«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

ENTREVISTA DO PAPA AO JORNALISTA EUGENIO SCALFARI

La Repubblica
01-10-2013
Papa Francisco com os cardeais - Vaticano
Disse-me o papa Francisco: “O mais grave dos males que afligem o mundo nestes anos é o desemprego dos jovens e a solidão em que são deixados os idosos. Os idosos necessitam de cuidado e de companhia. Os jovens precisam de trabalho e de esperança, mas não têm nenhum dos dois. Diga-me: pode-se viver jogado fora do presente? Sem memória do passado e sem desejo de projetar-se no futuro construindo um projeto, um futuro, uma família? É possível continuar assim? Isto, segundo me parece, é o problema mais urgente que a Igreja tem pela frente”.
Santidade, lhe digo, é um problema sobretudo político, diz respeito aos Estados, aos governos, aos partidos, às organizações sindicais.
"Sem dúvida, o senhor tem razão, mas diz respeito à Igreja, sobretudo à Igreja, porque esta situação não fere somente os corpos, mas também as almas. A Igreja deve sentir-se responsável tanto pelas almas quanto pelos corpos."
Santidade, o senhor diz que a Igreja dever ser responsável. Devo deduzir que a Igreja não está consciente deste problema e que o senhor a incita nesta direção?
"Em grande medida, existe a consciência, mas não o bastante. Eu desejo que ela seja maior. Não é somente este problema que temos pela frente, mas é o mais urgente e o mais dramático."
O encontro com o Papa ocorreu na terça-feira passada, na sua residência de Santa Marta, numa pequena sala, austera, com uma mesa e cinco ou seis cadeiras, um quadro na parede. Foi precedida por um telefonema que não mais esquecerei enquanto eu estiver vivo.
Eram duas e meia da tarde. Tocou o telefone, e a voz um pouco agitada da minha secretária me disse: “O Papa está na linha e o passo imediatamente”.
Surpreso, ouço imediatamente a voz de Sua Santidade do outro lado da linha, que diz:
“Bom dia, sou Papa Francisco.”
Bom dia, Santidade – digo, e depois – estou surpreso. Não esperava que me telefonasse.
"Por que surpreso? O senhor me escreveu uma carta pedindo para me conhecer pessoalmente. Eu tinha o mesmo desejo e aqui estou para agendar o encontro. Vejamos a minha agenda: quarta-feira não posso, nem segunda-feira. O senhor pode na terça?"
Respondo: “Sim, está ótimo!”
"O horário é um pouco incômodo. Às 15h00, pode ser? Se não puder, mudamos o dia."
Santidade, o horário está ótimo.
"Então, estamos de acordo: terça-feira, 24, às 15h. Em Santa Marta. O senhor deve entrar pela porta do Santo Ofício."
Não sei como concluir este telefonema e lhe digo: posso abraçá-lo pelo telefone?
"Sem dúvida, lhe abraço igualmente. Depois o faremos pessoalmente. Até logo."
Agora estou eu aqui. O Papa entra e me dá a mão. Sentamos. O Papa sorri e me diz:
"Alguns dos meus colaboradores que lhe conhecem me disseram que o senhor tentará me converter."
É uma anedota e lhe respondo. Também os meus amigos pensam que o senhor quer me converter. Ele sorri e responde:
"O proselitismo é uma solene besteira (una solene sciocchezza, em italiano), não tem sentido. É preciso que nos conheçamos, nos escutemos e cresçamos no conhecimento do mundo que nos circunda. Acontece comigo que, depois de um encontro, tenho vontade de fazer outro, porque nascem novas ideias e se descobrem novas necessidades. Isto é importante: conhecer-se, ouvir, ampliar o horizonte dos pensamentos. O mundo é feito de estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o Bem."
Santidade, existe uma visão única do Bem? E quem o estabelece?
"Cada um de nós tem uma visão do Bem e também do Mal. Devemos incitar a proceder para aquilo que cada um pensa que seja o Bem."
O senhor, Santidade, já o escrevera na carta que me endereçou. A consciência é autônoma, dissera, e cada um de nós deve obedecer à própria consciência. Penso que aquela seja uma das passagens mais corajosas ditas por um Papa.
