A alta burocracia no olho da crise [Duas entrevistas super-interessantes!]
Paula Sacchetta e Ivan Marsiglia
Para sociólogo Bernardo Sorj, do Rio de Janeiro, política não é religião secularizada e declarar-se a serviço da população não significa ter o monopólio do bem
BERNARDO SORJ - sociólogo |
Na opinião do sociólogo Bernardo Sorj, o novo castelo de cartas que desmorona no primeiro escalão do governo federal revela que o País ainda está longe de atingir a distinção republicana entre público e privado. E se destaca no rol da corrupção geral das nações por sua ocorrência “de forma quase sistemática”. Professor aposentado da UFRJ e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, no Rio - que atua na consolidação de democracias com justiça social na América Latina -, Sorj acredita que, embora o Brasil moderno e urbanizado tenha aprendido a respeitar a lei num sentido abstrato, ainda não é capaz de praticá-la com inteireza no dia a dia.
“O desprezo pelo público, certamente em escala muito maior nas esferas do poder, está na prática cotidiana de praticamente todo cidadão”, afirma ele na entrevista a seguir. Uma distorção do desenvolvimento nacional que batizou de “individualismo transgressor”.
Segundo o sociólogo, para mudar “toda uma sociabilidade de desrespeito à norma, que começa lá embaixo e termina lá em cima”, decisões como a do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão são positivas. Mas o País terá que apostar na educação de seus cidadãos e se apoiar em reformas políticas e administrativas. “A tragédia brasileira é que o Estado passou a estar a serviço do sistema político, e temos que separá-los totalmente.”
O escândalo revelado pela Operação Porto Seguro é um caso clássico de confusão entre público e privado?
Bernardo Sorj: É um caso extremo, vergonhoso, triste. E a pergunta que deveria ser feita é: como chegamos a esse tipo de situação? Casos de condutas erradas por parte de funcionários públicos existem em qualquer parte do mundo. A diferença é que no Brasil isso ocorre de forma quase sistemática. E mostra que precisamos enfrentar a situação minimizando as possibilidades desse tipo de conduta. É um processo lento, gradual, que começa na vida familiar, passa pela escola e pelo respeito ao outro e ao espaço público, que são premissas básicas da democracia.
A incidência de casos de corrupção no Estado brasileiro aumentou ou diminuiu?
Bernardo Sorj: Se pensarmos em termos de longo prazo, obviamente a corrupção do Estado - e também das empresas em suas relações carnais com ele - aumentou muito. Mas aumentou na medida em que o Estado tem maior capacidade fiscal e porcentagem do PIB - há 50 anos o Estado tinha só 10% do PIB (em 2005, já passava de 36%, segundo o Ipea). Ao mesmo tempo, naquela época a corrupção estava em outro lugar. Era local, o coronel fazia o que queria em sua fazenda e a ilegalidade rondava cada pedaço de terra pelo Brasil. O cenário mudou muito com a urbanização do País. E gerou o que chamo de “individualismo transgressor”.
O que é "individualismo transgressor"?
Bernardo Sorj: Por um lado, nossa sociedade se modernizou. Temos indivíduos mais conscientes de seus direitos, com mais autonomia, mais acesso à informação, que participam de alguma forma da sociedade de consumo e recebem, em maior ou menor grau, benefícios de políticas públicas. Ao mesmo tempo, esse indivíduo moderno brasileiro é transgressor, pois continua mantendo uma cultura política que não respeita a separação entre o público e o privado. Ele não reconhece a universalidade das regras quando essas se aplicam a ele próprio, se utiliza das benesses do poder, do favoritismo e do nepotismo, desconhece nas ações práticas a lei e o próprio espaço público.
