1º Domingo da Quaresma – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 4,1-13 

Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

Deus é amor que se coloca a serviço dos homens, o diabo é poder que domina as pessoas

No primeiro domingo da Quaresma, a liturgia apresenta as Tentações do Deserto, segundo a interpretação que Lucas dá no seu Evangelho no capítulo 4. 

Lucas 4,1:** «Naquele tempo, Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito.»

Essa cena, portanto, se passa após o batismo de Jesus. Depois do batismo, sobre Jesus, desceu o Espírito Santo, o qual converteu Jesus na manifestação visível do perdão e do amor de Deus. O deserto recorda o êxodo de Israel, quando iniciou o caminho para entrar na terra prometida, a partir da escravidão egípcia. Agora, a terra prometida se transformou em uma terra de escravidão da qual Jesus deve libertá-la. 

Lucas 4,2a: «Ali, foi tentado pelo diabo durante quarenta dias.»

A instituição religiosa, no tempo de Jesus, por seus próprios interesses, por sua própria conveniência, tomou posse de Deus e Jesus deve libertar o povo de suas garras. A tentação, segundo Lucas, durou “quarenta dias”. Os números, nos Evangelhos e na Bíblia, nunca devem ser interpretados de forma aritmética, matemática, mas sempre de modo figurado. O número quarenta indica uma geração. O evangelista quer dizer-nos: o que vos apresento agora não diz respeito a um único período da vida de Jesus, mas a toda a sua existência.

O evangelista nos diz que Jesus foi tentado “pelo diabo”. Aqui, está certo traduzir assim. Mas para nós, “tentação” sempre significa algo que nos leva a fazer o mal. Nada disso se vê aqui. O diabo, veremos mais adiante, não se apresenta como rival de Jesus, mas como seu colaborador. Assim, mais do que tentações, poderíamos falar das seduções do diabo no deserto. 

Lucas 4,2b: «Não comeu nada naqueles dias e depois disso, sentiu fome.»

Aqui, não se trata de jejum. Jesus não jejuou, mas “não comeu nada”, diz o evangelista. Ele evita a palavra jejum, porque a fome de Jesus era uma fome diferente. Mais adiante, no Evangelho, Jesus dirá: “Tenho desejado, ardentemente comer convosco esta ceia pascal, antes de padecer” (Lc 22,15). Mas, precisamente, não é uma fome de pão. Pois, ao final, se apresenta o diabo. Quem é o diabo? Enquanto Deus é amor que se coloca a serviço dos homens, o diabo é poder que domina as pessoas. 

Lucas 4,3: «O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”.»

Não se trata, aqui, de um questionamento da filiação divina, que já foi afirmada no batismo, mas significa: “Já que você é filho de Deus, use suas habilidades em seu próprio benefício”. Portanto, use suas capacidades a seu favor. 

Lucas 4,4: «Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”.»

É uma citação do livro de Deuteronômio (8,3). Vemos que a disputa entre Jesus e o diabo assemelha-se a uma disputa teológica entre escribas ou rabinos. De fato, o evangelista a constrói dessa maneira. 

Lucas 4,5-6: «O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo e lhe disse: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser.»

O “alto” indica a condição divina. Esta afirmação que Lucas atribui ao diabo é terrível. Não é Deus, mas o diabo quem confere poder e riqueza!

Assim, aqueles que detêm o poder e a riqueza não os recebem de Deus, mas a sua atividade é diabólica porque a recebem do diabo. É uma denúncia muito séria e típica do evangelista Lucas. 

Lucas 4,7-8: «Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’”.»

Portanto, o diabo convida Jesus a um ato de idolatria, mas ele responde, também desta vez, citando o Deuteronômio (6,13 e 10,20). É a incompatibilidade entre Deus e o poder, entre o amor e o serviço. Assim, Jesus rejeita categoricamente a proposta do diabo, essa idolatria do poder. 

Lucas 4,9: «Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo!»

O diabo parece familiarizado com os lugares santos e da Bíblia. Pois, leva Jesus a Jerusalém e “o colocou no ponto mais alto do templo”. Por que ele o colocou lá? Porque havia uma tradição religiosa que dizia que ninguém sabia quem era o Messias. Porém, improvisamente, durante a Festa das Tendas, ele apareceria no ponto mais alto do templo. Então, o diabo o convida a se manifestar acrescentando um sinal espetacular.

Notamos que na primeira e terceira sedução, tentação, o diabo diz: “Já que és Filho de Deus”. Para a segunda sedução, aquela do poder e do dinheiro, não precisou perturbar a condição divina, pois é uma tentação a que todos os seres humanos sucumbem, a da corrupção, a do poder e do dinheiro. Mas, aqui, novamente, o diabo lança mão da expressão: “Se és o Filho de Deus”, isto é, “já que tu és o Filho de Deus”. 

Lucas 4,10-12: «Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.»

E o diabo parece ser um grande especialista em Sagrada Escritura, porque, como Jesus rebateu citando frases do livro de Deuteronômio, o diabo rebateu Jesus citando o salmo 91,11-12. A imagem do diabo como um entendido nas Escrituras Sagradas é o modo do evangelista nos fazer entender que, aqui, se trata das disputas teológicas que Jesus teve com os rabinos, os escribas, que são os verdadeiros instrumentos do diabo. Jesus respondeu-lhe novamente com o livro do Deuteronômio (6,16 – versão grega). Jesus afirma plena confiança na ação do Pai sem a necessidade de provocá-lo para que a ação aconteça. 

Lucas 4,13: «Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.»

O verbo “tentar” aparecerá, novamente, para descrever a ação dos doutores da lei. Eis aqueles que são os demônios, esses defensores da doutrina! Na realidade, o evangelista os denuncia como instrumentos do diabo.