"E o repito. Cada um de nós tem uma ideia do Bem e do Mal e deve fazer a escolha de seguir o Bem e combater o Mal como o concebe. Isto bastaria para melhorar o mundo."
A Igreja o está fazendo?
"Sim, as nossas missões têm este objetivo: individuar as necessidades materiais e imateriais das pessoas e buscar satisfazê-las da maneira como podemos. O senhor sabe o que é 'ágape'?"
Sim, sei.
"É o amor pelos outros, como Nosso Senhor o pregou. Não é proselitismo, é amor. Amor pelo próximo, fermento que serve o bem comum."
Ama o próximo como a ti mesmo.
"Exatamente assim."
Jesus na sua pregação disse que o ágape, o amor pelos outros, é o único modo de amar a Deus. Corrija-me caso esteja errado.
"Não está errando. O Filho de Deus se encarnou para infundir nas almas dos homens o sentimento da fraternidade. Todos irmãos e todos filhos de Deus. Abba, como ele chamava o Pai. Eu lhes indico o caminho, dizia. Segui e encontrareis o Pai e sereis todos seus filhos e Ele terá a sua complacência em vocês. O ágape, o amor de cada um de nós por todos os outros, do mais próximo aos mais longínquos, é, precisamente, o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças."
Contudo, a exortação de Jesus, recordamos anteriormente, é que o amor pelo próximo é igual ao que temos a nós mesmos. Portanto, o que muitos chamam de narcisismo é reconhecido como válido, positivo, na mesma medida do outro. Discutimos longamente a este respeito.
"A mim – dizia o Papa – a palavra narcisismo não agrada, indica um amor desfocado para si mesmo e isto não é bom, pois pode produzir graves problemas não somente para a alma de quem é afetado, mas também na relação com os outros, com a sociedade em que vive. O verdadeiro problema é que os mais atingidos por isto, que na realidade é uma espécie de distúrbio mental, são pessoas que têm muito poder. Muitas vezes os chefes  (“i Capi”, no original) são narcísicos."
Também muitos chefes da Igreja foram narcísicos.
"Sabe o que penso sobre isto? Os chefes da Igreja muitas vezes foram narcísicos e excitados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado."
Eugenio Scalfari - jornalista italiano e fundador do jornal "La Repubblica" (Roma)
A lepra do papado. O senhor falou precisamente assim. Mas que corte? O senhor alude, por acaso, à Cúria?, perguntei.
"Não, na Cúria há, às vezes, cortesãos. Mas a Cúria na sua complexidade é uma outra coisa. É a que nos exércitos se chama de intendência, gere os serviços que servem a Santa Sé. Mas tem um defeito: é Vaticano-cêntrica. Vê e cuida dos interesses do Vaticano, que são ainda, em grande parte, interesses temporais. Esta visão Vaticano-cêntrica descuida do mundo que nos circunda. Não compartilho com esta visão e farei tudo para mudá-la. A Igreja é e deve voltar a ser uma comunidade do povo de Deus, e os presbíteros, os párocos, os bispos estão a serviço do povo de Deus. A Igreja é isto, uma palavra, não por acaso, diferente de Santa Sé, que tem uma função importante, mas está a serviço da Igreja. Eu não teria a fé plena em Deus e no seu Filho se não fosse formado na Igreja e tive a sorte de me encontrar, na Argentina, numa comunidade sem a qual não teria consciência de mim e da minha fé."
O senhor percebeu a sua vocação desde jovem?
"Não, não muito jovem. Tive que trabalhar, ganhar algum salário. Fiz a universidade. Tive uma professora que aprendi a respeitar e se tornou minha amiga, era uma fervorosa comunista. Muitas vezes lia para mim e me dava para ler textos do Partido Comunista. Assim conheci também aquela concepção muito materialista. Recordo que me fez ver o comunicado dos comunistas americanos em defesa de Rosenberg, que foram condenados à morte. A mulher de que estou falando foi presa, torturada e morta pelo regime ditatorial da Argentina."
O comunismo o seduziu?
"O seu materialismo não me seduziu. Mas conhecê-lo por meio de uma pessoa corajosa e honesta me foi útil. Compreendi algumas coisas, um aspecto social, que depois encontrei na doutrina social da Igreja."
