O futuro do capitalismo
Economista
sérvio Branko Milanovic analisa capitalismo contemporâneo em livro
Guilherme
Evelin
“Capitalismo sem Rivais” projeta
possibilidades em um mundo
no qual só há um sistema econômico
BLANKO MILANOVIC |
Dia sim,
dia não, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diz que o “vírus
chinês” está causando um massacre mundial e brande ameaças à Organização
Mundial de Saúde (OMS), que ele vê sob a tutela da China. Aproveitando-se do
vácuo aberto pelos Estados Unidos em meio à maior crise de gerações, a China
de Xi Jinping abandona sua postura tradicionalmente retraída e ocupa espaços na
cena internacional. A pandemia do novo coronavírus acelerou uma tendência
que já estava no horizonte com a ascensão da China: uma disputa entre
chineses e norte-americanos pela condição de potência mundial hegemônica.
Os especialistas em Relações Internacionais falam em nova
Guerra Fria.
Antes da
pandemia, em um livro lançado no ano passado no exterior e que acaba de sair no
Brasil, Capitalismo sem Rivais: O Futuro do Sistema
que Domina o Mundo, o economista Branko Milanovic retratou a
disputa entre Estados Unidos e China, não apenas como uma disputa
geopolítica, mas como um choque de capitalismos. Da colisão dessas duas
placas tectônicas em movimento, argumenta o economista, o futuro da economia
global emergirá.
Último livro de Milanovic, a ser publicado no Brasil em meados de junho próximo |
CISMA
Milanovic
parte da constatação de que o capitalismo venceu. Tornou-se o único modo de
produção no mundo, ao contrário de outros períodos da humanidade, em que
diferentes sistemas conviviam. Mesmo na China oficialmente “comunista”, mais
de 80% da produção é controlada pelo setor privado, o Estado não impõe
decisões a respeito de preços e a maior parte dos trabalhadores vende sua força
de trabalho em troca de salários. Além disso, os valores do capitalismo
foram de tal forma internalizados pelas pessoas que até seus momentos de tempo
livre viraram commodities e passaram a ser comercializados.
Tal como no
grande cisma do cristianismo, que rachou entre as igrejas católicas de Roma e
de Constantinopla, ou do islamismo, dividido entre sunitas e xiitas, o
capitalismo tem hoje, porém, duas vertentes. Uma é o “capitalismo político”, cujo protótipo é a China, mas
que pode ser encontrado também no Vietnã, na Rússia, no Azerbaidjão, em Angola e
na Argélia. No “capitalismo político”, não há democracia. O
autoritarismo das elites políticas é legitimado pela geração de crescimento
econômico e elevação dos padrões de vida das populações.
A outra vertente
é o “capitalismo meritocrático liberal”,
presente no Ocidente, cujo modelo são os Estados Unidos. Na classificação
estabelecida por Milanovic, ele é sucedâneo do “capitalismo clássico” e do
“capitalismo social-democrata”, predominantes nos séculos 19 e 20. No
“capitalismo meritocrático liberal”, há democracia e o mérito, em tese, é a
chave da ascensão às elites, que são submetidas ao Estado de Direito. Como
observa Milanovic, o extraordinário sucesso econômico da China nas últimas
décadas coloca em xeque, porém, o argumento ocidental de que o
capitalismo necessita de instituições políticas liberais para se desenvolver.
DESIGUALDADE
Nascido em
Belgrado, capital da Sérvia, nos tempos da extinta Iugoslávia do Marechal Tito,
Milanovic, 66 anos, radicou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou como alto
funcionário do Banco Mundial e atualmente dá aulas como professor da
Universidade da Cidade de Nova York (Cuny). Nos anos 1990, Milanovic
notabilizou-se por ser o primeiro economista a medir, com razoável grau de
precisão, a desigualdade global. Em 2016, ele publicou um livro considerado
seminal, Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da
Globalização. A obra ajudou, junto com o livro do francês Thomas
Piketty, O Capital no Século 21 (Editora Intrínseca), a deslocar
para o centro das discussões o tema da desigualdade, antes relegado a segundo
plano pelos economistas liberais mais ortodoxos.
No livro de
2016, Milanovic demonstrava como a globalização e a liberalização
mundial dos mercados financeiros geraram, dos anos 1980 em diante, novas
dinâmicas que aumentaram a desigualdade interna em quase todos os países.
Nos Estados Unidos, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda
numa escala de 0 a 1 e que denota maior desigualdade quanto mais próxima de 1,
subiu de 0,35, em 1979, para 0,45. Na China, o coeficiente de Gini saltou de
0,30, em 1985, para cerca de 0,50 – próximo aos níveis encontrados na América
Latina. A despeito de a globalização ter tirado da pobreza uma massa de
trabalhadores, principalmente na Ásia, os vencedores
dos últimos 40 anos foram os super-ricos, principalmente os
executivos de grandes corporações e os homens das finanças. As classes
médias dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina estagnaram ou
declinaram, com a desindustrialização de suas economias.
