Os endividados
Silvio Caccia
Bava
Jornalista
e Editor-chefe de «Le Monde Diplomatique – Brasil»
Vivemos um momento de transição nas
formas de exploração capitalista,
em que a DÍVIDA é um elemento
central para produzir a subordinação
e construir os elos de uma nova
servidão
Sessenta e três milhões e
seiscentos mil brasileiras e brasileiros deixaram de pagar contas que deviam e
tornaram-se “ficha suja” nos serviços de proteção ao crédito.[1] Esses inadimplentes são nada menos que 42% da população adulta do país. Mas
não nos esqueçamos de que a questão das dívidas é maior: elas pesam não apenas
sobre esses inadimplentes, mas também sobre todos aqueles que conseguem manter
em dia o pagamento de suas dívidas com grandes dificuldades, mediante esforços
e sacrifícios cada vez maiores.
O crescimento da
inadimplência é geral, ocorre em todo o país, com destaque para a região
Sudeste,
que em junho acusou aumento de 9,88%, se comparado com o mesmo mês do ano
anterior. Essa tendência de crescimento dos inadimplentes vem se expressando
desde outubro de 2017.
Dessas dívidas, 51% são
contraídas com bancos e instituições financeiras e se referem a atrasos no
pagamento do cartão de crédito, do cheque especial, de financiamento e
empréstimos.
E foram as que mais cresceram em junho (7,62%), se comparadas a junho de 2017. A inadimplência com as contas de água e luz
estão em segundo lugar, com alta de 6,69% no mesmo período. Já as contas de
telefone, internet e TV por assinatura aumentaram a inadimplência em 3,57% no
mesmo período.
O
avanço da inadimplência é explicado pela alta
taxa de desemprego, pela precarização
das relações de trabalho, pela redução
da renda, enfim, pelos ajustes estruturais impostos pelo neoliberalismo. A
reforma trabalhista, a reforma da Previdência e o corte nas políticas de
transferência de renda contribuíram para isso.
Essa situação de
endividamento não é uma particularidade da realidade brasileira. Ela parece estar presente
em um grande número de países, pois, desde o crédito educativo, o seguro-saúde,
a hipoteca, o financiamento do carro, tudo
passa a ser financiado pelos bancos e pelo sistema financeiro, tornando o
endividamento uma condição geral da vida social.[2]
A jabuticaba brasileira são
as taxas de juros cobradas do consumidor. Por exemplo, os juros
cobrados quando o consumidor opta por parcelar o pagamento do débito no cartão de crédito ou não faz o
pagamento na data do vencimento são de inacreditáveis 334% ao ano. Na
Argentina, essa taxa do crédito rotativo é de 47,4%; no Peru, de 44,1%; e, no
Chile, de 21,59%.[3] Já o cheque
especial fica em 324% ao ano, e o crédito
pessoal, em 125,7%. Isso contra uma inflação esperada em 2018 de 4,5% ao
ano.[4]
Assim,
a tendência global de financeirização da vida como forma de controle social
ganha contornos radicais no Brasil, estabelecendo uma nova categoria
social, a dos endividados, com muito mais dificuldades de superar essa condição
e saldar seus débitos que em qualquer outra parte do mundo. Aqui se cobram os maiores juros do planeta.
Segundo
Negri e Hardt, vivemos um momento de
transição nas formas de exploração capitalista: de uma ordem baseada na
hegemonia do LUCRO (pela exploração do trabalho industrial), transitamos para uma ordem dominada pela RENDA,
em que a dívida
é um elemento central para produzir a subordinação e construir os elos de
uma nova servidão.[5]
O trabalhador, que agora se
configura como um consumidor endividado, é controlado pela dívida:
* Atormentado pela dívida,
* ele tem medo de perder o
emprego,
* trabalha mais arduamente,
* não participa da defesa dos
seus direitos enquanto coletividade e
* sujeita-se a novas
modalidades de disciplina e controle em seu trabalho.
Romper esse novo padrão de
servidão e
afirmar para cada cidadão a condição de um ser livre, capaz de exercer plena e
ativamente sua cidadania, participar com seus pares na dinâmica da política,
nas decisões de interesse público, implica questionar
a natureza da dívida que o sujeita e libertar-se coletivamente desse jugo.
Isso
vale tanto para as dívidas pessoais quanto para as atribuídas ao conjunto da
sociedade, como é a dívida pública, que no Brasil entrega para o
setor financeiro, como pagamento do serviço anual dessa dívida, quase a metade
de todos os impostos arrecadados. Consequentemente, essa concentração da riqueza aumenta a desigualdade social e bloqueia a
melhoria da qualidade de vida de todos.
NOTAS
[1] “Brasil
fecha primeiro semestre com 63,6 milhões de consumidores inadimplentes”,
Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, 16 jul. 2018. Disponível em:
<http://cndl.cdls.org.br>.
[2] Antonio
Negri e Michael Hardt, Declaração: isto
não é um manifesto, N-1 Edições, São Paulo, 2016.
[3] Ver:
<www.proteste.org.br>.
[4] Vinicius
Torres Freire, “Taxa básica despenca, mas juro do crédito segue alto”, Folha de S. Paulo, 15 abr. 2018.
[5] Antonio
Negri e Michael Hardt, op. cit.
Comentários
Postar um comentário