A teologia da libertação, que o papa Wojtyla excomungou, era bastante presente na América Latina.
"Sim, muitos dos seus expoentes eram argentinos."
O senhor acha que foi certo que o Papa os combatesse?
"Sim, porque davam um seguimento político à teologia. Mas muitos deles eram crentes e com um alto conceito de humanidade."
Santidade, permita-me que lhe diga algo da minha formação cultural? Fui educado por uma mãe muito católica. Aos 12 anos venci uma disputa de alunos de catequese feita entre várias paróquias de Roma e ganhei um prêmio do Vicariato. Comungava sempre nas primeiras sextas-feiras, enfim, praticava a liturgia e acreditava. Mas tudo mudou quando entrei no liceu. Li, entre outros textos de filosofia que estudávamos, o “Discurso do Método” de Descartes e fiquei impressionado pela frase, que se tornou icônica, “Penso, logo existo”. O ‘eu’ tornou-se, assim, a base da existência humana, a sede autônoma do pensamento.
"Descartes, no entanto, nunca negou a fé do Deus transcendente."
É verdade, mas tinha posto o fundamento de uma visão totalmente diferente e me encaminhou depois, corroborado por muitas outras leituras, e me levou à outra margem.
"O senhor, no entanto, se entendi bem, é não crente mas não um anticlerical. São duas coisas muito diferentes."
É verdade, não sou anticlerical, mas me torno quando encontro um clerical.
O Papa sorri e me diz:
"Também me acontece isto. Quando encontro um clerical, me torno anticlerical de vez. O clericalismo não deveria ter nada a ver com o cristianismo. São Paulo, que foi o primeiro a falar aos Gentios, aos pagãos, aos crentes em outras religiões, foi o primeiro a nos ensinar isto."
Posso lhe pedir, Santidade, quais são os santos que estão mais próximos da sua alma e quais lhe ajudaram a formar a experiência religiosa?
"São Paulo é aquele que colocou os eixos da nossa religião e do nosso credo. Não se pode ser cristão consciente sem São Paulo. Traduziu a pregação de Cristo numa estrutura doutrinária que, apesar das atualizações de uma imensa quantidade de pensadores, de teólogos, de pastores de almas, resistiu e resiste depois de dois mil anos. E depois Agostinho, Bento e Tomás e Inácio. E, naturalmente, Francisco. Devo lhe explicar por quê?"
Francisco – seja-me permitido, a esta altura, chamá-lo assim, porque é ele mesmo que o sugere pelo que fala, sorri, por suas exclamações de surpresa ou de partilha, me olha como que me encorajando a lhe fazer perguntas mais escabrosas e mais complicadas para quem guia a Igreja. Assim, lhe pergunto: De Paulo explicou a importância e o seu papel, mas gostaria de saber quais foram, entre os que foram citados, os que sente mais próximos da sua alma?
"O senhor me pede uma classificação, mas estas podem ser feitas se falamos de esporte ou de coisas análogas. Poderei lhe citar os melhores jogadores de futebol da Argentina. Mas os santos...
Mas não quero fugir da sua pergunta. O senhor não me pediu uma classificação sobre a importância cultural e religiosa, mas quais santos estiveram mais próximos da minha alma. Então lhe digo: Agostinho e Francisco."
E não Inácio, ordem a qual o senhor pertence?
"Inácio, por razões compreensíveis, é aquele que conheço mais do que os outros. Fundou a nossa Ordem. Recordo-lhe que desta Ordem também era Carlo Maria Martini, que me é muito caro assim como ao senhor. Os jesuítas foram e ainda são o fermento – não os únicos mas, talvez, os mais eficazes – da catolicidade; cultura, ensino, testemunho missionário, fidelidade ao Pontífice. Mas Inácio fundou a Companhia, era também um reformador e um místico. Sobretudo um místico."
E o senhor acha que os místicos são importantes para a Igreja?
"Foram fundamentais. Uma religião sem místicos é uma filosofia."
O senhor tem uma vocação mística?
"O que o senhor acha?"
Parece-me que não.
