Desobedecer a Bíblia para escolher a vida

 Quando Deus não proibiu o camarão 

João Melo

Professor e escritor, mestrando em Educação na UERJ 

A Bíblia é, acima de tudo, portadora da mensagem de amor incondicional de Deus por você e por todos

Nenhum dos autores sagrados desencarnou-se como que num “transe psicográfico” para redigir os textos bíblicos. Na verdade, nenhum dos autores desvencilhou-se de seu contexto cultural, pois não houve quem escrevesse apartado de seu tempo e espaço, nem de seus condicionamentos históricos, inclusive os preconceitos pessoais e estruturais que os atravessavam. Está tudo lá, nas linhas e entrelinhas dos textos sagrados. E não obstante, acreditamos que mesmo nessas limitações humanas, os textos são inspirados pelo Espírito Santo que comunica vida através deles. 

Por isso que para ler e interpretar os textos, é preciso ter em conta os contextos de onde o texto foi concebido. 

No geral, os textos bíblicos eram resultado de uma experiência coletiva de fé que era escrita para um público-alvo comunitário e com uma clara intencionalidade. Por isso, eles são considerados textos comunitários e, portanto, próprios para serem lidos em celebrações comunitárias e estudados coletivamente. Dito de maneira simples: os textos foram feitos a muitas mãos para serem lidos em comunidade. Assim, a comunidade de fé costuma ser a melhor intérprete dos textos. Pense, por exemplo, em como funcionavam as sinagogas judaicas e nos estudos dos textos sagrados. 

Mas, infelizmente, esse ambiente comunitário não costumava ser assim tão abrangente. As mulheres, crianças, pessoas escravizadas e muito empobrecidas dificilmente participavam desses círculos de estudos bíblicos e, portanto, da escrita dos textos sagrados. Sim, pasmem! Sociedades bíblicas não só permitiam a escravidão (Lv 25,44-46) e a submissão feminina (1Tm 2,11-12), como a normalizavam como algo aceitável e, muitas vezes, até de acordo com as leis de Deus (Ex 21,20-21; Dt 23,15-16; Ef 6,5-9; Cl 3,22-25; 1Pd 2,18-21;1Cor 7,20-24; Gn 3,16; Ef 5,22-24; Cl 3,18; 1Pd 3,1-6). Apesar de termos alguns textos bíblicos favoráveis às mulheres e até aos escravizados, graças à ação do Espírito Santo (Fm 1,8-16; Rt), a maior parte dos textos bíblicos pressupõe a sua subalternização, pois essas pessoas foram excluídas de participarem de sua escrita e interpretação oficial.   

Na tradição católica, estabeleceu-se que as autoridades, isto é, a hierarquia da Igreja é quem faria essa interpretação mais acertada e ensinaria (Magistério) ao povo o que se deveria crer. Por isso, por muitos anos, a leitura da Bíblia não foi estimulada entre os fiéis católicos. Houve tempos, na verdade, em que infelizmente ela foi até proibida. Assim, as mulheres, crianças, os escravizados e mais empobrecidos seguiram sendo excluídos da leitura bíblica. 

Nos tempos mais recentes, as autoridades da Igreja mudaram de ideia e passaram a estimular os fiéis a lerem o texto bíblico. Entretanto, a leitura autorizada e tida como oficial permanece sendo apenas a que as autoridades fazem e comunicam chamando-a de Magistério. Mulheres, crianças e qualquer pessoa que não seja do clero católico leem, mas não podem ensinar em nome da Igreja o que interpretarem dos textos, pois é como se o Espírito Santo agisse apenas na autoridade eclesiástica que tem a função de ensinar. 

Essa tentativa de controle das interpretações bíblicas não impediu que ao longo dos séculos teólogas, teólogos e biblistas aprofundassem nos estudos dos textos sagrados e escrevessem sobre seus aprendizados. Alguns desses conhecimentos foram incorporados pelo ensinamento oficial das autoridades da Igreja através do Magistério, como a percepção de que os textos sagrados possuem gêneros literários diferentes e, por isso, não podem ser tomados ao pé da letra, pois estão carregados de significados metafóricos e simbólicos. 

O caso de Gênesis capítulos 1 a 11 talvez seja o mais emblemático, pois muda radicalmente o ensinamento das autoridades da Igreja acerca de como o mundo foi criado. Depois de séculos e de brigas homéricas como a de Galileu Galilei, hoje, a história da criação do mundo em sete dias é reconhecida como simbólica. Agora, as autoridades da Igreja ensinam que a Bíblia não explica como o mundo foi criado, mas que ela afirma, desde a fé, o fato de que o mundo foi criado por Deus. A pergunta sobre como o mundo foi criado, pode ser respondida por outros saberes, como as ciências que passam a ser mais bem consideradas pelas autoridades da Igreja. 

No entanto, nem todos os avanços dos estudiosos dos textos bíblicos são acolhidos pelas autoridades da Igreja. Os textos sobre Jesus, por exemplo, ainda hoje são, muitas vezes, interpretados literalmente. No imaginário popular da maior parte dos fiéis, as narrativas evangélicas como nascimento, milagres e ressurreição devem ser lidas como fatos históricos literais. 