Primeira grande obra de Milanovic, publicada em Portugal em 2017, ainda sem edição no Brasil |
LACUNA
Milanovic
diz que escreveu Capitalismo sem Rivais com a ambição de suprir uma
lacuna da historiografia: explicar qual foi o papel histórico dos regimes
comunistas, já que eles não levaram as sociedades ao socialismo imaginado
por Marx. Numa tese instigante, Milanovic sustenta que, em países como a China
e o Vietnã, os partidos comunistas, associados a fortes movimentos
nacionalistas, levaram a cabo, no poder, uma série de mudanças que liquidaram
resquícios de antigas estruturas semifeudais e permitiram a transição para o
capitalismo. Desempenharam assim um papel semelhante às classes burguesas
no Ocidente durante o século 19.
Capitalismo
sem Rivais pode ser lido também como uma sequência do livro anterior de
Milanovic sobre o crescimento da desigualdade. Na nova obra, ele explora outros
desdobramentos da globalização e as falhas estruturais de cada modelo
de capitalismo.
As fragilidades
do “capitalismo político” são a necessidade de
provar constantemente as vantagens e a maior eficácia de seu modelo para
justificar o autoritarismo; a dificuldade de fazer correções de rota em
políticas equivocadas; a aplicação arbitrária das leis, quase sempre em
benefício das elites; e a corrupção disseminada, pela falta de Estado de
Direito. No “capitalismo liberal meritocrático”,
segundo Milanovic, os problemas estão ligados à criação de uma espécie de uma classe
superior cada vez mais isolada do restante da sociedade.
DONALD TRUMP & XI JIMPING Os dois líderes do capitalismo mundial - qual prevalecerá??? |
MULHERES
Por conta
da herança da fase anterior social-democrata, as elites, no “capitalismo
liberal democrático”, se tornaram mais diversificadas. Passaram a ser compostas
por mulheres e por profissionais altamente educados das mais diferentes áreas
que trabalham e cuja renda alta é resultado desse trabalho. Mas, por trás do
véu do mérito, diz Milanovic, associadas à diminuição da mobilidade social,
estabeleceram-se dinâmicas, como a maior taxa de casamentos entre pessoas do
mesmo status, que criaram uma autorreprodução dessa elite em modo contínuo.
Ao mesmo
tempo, os ricos passaram a investir pesadamente em sua prole e em estabelecer
controle político. Ao investir na educação de seus filhos em escolas cada
vez mais seletivas, eles permitem que suas futuras gerações mantenham a
alta renda e o status associado ao conhecimento. Com o investimento em
influência na política, por meio, por exemplo, de financiamento de
campanhas eleitorais, “compram” políticas econômicas que favorecem menos
regulações, menor tributação da renda e a transmissão de capital entre gerações.
O risco é a criação, diz o economista, de uma elite dirigente apartada da
sociedade e que trabalha exclusivamente para atender seus únicos interesses. [Essa já é, sem dúvida, a realidade em nosso país!]
PLUTOCRACIA
“A alta
desigualdade tende a minar a democracia, porque os ricos tendem a
querer preservar seu poder. O risco da apropriação do poder político por
uma plutocracia é migrarmos de um sistema em que uma pessoa representa um voto,
para um sistema em que uma pessoa representa um dólar ou um real”, disse
Milanovic, em conversa com o Estadão, no começo de março.
Um possível
cenário futuro que pode resultar do choque de capitalismos, segundo Milanovic,
é a convergência do modelo liberal meritocrático para algo mais próximo do
capitalismo político, com uma elite econômica insularizada exercendo
poder livre de restrições. A esse cenário temerário, Milanovic contrapõe a
defesa de um “capitalismo do povo”, uma espécie
de versão atualizada do capitalismo social-democrata, menos focado em
redistribuição de renda, e mais na democratização da educação e do acesso a
bens financeiros.
PANDEMIA
Como a
pandemia afetará esse conflito entre capitalismos? A China está vencendo a nova
Guerra Fria, como perguntou, numa capa de 18 de abril, a revista The
Economist? “É difícil prever. Estamos ainda no escuro”, disse Milanovic, ao
falar das incertezas que cercam os rumos da pandemia. Mas ele avalia, que se
confirmada a tendência de que os países asiáticos vão se recuperar mais
rapidamente, enquanto o Ocidente se debate com um segundo dramático choque
em 15 anos após a crise de 2008, o deslocamento do centro gravitacional da
economia global para a Ásia se acentuará, assim como a disputa entre os
dois modelos, com a crescente assertividade da China em exportar sua
influência. Ele acredita também que crises tendem a centralizar o poder e será
mais difícil tirá-lo das mãos de quem, como no caso dos dirigentes chineses
proclamam, com alguma credibilidade, que conseguiram evitar o pior. Não são
bons presságios para quem preza as liberdades e rejeita os autoritarismos.
É difícil prever.
L I V R O :
Título:
Capitalismo sem rivais: O futuro do sistema que domina o mundo
Autor:
Branko Milanović
Tradutor:
Bernardo Ajzenberg
Editora:
Todavia (São Paulo – SP)
Publicação:
11 de junho de 2020
Páginas:
376
Preço
de capa: R$ 84,90 / R$ 40,00 em e-book
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