"Provavelmente, o senhor tenha razão. Adoro os místicos. Também Francisco, por muitos aspectos da sua vida, foi místico, mas eu não acredito que tenha esta vocação. Mas é preciso que nos entendamos sobre o significado profundo desta palavra. O místico consegue despojar-se do fazer, dos fatos, dos objetivos e até da pastoralidade missionária e se eleva até atingir a comunhão com as Bem-aventuranças. São momentos breves, mas que preenchem a vida inteira."
Para o senhor isto nunca aconteceu?
"Raramente. Por exemplo, quando o Conclave me elegeu Papa. Antes da aceitação, pedi para me retirar por alguns instantes no quarto que fica ao lado do balcão sobre a praça. A minha cabeça estava completamente vazia e uma grande ânsia me invadira. Para fazê-la passar e me relaxar, fechei os olhos e todo e qualquer pensamento desapareceu. Também aquele de recusar o encargo, como o resto do procedimento litúrgico seguinte. Fechei os olhos e não tive mais nenhuma ânsia ou emotividade. A um certo ponto, uma grande luz me invadiu. Durou um instante, mas me pareceu algo longuíssimo. Depois a luz se dissipou. Levantei-me e me dirigi até a sala em que me esperavam os cardeais e a mesa sobre a qual estava o ato de aceitação. Assinei-o, o cardeal camerlengo o assinou, e depois foi o momento do 'Habemus Papam'."
Permanecemos alguns momentos em silêncio e depois disse: falávamos dos santos que o senhor sente mais próximos da sua alma e ficamos em Agostinho. Pode me dizer por que o sente mais próximo de si?
"Também o meu predecessor [Bento XVI] tem em Agostinho o seu ponto de referência. Esse santo passou por muitos eventos na sua vida e mudou várias vezes a sua posição doutrinária. Teve também palavras muito duras no confronto com os hebreus, que eu nunca compartilhei. Escreveu muitos livros, e aquele que me parece mais revelador da sua intimidade intelectual e espiritual é “Confissões”. Elas contêm algumas manifestações de misticismo, mas ele não é, como muitos sustentam, o continuador de Paulo. Ele vê a Igreja e a fé no mundo de uma maneira profundamente diferente de Paulo, talvez porque quatro séculos os separam."
Qual é a diferença, Santidade?
"Para mim, em dois aspectos substanciais. Agostinho se sente impotente de fronte à imensidade de Deus e às tarefas que um cristão e um bispo deveriam realizar. No entanto, ele não foi impotente, mas na sua alma se sentia sempre como estando abaixo do que deveria e queria fazer. E, depois, a graça dispensada pelo Senhor como elemento fundante da fé. Da vida. Do sentido da vida. Quem não é tocado pela graça pode ser uma pessoa sem mácula e sem medo, mas não será jamais como alguém que a graça tocou. Esta é a intuição de Agostinho."
O senhor se sente tocado pela graça?
"Isto não se pode saber. A graça faz parte da consciência, é a quantidade de luz que temos na alma, não de sabedoria nem de razão. Também o senhor, sem o saber, poderia estar tocado pela graça."
Sem fé? Não crente?
"A graça diz respeito à alma."
Eu não creio em alma.
"Não crê, mas tem."
Santidade, o senhor dissera que não tinha nenhuma intenção em me converter e creio que não conseguiria.
"Isto não se sabe; contudo, não tenho nenhuma intenção em lhe converter."
E Francisco?
"É grandíssimo porque é tudo. Homem que quer fazer, quer construir, funda uma Ordem e as suas regras, é itinerante e missionário, é poeta e profeta, é místico. Constatou, nele mesmo, o mal e o superou. Ama a natureza, os animais, a erva do campo e os pássaros que voam no céu, mas sobretudo ama as pessoas, as crianças, os velhos, as mulheres. É o exemplo mais luminoso daquele ágape de que falávamos antes."
O senhor tem razão, Santidade. A descrição é perfeita. Mas por que nenhum dos seus predecessores escolheu o nome de Francisco? E, segundo me parece, nenhum outro o escolherá depois do senhor.
"Isto não sabemos. Não projetemos o futuro. É verdade, antes nenhum o escolheu. Aqui afrontamos o problema dos problemas. O senhor quer beber algo?"

