Memória do Martírio de São João Batista

 Evangelho: Marcos 6,17-29 

Telmo José Amaral de Figueiredo

Padre da Diocese de Jales (SP), biblista e pesquisador 

De nada serve calar a voz dos profetas

A memória do martírio de São João Batista é acompanhada pela solenidade do seu natalício, celebrada no dia 24 de junho. João é primo de Jesus, concebido tardiamente por Zacarias e Isabel, ambos descendentes de famílias sacerdotais: o seu nascimento situa-se cerca de seis meses antes do de Cristo, em coerência com o episódio evangélico da Visitação de Maria a Isabel. A data da sua morte, porém, ocorrida entre os anos 31 e 32, remonta à dedicação de uma pequena basílica do século V no local do seu túmulo, Sebaste de Samaria: nesse dia, de fato, parece ter sido encontrada a sua cabeça, a qual o Papa Inocêncio II faz transladar para Roma na igreja de San Silvestre in Capite. A celebração do martírio tem origens antigas: já estava presente em França no século V e em Roma no século seguinte. 

No martírio de João temos quatro personagens envolvidos:

* o rei Herodes Antipas, um dos filhos herdeiros de Herodes, o Grande, era “corrupto e indeciso”;

* Herodíades, esposa do irmão do rei, que “só sabia odiar”;

* Salomé, filha de Herodíades, “a dançarina vaidosa”; e

* o João, o Batista, “profeta decapitado sozinho em sua cela”. 

A motivação principal do martírio 

João Batista não foi prudente e, muito menos,  diplomático! Diante da situação surgida na Galileia, com o rei Herodes Antipas tomando como mulher a esposa de Filipe, seu irmão, infringindo assim tanto a lei divina (Lv 18,16): 

Não descobrirás a nudez da mulher de teu irmão; é nudez de teu irmão.»

(Levítico 18,16)

Como, a moralidade! João poderia ter “contextualizado” a transgressão do rei e colocado dentro das prerrogativas e privilégios de um soberano. João Batista poderia muito bem ter deixado de lado a questão da vida privada do rei. Se ele estivesse governando bem, qual seria o problema de o rei ter lá as suas quedas pela mulher do irmão, ter tomado a mulher do seu irmão, cometido adultério? Essas coisas de moral familiar poderiam ficar de lado se João Batista observasse apenas e tão somente o lado bom, digamos assim, do rei que permitia à classe sacerdotal continuar governando e liderando a religião do povo tranquilamente. 

Em vez disso, João, teimoso e obstinado, insistiu em denunciar Herodes: «Não te é permitido ficar com a mulher do teu irmão» (Mc 6,18). Você quer sossego e vida longa? Então nunca denuncie uma pessoa poderosa. Os convites à mudança não chegam até essa pessoa, ela nunca pensará em se converter. Os poderosos reagem da única forma que lhes convém, através da brutalidade e da violência

Como dissemos acima, Herodíades somente alimentava ódio em seu coração, pois era cúmplice do assassinato do seu próprio marido por parte do seu irmão mais poderoso, Herodes Antipas. Sabemos que o ódio é capaz de tudo, é uma grande força. O ódio é o respiro de Satanás, como afirma Papa Francisco. Afinal, do maligno não se espera amor. Seu “amor” é ódio! E Herodíades tinha o espírito satânico do ódio, que destrói, como reconhece novamente Papa Francisco. O rei diz a Salomé: “Eu te darei tudo”, frase semelhante àquela dita por Satanás a Jesus na tentação do deserto, quando ele, levando Jesus a uma montanha muito elevada, diz-lhe: 

«Tudo isso te darei, se te prostrares para me adorar.»

(Mateus 4,9)

Toda cena é cheia de vaidade. A vaidade do rei, que quer agradar os seus convivas, a vaidade de Salomé, a jovem que dança e que brilha no salão do palácio real, e o ódio, a sede de poder de Herodíades, a mãe. João Batista acaba sendo morto, o rei não tem outra alternativa que entregar a cabeça e a vida de João Batista, o profeta, à sua amante que se tornou a sua mulher. 

Aparentemente, Herodíades conseguiu o seu intento. Porém isso é ilusório e temporário. É a estupidez e a impotência do poder. O poder sempre pensou em silenciar as vozes dissidentes, encerrando, eliminando, quando possível até fisicamente, a voz e a pessoa daqueles que têm a coragem, em todas as épocas, de gritar: “Não é permitido!”.

Mas a vida é mais forte que a morte, assim como a luz é mais poderosa que as trevas. É por isso que a verdade sempre se apresenta e leva a melhor sobre a mentira, mesmo quando esta mentira é imposta como verdade oficial. 

Tendo silenciado o profeta de uma vez por todas, Herodes pensa que pode dormir tranquilamente. Em vez disso, ele é assaltado por pesadelos e fantasmas, porque a voz que ele pensava ter silenciado, agora, ressoa com mais força do que nunca na figura de Jesus, em quem o rei, nas suas obsessões, pensa reconhecer o Batista: “Esse João, a quem eu mandei decapitar, ressuscitou” (Marcos 6,16). Um Batista muito mais poderoso do que aquele que assassinou, porque “as forças milagrosas atuam nele” (Mt 14,2), capacidade que estava ausente em João. 

Esta é a estupidez e a impotência do poder: não sabe que quando sufoca uma voz, o Senhor levanta outra ainda mais poderosa que a eliminada!

Mas os poderosos são estúpidos (“O tolo foi colocado em altos cargos”, Eclesiastes 10,6). O estúpido na Bíblia não é aquele que sofre de deficiência mental, mas aquele que pensa apenas na sua conveniência imediata (cf. Lc 12,20; Mc 7,22), que é precisamente a característica dos poderosos, 0s quais, como denunciou o profeta Isaías, são “cães vorazes, nada os deixa satisfeitos. São pastores que não conseguem entender: todos seguem seu próprio caminho, cada um na sua ganância, desde o mais alto até o último” (Is 56,11). 

E a estupidez do poder também será vista no comportamento de Caifás, o sumo sacerdote. O detentor do mais alto cargo espiritual pensará, ao eliminar Jesus, que afastou definitivamente qualquer perigo para a instituição religiosa, posta em crise pelo ensinamento e pela vida do homem de Nazaré.

A denúncia de Jesus em relação às autoridades religiosas é de fato ainda mais grave do que a de João Batista a Herodes. O Batista acusou o rei de conduta ilegal. 

Jesus acusa os líderes religiosos de serem assassinos e mentirosos como o seu pai, o diabo:Vós tendes por Pai o Diabo, e quereis fazer o que o vosso Pai deseja. Ele era homicida desde o princípio, e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele fala mentira, fala o que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai da mentira” (João 8,44).

Para Jesus, as autoridades religiosas são como o seu pai, o diabo, enganadores e assassinos, porque sempre sacrificaram os homens ao seu próprio interesse, à sua própria honra, ao seu próprio prestígio e, mais grave ainda, mascararam o seu interesse por trás de uma doutrina religiosa

Está coberto de razão Papa Francisco quando ele, a respeito dessa passagem bíblica que estamos refletindo hoje na memória do martírio de João Batista, nos diz: 

«A vida só tem valor em dá-la, em dá-la com amor, na verdade, em dá-la aos outros, na vida quotidiana, na família. Sempre doá-la. Se alguém toma a vida para si, para guardá-la, como o rei [Herodes] na sua corrupção ou a senhora [Herodíades] com ódio, ou a menina, a moça [Salomé], com a sua própria vaidade ― um pouco adolescente, inconsciente ― a vida morre, a vida acaba murchando, não serve a nada!»

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