Alerta de um historiador
Ponto de contato entre Trump e Mussolini
Naief
Haddad
Repórter Especial CARLO GINZBURG
Em
entrevista à Folha, historiador italiano celebrado fala sobre fake news,
tema de ensaio recém-publicado no Brasil
Em ensaio recém-publicado, Carlo Ginzburg, 85 anos, discute a atração exercida pelas fake news recorrendo a pensadores como Tácito, Maquiavel e Freud. À Folha de S. Paulo, o historiador italiano indica semelhanças entre Mussolini e Trump e defende a “leitura lenta” diante da velocidade da internet.
Já havia passado uma década da Marcha
sobre Roma, episódio que levou Benito Mussolini, à frente do Partido Nacional
Fascista, a assumir a função de primeiro-ministro da Itália. Em 1932, Il
Duce, dono de uma retórica envolvente e muitas vezes distante da verdade
factual, concedeu uma série de entrevistas ao jornalista alemão Emil Ludwig, que resultou no livro “Colloqui con
Mussolini”.
Em um desses encontros no Palácio
Venezia, na capital italiana, Ludwig disse:
“O senhor escreveu certa vez que as massas não deveriam saber, e sim
acreditar”.
Depois de assentir enfaticamente,
Mussolini complementou: “O homem moderno tem uma capacidade ilimitada para a
fé. Quando as massas parecem cera entre minhas mãos, quando suscito nelas a
fé ou quando me misturo a elas e quase sou esmagado por elas, eu sinto que sou
parte delas. Ao mesmo tempo, persiste em mim certo sentimento de aversão,
semelhante ao que sente o oleiro diante do barro que está moldando”.Adolf Hitler (esq.) é recebido por Mussolini em Veneza em 1934 - Foto: Ann Ronan Picture Library/Photo12/AFP
O líder italiano sabia explorar a
ambiguidade da palavra “massa”, que pode significar um corpo sólido ou uma grande reunião
de pessoas. Tanto que, mais adiante na entrevista, acrescentou:
“Tudo depende da habilidade para controlar as massas à maneira de um
artista”.
A desenvoltura com que o ditador falava
sobre a manipulação dos seguidores por seu mestre vinha, em grande parte, dos livros
de Maquiavel, especialmente de “A Arte
da Guerra”. Mussolini contava, aliás, que seu pai, um ferreiro socialista,
costumava ler textos do célebre autor florentino para os filhos depois do
jantar.
As ideias de Maquiavel sob a ótica de
Mussolini estão entre as que guiam “Fake news?”, uma das conferências
apresentadas por Carlo Ginzburg na Universidade
Centro-Europeia, em Budapeste, em 2019. Ampliada e transformada em um
ensaio, a fala do historiador italiano de 85 anos foi publicada na mais recente
edição da revista Serrote.
Apesar do intervalo de cinco anos entre
a conferência na Hungria e a publicação no Brasil, o texto se mantém atual. Não
só isso. “Fake news?” é mais uma demonstração de como o autor de livros como “O
Queijo e os Vermes”, publicado aqui em 1987, e “Os Andarilhos do Bem”, de 1988,
consegue estabelecer conexões improváveis também em um formato mais sucinto, os
ensaios, aos quais tem se dedicado especialmente nas últimas décadas. Um
exemplo é “Olhos de Madeira”, reunião de nove ensaios, lançada no Brasil em
2001.
No caso de “Fake news?”, a
escrita fluente e a erudição sem empáfia, lapidadas ao longo de mais de seis
décadas de carreira, estão a serviço da reflexão sobre as ondas de
desinformação, especialmente aquelas impulsionadas por governantes.
“Tento olhar para as notícias falsas
com um distanciamento crítico. É um tipo de abordagem de um ângulo oblíquo”, afirma Ginzburg à Folha.