Tradução do italiano por IHU On Line, com algumas correções feitas por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 1 de outubro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/524255-a-corte-e-a-lepra-do-papado
[Daqui em diante, tradução de Telmo José Amaral de Figueiredo.
Este texto não foi publicado pelo IHU - Notícias]

Obrigado, quem sabe um copo d'água.
Levanta-se, abre a porta e pede a um colaborador, que está na entrada, para trazer dois copos d'água. Pergunta-me se desejaria um café, respondo que não. Chega a água. Ao final da nossa conversa, o meu copo estará vazio, mas o seu permaneceu cheio. Limpa a garganta e recomeça.

"Francisco queria uma Ordem mendicante e também itinerante. Missionários em busca de encontrar, escutar, dialogar, ajudar, difundir fé e amor. Sobretudo, amor. E sonhava com uma Igreja pobre que cuidasse dos outros, recebesse ajuda material e a utilizasse para sustentar os outros, com nenhuma preocupação consigo mesma. Passaram-se 800 anos desde então e os tempos são muito diferentes, mas o ideal de uma Igreja missionária e pobre permanecesse mais que válida. Esta é, de qualquer modo, a Igreja que pregaram Jesus e os seus discípulos."

Vós, os cristãos, agora sois uma minoria. Até mesmo na Itália, que é definida como o jardim do Papa, os católicos praticantes seriam, de acordo com as pesquisas, entre os 8 e 15 por cento. Os católicos que dizem sê-lo, mas, de fato, são muito pouco, são uns 20 por cento. No mundo existe um bilhão de católicos ou mais e, com as demais Igrejas cristãs, superais um bilhão e meio, mas o planeta é povoado por 6-7 bilhões de pessoas. Sois, certamente, muitos, especialmente na África e na América Latina, mas minorias.

"Sempre fomos minoria, mas o tema hoje não é este. Pessoalmente, penso que ser uma minoria seja, inclusive, uma força. Devemos ser um fermento de vida e de amor e o fermento é uma quantidade infinitamente menor que a massa dos frutos, das flores e das árvores que nascem daquele fermento. Parece-me já ter dito antes, que o nosso objetivo não é o proselitismo, mas a escuta das necessidades, dos desejos, das desilusões, do desespero, da esperança. Devemos dar, novamente, esperança aos jovens, ajudar os anciãos, abrir-nos em direção ao futuro, difundir o amor. Pobres entre os pobres. Devemos incluir os excluídos e pregar a paz. O [Concílio] Vaticano II, inspirado pelo papa João XXIII e por Paulo VI, decidiu olhar o futuro com espírito moderno e abrir-se à cultura moderna. Os padres conciliares sabiam que abrir-se à cultura moderna significava o ecumenismo religioso e o diálogo com os não-crentes. Depois disso, foi feito muito pouco naquela direção. Eu tenho a humildade e a ambição de desejar fazê-lo."

Mesmo porque - permita-me acrescentar - a sociedade moderna, em todo o planeta, atravessa um momento de crise profunda e não somente econômica, mas social e espiritual. O senhor, no início desse encontro, descreveu uma geração, atualmente, esmagada. Mesmo nós, não crentes, sentimos este sofrimento quase antropológico. Por isso, desejamos dialogar com os crentes e com quem melhor os representa.

"Eu não sei se sou aquele que melhor os representa, mas a Providência colocou-me como guia da Igreja e da Diocese de Pedro. Farei quanto puder para cumprir o mandato que me foi confiado."

Jesus, como o senhor recordou, disse: ama o teu próximo como a ti mesmo. Parece-lhe que isto tenha acontecido?

