O valor dos arrepios

 A dor nos torna humanos

 Marco Ventura

La Lettura, 21-02-2021 

Entrevista com Byung-Chul Han

Estudou Filosofia, Cultura alemã e Teologia em Freiburg e Munique e ensinou Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste de Berlim 

Em 2020, ele dedicou um livro ao tema do sofrimento que fala à geração da pandemia. O livro denuncia uma sociedade que se autodestrói ao tentar se transformar em "um oásis permanente de bem-estar que pode ser obtido por via médica"

BYUNG-CHUL HAN

Autor celebrado pela grande imprensa ocidental, Han ficou conhecido por sua crítica à contemporaneidade, em particular ao neoliberalismo e à transformação digital. Em 2020, ele dedicou um livro ao tema do sofrimento que fala à geração da pandemia. Com o título Palliativgesellschaft. Schmerz heute ("A sociedade paliativa. A dor hoje"), o livro denuncia uma sociedade que se autodestrói ao tentar se transformar em "um oásis permanente de bem-estar que pode ser obtido por via médica". 

Em um texto que parecerá altamente questionável para muitos, Han propõe uma crítica fundamental da prioridade sanitária na emergência de pandemia e uma reavaliação igualmente fundamental da dor. O livro chega às livrarias italianas (ainda sem previsão de publicação no Brasil) pela Einaudi Stile libero com o título La società senza dolore (A sociedade sem dor) e o subtítulo Porque banimos o sofrimento de nossas vidas, enquanto a Nottetempo publica o anterior La scomparsa dei riti (O desaparecimento dos ritos). “La Lettura” faz uma entrevista virtual com o autor. 

Eis a entrevista. 

Capa da edição original, em alemão, do livro: "A Sociedade Paliativa. A Dor Hoje"

A sociedade seria dominada pela algofobia, "medo generalizado da dor". Somos "hipersensíveis" como a princesa na ervilha, você escreve que tendemos a viver em "estado de anestesia permanente". Em que sentido, então, a nossa é uma sociedade sem dor?

Byung-Chul Han: Não estou dizendo que vivemos em uma sociedade sem dor. Hoje temos até uma epidemia de dores crônicas. Eu digo que a dor tem uma dimensão social e que, portanto, qualquer crítica à sociedade tem que se confrontar com a dor. Em vez disso, hoje a dor é reduzida aos aspectos médicos e farmacológicos. E quando é colocada exclusivamente nas mãos da medicina, a gente não a entende mais. 

Nesse sentido, você acusa o neoliberalismo.

Han: Na sociedade neoliberal pós-moderna, as tensões psíquicas aumentam por meio da pressão por eficiência ou outras motivações, e isso pode levar à dor crônica. Comparei a autoexploração neoliberal a um servo que pega o chicote das mãos de seu senhor e se chicoteia para ser o senhor, aliás, para ser livre. Esse impulso neoliberal pela performance e a autoexploração deixa-nos doentes. 

Nosso problema com a dor está ligado à solidão?

Han: No livro, menciono o cuidado primário da cura em Viktor von Weizsäcker. Quando a irmãzinha vê seu irmãozinho sofrendo, ela conhece uma saída. Ela toca onde dói. O contato aplaca a dor. Hoje vivemos em uma sociedade atormentada por uma crescente solidão, sem contato ou dedicação humana. Distanciamento social! Eu me pergunto se a dor não é o grito do corpo que pede proximidade e dedicação, até mesmo amor. O cuidado primário de cura não pode ser substituído por um analgésico. 

Capa da edição italiana do livro de Byung-Chul Han. Tradução: "A Sociedade sem Dor. Porque Expulsamos a Dor de nossas Vidas"

Você denuncia uma "sociedade paliativa" cúmplice de uma "ideologia do bem-estar permanente". Mas querer se livrar da dor, querer pelo menos limitar a dor, não é um objetivo legítimo?

Han: Toda experiência intensa é dolorosa, mesmo o amor intenso. Hoje, evitamos as intensidades por medo da dor. Até mesmo o amor hoje deve ser despotencializado em uma fórmula voltada para o consumo e o prazer. Qualquer percepção intensa é dolorosa. Dolorosamente belo não é uma contradição. Percebemos o mundo hoje através do smartphone, que torna tudo consumível e disponível e reduz tudo à dimensão da tela. Acredito que o smartphone seja um analgésico digital. 

No livro, você não fala da medicina paliativa.

Han: Utilizo a expressão “sociedade paliativa” em sentido metafórico, para designar uma sociedade que não consegue lidar com a dor. A sociedade paliativa nada tem a ver com medicina paliativa. De resto, insisto que proximidade, dedicação e contato são mais importantes do que os analgésicos. O setor paliativo de uma clínica não pode substituir a dedicação e o amor. A história que o paciente conta ao médico no início do tratamento norteia o processo de cura. Qual o médico que pode dizer de si mesmo que sabe ouvir?

Hoje, ouvimos cada vez menos.

No meu livro L’espulsione dell’Altro (A expulsão do Outro, Nottetempo, 2017), dediquei um capítulo inteiro à arte da escuta. O capítulo começa com as palavras:

“No futuro, talvez haja uma profissão chamada o ouvinte. Alguém que presta atenção no outro mediante pagamento. Você vai ao ouvinte, caso contrário não há ninguém disposto a escutar o outro”.

A pandemia desempenha um papel importante em seu livro.