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Bernardo Sorj: Exato. Vou dar um exemplo que pode parecer ingênuo. Quando eu dava aula, meus alunos ficavam falando sobre a corrupção no Estado. Aí eu dizia: “Muito bem, mas o que é a corrupção? É a apropriação indevida de recursos públicos. E a maioria de vocês nunca vem à aula. Vocês custam para o Estado R$ 15 mil, 20 mil ao ano, no mínimo. E jogam pela janela. Esse desprezo pelo público, certamente em escala muito maior nas esferas do poder, está na prática cotidiana de praticamente todo cidadão, quando não respeitamos o farol de trânsito, tentamos corromper um policial para não sermos multados, em toda uma sociabilidade de desrespeito à norma, que começa lá embaixo e termina lá em cima.
Mas é nas altas esferas do poder que essa cultura traz piores consequências, não?
Bernardo Sorj: Qual a tragédia brasileira? É que o Estado passou a estar a serviço do sistema político, e temos de separá-los totalmente. Porque é um ciclo que se repete: o que acontece com os partidos de oposição assim que chegam ao poder? Passam a considerar também que o Estado é um bem que lhes pertence e o utilizam em sua ação privada. A tragédia vale para todos os partidos.
É possível mudar essa cultura?
Bernardo Sorj: Não se muda nada por milagre. Cada passo é um passo. A decisão do Supremo Tribunal Federal de punir políticos que têm posições de poder estabelecidas foi um passo importante. Temos que criar um sistema de educação pública que introduza nas crianças valores cívicos. Passa por um sistema econômico em que não mais exista um setor informal que não paga impostos nem responde às leis trabalhistas e do comércio. Passa por separar e fazer o mais transparente possível a relação entre o Estado e as empresas, de forma que todos os anéis de corrupção sejam cortados. E por diminuir drasticamente os cargos de confiança. Todo o sistema do serviço público tem de estar, majoritariamente, nas mãos de funcionários de carreira, não de pessoas que chegam de paraquedas por indicação política.
O PT está completando uma década no poder federal, acompanhado por uma sucessão de escândalos. A que o sr. os atribui? À cultura sindical do corporativismo? A uma certa ortodoxia de esquerda que vê as instituições como moldáveis ao sabor do projeto político?
Bernardo Sorj: A questão não é entre esquerda ou direita. Tivemos direita corrupta no Brasil e, no momento, essa esquerda também mostra sinais amplos de corrupção. Nossa direita era elitista, mandonista, tinha desprezo pelo povo e achava que o Estado lhe pertencia. Já as esquerdas brasileira e latino-americana têm um problema de fundo. É acreditar que alguém, por ser de esquerda em termos de declarações ideológicas, está acima da lei e representa, por definição, o bem. Ou que, sendo de esquerda, representa os interesses do povo e, portanto, pode fazer o que bem lhe parece. O que implica um profundo desprezo pelas instituições democráticas. O PT carrega essa ideologia, de pensar que, pelo simples fato de ser PT e se autodeclarar representante do povo, está acima das instituições da norma democrática, pode fazer o que quiser e o Estado lhe pertence. Parte da nossa esquerda ainda não entendeu que tem que diferenciar governo e Estado. O último é um bem público que pertence aos cidadãos e não a um grupo específico, seja povo ou elite. Não temos uma situação tão grave como na Venezuela, que beira o autoritarismo. Mas o problema ocorre também no Brasil, embora haja setores dentro da esquerda que procuram lutar contra ele.
Quando o presidente do PT, Rui Falcão, afirma que a oposição no País não é feita por DEM ou PSDB, mas pela mídia e o Poder Judiciário, trata-se de um ataque às instituições?
Bernardo Sorj: Alguns porta-vozes do PT têm feito declarações profundamente antidemocráticas. Primeiro tentando estigmatizar a imprensa e os meios de comunicação por fazer oposição ao governo - quando o papel da imprensa é esse mesmo, seja o governo de esquerda ou de direita. Essa dificuldade de aceitar críticas vem da crença de se acharem representantes do povo e, portanto, do bem. É o que eu chamo de religião secularizada. Antigamente tudo o que a Igreja fazia era, por definição, pelo bem e pela salvação da alma. Em nome disso, fez até a Inquisição, torturou e matou. A esquerda se considera a salvação do povo e, em nome disso, está acima da lei, o que é uma profunda incompreensão da democracia. Sobre o Judiciário, acho interessante: o PT poderia ter festejado o fato de que foi um relator negro, de origem pobre, que teve a coragem de enfrentar políticos que inclusive o indicaram. O partido poderia ter transformado a conduta do ministro Barbosa em um elemento de autocelebração. Mas, em lugar disso, demonizam o relator e um Supremo majoritariamente indicado por Lula e Dilma.