"Infelizmente, não. O egoísmo aumentou e o amor pelos outros diminuiu."

Este é, portanto, o objetivo que temos em comum: pelo menos, equilibrar a intensidade destes dois tipos de amor. A vossa Igreja está pronta e adaptada para realizar esta tarefa? 

"O senhor, o que pensa?"

Penso que o amor pelo poder temporal seja, ainda, muito forte entre os muros vaticanos e na estrutura institucional de toda a Igreja. Penso que a instituição predomine sobre a Igreja pobre e missionária que o senhor desejaria.

"As coisas estão, de fato, assim e, nesta matéria, não se fazem milagres. Recordo-lhe que também Francisco, em seu tempo, teve de negociar longamente com a hierarquia romana e com o Papa para conseguir reconhecer as regras de sua Ordem. Finalmente, obtém a aprovação, mas com profundas mudanças e concessões."

O senhor deverá seguir o mesmo caminho?

"Não sou, certamente, Francisco de Assis e não tenho a sua força e a sua santidade. Mas sou o Bispo de Roma e o Papa da catolicidade. Decidi, como primeiro gesto, nomear um grupo de oito cardeais para serem o meu conselho. Não cortesãos, mas pessoas sábias e animadas pelos mesmos sentimentos meus. Este é o início daquela Igreja com uma organização não somente vertical, mas também horizontal. Quando o cardeal [Carlo Maria] Martini falava disso, enfatizando os Concílios e os Sínodos sabia, muito bem, como seria longa e difícil a estrada a ser percorrida naquela direção. Com prudência, mas firmeza e tenacidade."

E a política?

"Por que me pergunta sobre isso? Eu já disse que a Igreja não se ocupará com a política."

No entanto, justamente alguns dias atrás, o senhor fez um apelo aos católicos para empenharem-se civilmente e politicamente.

"Não me dirigi somente aos católicos, mas a todos os homens de boa vontade. Disse que a política é a primeira das atividades cívicas e possui um campo próprio de ação que não é aquele da religião. As instituições políticas são laicas por definição e operam em esferas independentes. Todos os meus predecessores disseram isso, ao menos de muitos anos para cá, mesmo que com tonalidades diversas. Acredito que os católicos empenhados na política tenham, dentro de si, os valores da religião, mas com uma consciência madura e competência para colocá-los em prática. A Igreja não irá, jamais, além da tarefa de exprimir e difundir os seus valores, ao menos até quando eu estiver aqui."

Mas a Igreja nem sempre foi assim.

"Não foi quase nunca assim. Muito frequentemente a Igreja, como instituição, foi dominada pelo temporalismo e muitos membros e altos expoentes católicos têm, ainda, este modo de sentir. Mas, agora, permita-me fazer-lhe uma pergunta: o senhor, leigo não crente em Deus, em que coisa acredita? O senhor é um escritor e um intelectual. Acreditará, portanto, em alguma coisa, terá um valor dominante. Não me responda com palavras tais como: a honestidade, a busca, a visão do bem comum; todos princípios importantes, mas não é isso que lhe peço. Peço-lhe o que pensa da essência do mundo, na verdade, do universo. Certamente, se pergunta, como todos, quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Mesmo uma criança se coloca essas perguntas. E o senhor?"

Eu lhe sou grato por esta pergunta. A resposta é esta: creio no Ser, isto é, no tecido do qual surgem as formas, os Entes. 

"E eu creio em Deus. Não num Deus católico, não existe um Deus católico, existe Deus. E creio em Jesus Cristo, sua encarnação. Jesus é o meu mestre e o meu pastor, mas Deus, o Pai, Abbá, é a luz e o Criador. Isto é o meu Ser. Parece-lhe que estejamos muito distantes?"

Estamos distantes no pensamento, mas parecidos como pessoas humanas, animadas, inconscientemente, pelos nossos instintos que se transformam em pulsões, sentimentos, vontades, pensamento e razão. Nisto somos parecidos.

"Mas aquilo que chamais o Ser, podeis definir como o pensais?"