Qual pode ser esse “tempo oportuno”? Pelos dados que temos no Evangelho, o tempo oportuno é o momento da cruz, um momento tremendo, dramático do fim de Jesus, quando serão os líderes do povo que dirão a Jesus: “Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Eleito!” (Lc 23,35b). Ou seja, deixe-o usar suas habilidades para se salvar.

Mas Jesus tudo o que era, todas as suas forças, todas as suas energias, todas as suas capacidades nunca as usou para o seu próprio interesse, mas sempre para o interesse dos outros. Não para conveniência própria, mas para conveniência dos seres humanos; ele não pensava em sua vida, mas na vida dos outros. Eis, então, a diferença que emerge entre Deus e o diabo:

Deus é amor que se põe a serviço e coloca o interesse do outro em primeiro lugar, o diabo é um poder que domina e pensa apenas em sua própria conveniência. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém.”

(William Shakespeare: 1564-1616 – dramaturgo e poeta inglês)

A Quaresma, deste ano, abre-se com uma séria advertência a cada um de nós: “Não sejais o diabo dos outros, mas Deus presente na vida de todos!”

O grande risco que as pessoas religiosas correm é confundir fé com posse e domínio de Deus! Ter fé não é:

* possuir Deus;

* ser fiel a uma doutrina;

* apegar-se ao que os seres humanos determinam como o certo, o correto;

* ter práticas cultuais e devocionais!

Ter fé é muito mais que isso! Ter fé é confiar, plenamente, absolutamente, em Deus! É não criar ídolos e colocá-los no lugar do verdadeiro e único Deus! Jesus, em toda a sua vida nesta terra, fez exatamente isso. 

Por isso, não há perversão maior do Evangelho do que apresentar a obra e mensagem de Cristo consistindo em:

* milagres,

* mistérios e

* autoridade.

Com isso, anulamos o Evangelho, enfraquecemos o que Cristo nos deixou! Confundimos fé com religião! O resultado, como enfatiza o teólogo espanhol J. M. Castillo, é:

“Nem a religião conserta este mundo nem o Evangelho nos torna mais humanos e mais felizes. “

As três seduções, às quais Cristo foi exposto em toda a sua vida, seguem sendo as mesmas às quais a Igreja e cada um dos cristãos estão expostos hoje. Ou seja:

1ª sedução: usar de nossas capacidades, habilidades a fim de obtermos proveito, vantagens, privilégios para nós mesmos! O objetivo, a meta jamais é o outro, a pessoa que necessita, o pobre, o desvalido, o enfermo, o esquecido, o fraco, mas... eu! Apenas, eu importo! Olhemos ao nosso redor para verificarmos se, por acaso, não é bem isso que encontramos na sociedade e, pior ainda, dentro de nossa própria Igreja!

2ª sedução: nos vendermos pelo dinheiro e poder deste mundo! E, como frisa o evangelista Lucas, isso é coisa do diabo! Poder e riqueza não são dons divinos! Ao contrário do que muitos falsos pastores e profetas modernos pregam, Deus não é compatível com poder e riqueza, pelo contrário! Por isso, escandaliza sobremaneira o nosso povo, perceber o quanto seus guias religiosos (padres, bispos, pastores, religiosos e religiosas), em alguns casos, são tão apegados à segurança que o dinheiro, o bem-estar, o conforto e luxo podem lhes proporcionar!

3ª sedução: essa é mais presente e comum do que nunca! É a sedução de agir para obter glória, fama, reconhecimento, elogios, afagos, recompensas emocionais dos mais variados tipos! É claro que o ser humano, todo ele, necessita de reconhecimento, elogio, estímulo e respeito. Aqui, não se trata disso! O diabo propõe que Jesus se atire do ponto mais alto do templo de Jerusalém, a fim de dar um espetáculo, a fim de obter aplausos, a fim provocar manifestações de êxtase no povo, a fim de encurtar seu trabalho de convencimento das pessoas (educação das consciências!), de evangelização e obter, rapidamente, o sucesso! Qualquer semelhança com aquilo que assistimos hoje, em nossa Igreja e nas demais, não é mero acaso! 

Quem sabe, não seja por tudo isso, que não estejamos conseguindo contagiar, convencer o mundo de que: Só Cristo salva! As pessoas não estão, talvez, percebendo amor naquilo que fazemos, pregamos e celebramos! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Concede-me Senhor o dom do amor. / O dom de amar todo o mundo,

de amar tudo em toda a terra / e, sobretudo, os homens, nossos irmãos,

que são, por vezes, tão infelizes. / De amar também as pessoas felizes,

que tantas vezes são pobres fantoches. / Dá-nos, Senhor, a força de amar sobretudo os que não nos amam, / antes de tudo os que não amam ninguém,

para os quais, quando a Hora soar, tudo acaba para sempre.

Que a nossa vida seja o reflexo do Teu amor!

Amar o próximo que está no cabo do mundo; / amar o estrangeiro que está ao nosso lado; / consolar, perdoar, abençoar, estender os braços.

Amar aqueles que se esgotam / em correrias inúteis em redor de si mesmos:

fazer brotar uma fonte no deserto do coração; / libertar os solitários, erguer os prostrados, / abrir com um sorriso os corações fechados. Amar, amar...

Então uma grande primavera transformará a terra / e tudo em nós reflorirá.»

(Raul Follereau: 1903 a 1977 - escritor, jornalista e filantropo francês, conhecido por ter fundado uma associação de luta contra a lepra)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – I Domenica di Quaresima – 10 marzo 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 18/02/2025).

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