanos e assumir a “teologia negativa” que é silenciosa e
se cala porque, diante do que é maior, se coloca em escuta. Reflete e
adora. E as únicas palavras que usa as faz brotar do silêncio, da oração e
do constante confronto com a Palavra do Evangelho. Efetivamente, sobre Deus, continua-se a falar “demais” e “mal”.
Traduzido
do italiano por Luisa Rabolini. Versão original deste artigo, disponível
aqui.
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