O Ser é um tecido de energia. Energia caótica, mas indestrutível e em eterna caoticidade. Desta energia emergem as formas quando a energia chega ao ponto de explodir. As formas têm as suas leis, os seus campos magnéticos, os seus elementos químicos, que se combinam casualmente, evoluem e, enfim, se apagam, mas a sua energia não se destrói. O homem é, provavelmente, o único animal dotado de pensamento, ao menos neste planeta e em nosso sistema solar. Disse, é animado por instintos e desejos, mas acrescento que contém, também, dentro de si, uma ressonância, um eco, uma vocação de caos. 

"Certo. Não queria que me fizesse um compêndio da sua filosofia e me disse o suficiente. Observo, da minha parte, que Deus é luz que ilumina as trevas, mesmo que não as dissolva e uma centelha dessa luz divina está dentro de cada um de nós. Na carta que vos escrevi, lembro-me de haver-vos dito que também a nossa espécie acabará, mas não acabará a luz de Deus que, em seguida, invadirá todas as almas e será tudo em todos."

Sim, recordo-me bem, dissestes "toda a luz estará em todas as almas" o que - se posso permitir-me - oferece mais uma imagem de imanência que de transcendência.

"A transcendência permanece porque aquela luz, toda em todos, transcende o universo e as espécies que, naquela fase, o povoam. Mas voltemos ao presente. Demos um passo adiante em nosso diálogo. Constatamos que, na sociedade e no mundo em que vivemos, o egoísmo aumentou muito mais que o amor pelos outros; e os homens de boa vontade devem trabalhar, cada um com a sua própria força e competência, para fazer com que o amor pelos outros aumente até igualar-se e, possivelmente, superar o amor por si mesmo."

Aqui, também a política é posta em causa.

"Seguramente. Pessoalmente, penso que o chamado liberalismo selvagem não faça que tornar os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos mais excluídos. É preciso uma grande liberdade, nenhuma discriminação, nenhuma demagogia e muito amor. São necessárias regras de comportamento e, também, se for o caso, intervenções diretas do Estado para corrigir as desigualdades mais intoleráveis."

Santidade, vós sois, certamente, uma pessoa de muita fé, tocada pela graça, animada pela vontade de reviver uma Igreja pastoral, missionária, regenerada e não mundanizada. Mas, pela maneira como falais e por aquilo que compreendo, vós sois e sereis um Papa revolucionário. Metade jesuíta, metade homem de Francisco, uma combinação que, talvez, jamais se tenha visto. Também gostais de "I Promessi Sposi" [trad.: "Os Noivos"] de Manzoni, Holderlin, Leopardi e, sobretudo, Dostoiévski, o filme "La strada" [trad.: "A estrada"] e "Prova d'orchestra" [trad.: "Ensaio de orquestra"] de Fellini, "Roma città aperta" [trad.: "Roma cidade aberta"] de Rossellini e, também, o filme de Aldo Fabrizi.

"Estes me agradam porque os assistia com os meus pais, quando era criança."

Certo. Posso sugerir-vos ver dois filmes lançados recentemente? "Viva la libertà" [trad.: "Viva a liberdade"] e o filme sobre Fellini de Ettore Scola. Tenho certeza que vos agradarão.
Sobre o poder vos digo: sabeis que aos vinte anos fiz um mês e meio de exercícios espirituais com os jesuítas? Havia nazistas em Roma e eu tinha deserdado do serviço militar. Éramos punidos com a pena de morte. Os jesuítas nos hospedaram com a condição de que fizéssemos os exercícios espirituais por todo o tempo em que estávamos escondidos na casa deles, e assim se deu.

"Mas é impossível resistir a um mês e meio de exercícios espirituais", diz ele espantado e divertido.

Da próxima vez vos contarei o que veio depois.
Abraçamo-nos. Subimos a curta escada que nos separa do portão. Peço ao Papa para não acompanhar-me, mas ele nega com um gesto.

"Falaremos, também, sobre o papel das mulheres na Igreja. Recordo-vos que a Igreja é feminina."