O historiador toma como base o estranhamento, um conceito presente em boa parte
da sua obra. Estranhamento, tal qual ele escreveu, como um meio de superar a
aparência e alcançar uma compreensão mais profunda da realidade. Também se
vale de formulações de pensadores dos dois últimos milênios, dos quais o mais
antigo é Tácito, historiador romano
nascido no ano 56 depois de Cristo.TÁCITO - escritor romano (c. 55 a 120 d.C.)
Existe algum tipo de prazer em
acreditar naquilo que soa falso? “Tácito respondeu sim e colocou isso como um
paradoxo: ‘Fingunt simul creduntque’ [traduzido como: ‘fingem e
acreditam ao mesmo tempo’ e como ‘imaginavam e ao mesmo tempo
acreditavam nas próprias imaginações’]. Há uma espécie de propensão das
pessoas em acreditar em notícias falsas, em acreditar em algo que reforça
um impulso narcisista”, diz Ginzburg, incluindo outra referência no pacote, Sigmund Freud.
“Me lembro também daquela expressão em
inglês, ‘wishful thinking’, que não existe em italiano nem em português.
Uma combinação de, digamos, pensamento e desejo.”
Em “Medo, Reverência, Terror”, de 2014,
volume que reúne quatro ensaios sobre iconografia política, o historiador já
havia recorrido ao tal paradoxo (“Fingunt…”). No texto “Reler Hobbes
hoje”, além de apontar a influência de Tácito sobre o autor de “Leviatã”,
Ginzburg escreveu que o pensador romano lançou mão da expressão justamente
em um contexto de circulação de notícias falsas.
Ou seja, as ferramentas de divulgação
variam de época para época, mas o debate sobre as fake news tem, no mínimo,
2.000 anos de estrada.
Mestres
da ilusão
Em “A ascensão dos charlatões”, ensaio
publicado há quatro anos pela revista piauí,
outro importante historiador europeu, o inglês Peter
Burke, se referiu a Mussolini como “mestre da ilusão” e lembrou
que ele “costumava deixar as luzes de seu gabinete, em Roma, acesas a noite
inteira para que as pessoas pensassem que ainda estava trabalhando”.
É uma observação que nos leva a pensar
o quanto o modus operandi de Donald
Trump, que assume a Casa Branca na próxima segunda (20 de janeiro) se
assemelha às estratégias do líder italiano de um século atrás.
O ofício escolhido por Ginzburg, que o
levou a conhecer bem as engrenagens do fascismo, bastaria para que hesitasse em
fazer referências à ideologia fora do seu contexto histórico.
Além disso, há uma carga familiar. Seu
pai, o professor e jornalista Leon, foi preso pela polícia de Mussolini e, em
seguida, morto na Alemanha; sua mãe, a escritora Natalia, sempre teve uma atuação antifascista
veemente.
No entanto, Carlo Ginzburg afirma ter
notado sinais da cartilha fascista no trumpismo quando esteve em Chicago em
2015 e pôde acompanhar alguns discursos do empresário americano, então
candidato pela primeira vez à Casa Branca.
O historiador não se refere, por
exemplo, ao antissemitismo, assimilado pelo regime fascista muito por conta da
influência nazista. Nesse aspecto, segundo ele, não existe semelhança.
Mas Trump, assim como Mussolini, é bem-sucedido ao manipular as
massas lançando mão de recursos emocionais e das principais tecnologias da sua
época — o rádio em se tratando do italiano e a internet no caso do
norte-americano.
Nesse aspecto, o presidente eleito
dos Estados Unidos, que não titubeia em distorcer as informações, faz eco ao
pai do fascismo. Com novas faces, o populismo se mantém vigoroso.
Para Ginzburg, o combate às fake news só será bem-sucedido quando desenvolvermos a capacidade de ler nas entrelinhas, técnica que, segundo ele, deveria ser ensinada nas escolas. “Nietzsche, que foi filólogo antes de se tornar filósofo, dizia que a filologia é a arte da leitura lenta. Precisamos combinar a leitura lenta com a velocidade da internet”.
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Fonte: Folha de S. Paulo – Ilustríssima – Quinta-feira, 16 de janeiro de 2025 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/01/2025).
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