Han: Eu escrevi que a pandemia transforma a sociedade em uma quarentena na qual a vida enrijece-se como uma sobrevivência. A vida não é sobreviver. A pandemia aguça tendências sociais que já estão presentes. Entre elas está a histeria da saúde. Todas as forças vitais estão sendo usadas hoje para prolongar a vida. Mesmo na pandemia, não deveríamos reduzir a vida à sobrevivência. Apesar de tudo, devemos encontrar possibilidades para celebrar a vida: é importante, justamente na pandemia. Acho problemático que a virologia esteja em primeiro lugar hoje.

Em vez disso, psicólogos, pedagogos, sociólogos, teólogos, filósofos e até artistas deveriam estar envolvidos nas decisões para combater a pandemia.

Deveria se proceder a uma avaliação ampla dos bens que estão em jogo nos vários aspectos da vida, em vez de absolutizar a saúde e a sobrevivência, sacrificando a elas todo o resto. 

Na pandemia, você escreve, "a fé foi sacrificada no altar da sobrevivência" e "a virologia desautoriza a teologia", e novamente "a saúde é elevada como uma nova divindade". Sem dor não há mais Deus?

Han: Eu acredito que os seres humanos alcançam o auge da beleza quando oram. É por isso que gosto de ir às igrejas. Sem dor, não conseguirão orar. Pode ser que um dia vivamos em um mundo sem dor. O "novo mundo" do escritor Aldous Huxley não conhece a dor. Por se tratar de uma sociedade paliativa, o Estado distribui a droga denominada soma para aumentar a sensação de bem-estar.

Mas uma vida sem dor não é humana.

Por isso concluo meu livro com as palavras: “O homem se acaba para sobreviver. Talvez consiga alcançar a imortalidade, mas ao preço da vida”. 

Em sua opinião, dor é "verdade", "vínculo", "diferença", "realidade".

Han: Na introdução do livro coloco uma citação de Walter Benjamin: “A dor representa para o homem uma espécie de riacho inesgotável que leva ao mar. O prazer se apresenta onde quer que o homem se esforça em continuá-lo, é como um beco sem saída”. Cada dor nos surpreende como uma corrente navegável que leva ao mar. A dor nos parece justamente como um beco sem saída, que em nenhum caso pode ser evitado. Meu livro chama a atenção para o fato de que a dor faz parte da vida humana. Onde as separações causam sofrimento, os laços anteriores se revelam como verdadeiros.

Apenas a verdade dói.

Se as separações não provocam dor, os laços não haviam sido verdadeiros. 

Ao contrário da dor, "a digitalização é anestesia". Justamente sobre esse ponto, você diz, é que está a diferença entre pensamento e inteligência artificial. Nesse sentido, sua afirmação "nunca haverá algoritmos da dor" é muito interessante.

Han: A primeira imagem do pensamento é o arrepio. Por isso, a inteligência artificial é estranha ao pensamento, porque nunca tem arrepios. Os arrepios são uma expressão de comoção e calafrio. A consciência que não provoca arrepios equivale a reduzir a objeto. É incapaz de experiência em sentido empático, o que em si é dor. 

Uma vez destruída a "dimensão social da dor", em sua opinião sobra apenas uma "sociedade da sobrevivência" que, como a pandemia demonstraria, "será forçada a renunciar aos princípios liberais". Não há mais vida, apenas "não-morte". Não é pessimista demais?

Han: Não sou pessimista. Pelo contrário: espero da vida mais do que sobrevivência.

A sociedade dominada pela histeria de sobrevivência é uma sociedade de “não-mortos”.

Costumo dizer: estamos muito vivos para morrer, muito mortos para viver. Quando nos preocupamos apenas com a saúde e a sobrevivência, nos assemelhamos ao vírus, um ser não-morto que se multiplica, ou seja, sobrevive, sem viver. 

Mas, dessa forma, você corre o risco de cair na atitude oposta à algofobia, na glorificação da dor como caminho para uma espiritualidade superior.

Han: Eu não glorifico a dor. Eu diria: a vida humana sem dor é incompleta. Dor e felicidade são, como diz Nietzsche, irmãos gêmeos, que crescem juntos ou permanecem pequenos juntos. Se a dor for inibida, a felicidade se acomoda em uma abafada sensação agradável. 

Eu insisto. Parece ouvir-se o eco de um "dolorismo" muito problemático do ponto de vista ético.

Han: A dor também faz parte da nossa relação com os outros. Um capítulo do meu livro é dedicado à ética da dor. Hoje costumamos falar sobre o desaparecimento da empatia. Eu me perguntava: de onde vem essa crescente perda de empatia? Por que somos cada vez menos receptivos aos outros?

Acredito que hoje em nosso Ego tornamos o outro um objeto disponível, pronto para o consumo. O outro, como objeto, não sente dor.

Ao contrário, a pandemia nos coloca com força diante da dor.

Han: A pandemia reforça o desaparecimento da empatia. O outro é agora um possível portador do vírus, do qual convém distanciar-se. A escuta, de que falava antes, pressupõe que eu me exponha ao outro. O aumento da sensibilidade para o outro, o poder de sofrimento com o outro, tem algo de doloroso.

O amor como relação empática com o outro nos assalta e nos fere.

O amor como consumo, por outro lado, não comporta dor. Sem dor, não temos acesso ao outro. É por isso que falo de dor para com o outro. Hoje perdemos a capacidade de perceber o outro em sua alteridade. E o outro, privado da sua alteridade, apenas se deixa consumir. 

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021 – Internet: clique aqui (acessado em: 22/02/2022).

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