E falaremos, se vós o quiserdes, também, de Pascal. Agradaria-me saber o que pensais sobre esta grande alma.

"Levai a todos os vossos familiares a minha bênção e pedi-lhes que rezem por mim. Lembrai de mim, lembrai sempre de mim."

Apertamo-nos as mãos e ele permanece parado com dois dedos levantados em sinal de bênção. Despeço-me dele pela janela. Este é o Papa Francisco. Se a Igreja se tornar como ele a imagina, será uma mudança de época.

Original em italiano, acesso aqui: 
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Papa Francisco vai refazer Constituição do Vaticano

Jamil Chade

Grupo começa a se reunir nesta terça-feira com o pontífice para reformar a Igreja e ainda deve opinar sobre temas diversos, incluindo casamento e divórcio
Cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga - líder do G8

Sob as ordens do papa de "rasgar e rescrever" a Constituição Apostólica, oito cardeais começam nesta terça-feira, 1º de outubro, as reuniões com Francisco para reformar o Vaticano, sua burocracia, suas operações e a forma pela qual se comunica com fiéis e o mundo. A meta será a de dar maior voz aos bispos de todo o mundo e, de certa forma, descentralizar parte das ações da Santa Sé.

Em abril, o papa anunciou a escolha de oito cardeais que iriam liderar o processo de reforma e que, durante os últimos meses, coletaram centenas de propostas de todo o mundo e prepararam um informe de mais de 500 páginas.

O líder do grupo, o cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga, revelou que o pedido do papa não era apenas de mudar "isso ou aquilo" na Constituição, conhecida como Pastor Bonus. "Essa Constituição acabou", disse Maradiaga, se referindo aos textos que foram emitidos em 1988 pelo papa João Paulo II. "Vamos fazer algo diferente. Precisamos escrever algo diferente", disse o cardeal, em entrevista a uma TV canadense.

Mas a reforma da Constituição é apenas parte do processo. O papa pediu ao grupo a opinião sobre o casamento e a possibilidade de divorciados que voltem a se casar poderem comungar, sobre o sínodo dos bispos e sobre a relação entre a Igreja de base e a Igreja em Roma. Segundo o Estado apurou, parte das propostas indica um equilíbrio entre uma flexibilização da posição da Igreja e a manutenção dos dogmas intactos.

Fontes no Vaticano admitiram ao Estado que há um sentimento nos últimos dias entre a Cúria de "expectativa e nervosismo". "Essa será a maior obra de Francisco na Igreja e ele sabe que poderá abalar as estruturas do Vaticano", reconheceu um religioso na Santa Sé, que pediu para não ser identificado.

Para fazer a reforma, Francisco escolheu seu G8 (grupo de oito cardeais), mas deixou claro que queria que as propostas fossem coletadas da base. A estratégia é mostrar àqueles que resistem às mudanças que, na prática, o papa apenas está escutando as realidades de diferentes bispos pelo mundo. "Francisco quer usar sua base como seu próprio escudo", contou outro diplomata.

Um temor do grupo que apoia o papa é que a implementação de qualquer uma das propostas de reforma acabe criando um mal-estar político dentro da Cúria. Não por acaso, no fim de semana, o papa deu claras indicações de que não aceitará que a Santa Sé se transforme em um local de disputa de poder. No sábado, em uma conversa com a segurança do Vaticano, ele ordenou que os policiais não hesitem em punir quem praticar "fofoca". "Isso é uma guerra travada com a língua", disse. "Aqui não pode haver isso."

Escuta
Na reunião desta terça, o papa vai mais escutar do que falar. Cada um dos cardeais apresentará sua avaliação. Mas todos no Vaticano insistem que, nesta semana, nenhuma decisão será tomada. Para Maradiaga, nada do que vai começar a ser realizado besta terça-feira poderá ser concluído em "um ou dois meses". "Esse será um processo longo."

Fonte: O Estado de S. Paulo - Metrópole - Terça-feira, 1 de outubro de 2013 - Pg. A15 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,francisco-vai-refazer-constituicao-do-vaticano,1080562,0.htm

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