Claro que tivemos avanços significativos muito importantes. Imagine você que hoje ninguém ao ler no livro de Deuteronômio, o texto que trata sobre filhos desobedientes e rebeldes que está no capítulo 21, versículos 18 a 21, obedece ao que ali se pede. Esse trecho diz:

“Se alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai nem à voz de sua mãe, e, castigando-o eles, lhes não der ouvidos; então seu pai e sua mãe o pegarão e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; e dirão aos anciãos da cidade: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um comilão e beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra; assim tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e temerá”.

Imagine você se os pais judeus e cristãos dos dias de hoje promovessem humilhações públicas de seus filhos e fossem apedrejá-los em praça pública por serem desobedientes e rebeldes… Graças a Deus que desobedecemos a Bíblia! 

Há, por exemplo, um texto que condena o consumo de camarão e crustáceos. Está no livro de Levítico 11,9-12. Esse trecho fala sobre quais criaturas aquáticas são consideradas puras e impuras:

“De todos os animais que há nas águas, comam estes: todos os que têm barbatanas e escamas, tanto nos mares como nos rios, esses comam. Mas, tudo o que não tem barbatanas nem escamas nos mares e nos rios, de todo o réptil das águas e de toda criatura vivente que há nas águas, estes serão abomináveis para vós. Serão, pois, abomináveis para vós; da sua carne não comereis, e abominareis o seu cadáver. Tudo o que nas águas não tem barbatanas nem escamas será abominável para vós”.

Portanto, camarões e outros crustáceos são considerados impuros segundo essas leis alimentares (Dt 14,9-10) e, não obstante, conheço um tanto de cristão que adora comer um camarão bem fritinho, especialmente se estiver passeando pela praia. É muito difícil levar esse texto bíblico a sério e ao pé da letra. Os biblistas, aqui me chamariam a atenção e diriam que é necessário entender o contexto da época e as razões pela qual esse texto foi escrito. E eu concordo. 

Por fim, gostaria de destacar mais um texto do livro de Levítico. O capítulo 18 trata das relações sexuais. Nesse contexto é considerado normal que um pai de família, além de sua esposa tenha lá sua concubina (Lv 18,8). Trata-se de uma tradição familiar bem diferente da defendida pela Igreja hoje. Mas quanto a isso, muitos estudiosos da Bíblia justificam que era parte do contexto da época. Alguns versos depois, porém, há um trecho que fala também da relação sexual de um homem com outro homem (Lv 18,22). Esse e outros textos que fazem menção a relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo (Lv 20,13; Rm 1,26-27), muitas vezes, são tomados como pedras para serem atiradas contra as pessoas LGBTs [lésbicas, gays, bissexuais e transexuais], condenando-as com crueldade. Curioso que, na verdade, existem apenas textos bíblicos que falam das relações sexuais entre homens, porque o “normalizado” nos textos bíblicos é que a mulher nem seja considerada. 

Um desses textos nem se trata de uma relação entre dois homens que se gostam, mas é a descrição da vontade de alguns homens israelitas que querem estuprar outros homens estrangeiros, contrariando o costume da hospitalidade de Israel. Nesse texto, o hospedeiro prefere oferecer a própria filha para ser abusada (Gn 19,1-11).

Como é possível descontextualizar esse texto e associar esse episódio terrível de violência sexual a todas as pessoas e a todas as famílias LGBTs que existem no planeta?

Não vou entrar nas minúcias desses textos. Deixo isso aos biblistas e interessados que já produziram suficiente estudo sobre esses textos e que ainda não foram acolhidos pelas autoridades da Igreja. Na verdade, é muito estranho que com tantos outros textos bíblicos bonitos e inclusivos, e com tantos avanços nos estudos dos textos sagrados, uma boa parte dos cristãos, incluindo autoridades da Igreja, insistam em condenar os seus irmãos LGBTs com base em leituras fundamentalistas. 

Não é de se ver por aí pais e mães cristãs que, “porque a Bíblia diz”, humilhem e apedrejem até a morte seus filhos desobedientes em praça pública. Também não conheço muitos cristãos que deixaram de comer camarão quando descobriram que a Bíblia diz que os crustáceos são seres impuros para a alimentação.  

Sim, a Bíblia é um conjunto de textos sagrados que não condenava a poligamia dos patriarcas, nem a escravização dos estrangeiros. É um texto carregado de preconceitos contra as mulheres e as pessoas LGBTs. Mas isso não significa que você também precise ser assim e nem que essas coisas sejam da vontade de Deus. Ele não vai se zangar com o seu camarãozinho frito na brasa alho e óleo. Está tudo bem. Aprenda a fazer o seu discernimento sobre o que lhe leva a escolher, pois, a vida (Dt 30,19), e não a condenação. A Bíblia não é só sobre crustáceos proibidos, ela é, acima de tudo, portadora da mensagem de amor incondicional de Deus por você e por todos. Acolha isso. 

Fonte: Ignatiana – Internet: clique aqui (Acesso em: 15/01/2025).

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