E a atuação de Dilma diante dos escândalos, tem sido satisfatória?
Bernardo Sorj: Primeiro, não podemos mistificar o poder da presidente Dilma: ela depende de uma maioria para governar e, num país como o Brasil, onde no Congresso prevalecem interesses pequenos e pessoais dos políticos, é preciso fazer acordos que nem sempre agradam. Apesar disso, embora ainda seja cedo para avaliar seu governo, creio que a presidente tem procurado enfrentar os problemas de corrupção e utilização privada da máquina pública dentro dos limites que lhe dá sua base de poder. O que ela ainda não enfrentou são as reformas necessárias para a gente realmente modificar o quadro estrutural.
Quais seriam essas reformas?
Bernardo Sorj: Uma reforma política, a diminuição radical do número de cargos de confiança e a utilização de técnicos de alta qualidade para dirigir as empresas públicas e agências de regulação. Precisamos separar a máquina de Estado dos interesses políticos. No caso da reforma política, o elemento central é fortalecer o poder dos partidos em contraposição ao poder dos políticos que exercem mandatos. O mandato tem de estar mais associado ao partido, sua bancada e seu programa. Um segundo ponto é que pelo menos parte dos mandatos sejam distritais, de forma que as pessoas possam acompanhar mais de perto a atuação desses políticos. Em terceiro lugar, como já disse, precisamos de mais leis que punam ações ilegais de qualquer funcionário público - e aqui seria preciso também fazer uma mudança nos chamados fundos eleitorais, que hoje são uma caixa-preta em nome da qual praticamente tudo é permitido.
O que se pode fazer em relação ao financiamento eleitoral?
Bernardo Sorj: É preciso mais rigor na punição. Só para dar um exemplo, na Alemanha o ex-chanceler Helmut Kohl, pego num escândalo de uso indevido de fundos eleitorais, teve de renunciar e sair da vida pública. E lembre que Kohl foi possivelmente um dos grandes estadistas alemães do século, dirigiu a reunificação do país. A questão não é entre financiamento público ou privado, mas de transparência no uso dos recursos.
A PF e o Ministério Público são instituições que têm se fortalecido, em sua opinião?
Bernardo Sorj: No caso do MP [Ministério Público], acho vergonhosos os intentos de diminuir seu poder. O MP é um dos grandes avanços da Constituição de 1988 e se alguma coisa tem de ser feita é no sentido de seu fortalecimento. Ele é o único instrumento que a cidadania tem para enfrentar o poder estabelecido, pois a gente não tem, como em outros países, a opção de “ligar para o meu representante no Congresso para que tome providências”. Em relação à Polícia Federal, muitas das últimas operações têm sido exemplares. Mas a verdade é que a PF ainda é muito fraca em termos de recursos humanos e materiais, levando-se em conta a enormidade de suas atribuições, desde a fiscalização de fronteiras até o combate ao crime organizado e à corrupção.
E atores da sociedade civil, como as ONGs, podem suprir deficiências do Estado?
Bernardo Sorj: Uma das avaliações erradas que fizemos em determinado momento foi pensar que as ONGs poderiam substituir parte das funções do sistema político. Elas não conseguem. Por duas razões: a primeira é que o mandato delas é fundamentalmente de denúncia e de disseminação de valores. Elas não entram nas questões estritamente de governo. A segunda razão é que parte dessas ONGs foram cooptadas pelo sistema político. Um tempo atrás, nas eleições anteriores na Câmara Municipal do Rio, um quarto dos políticos eleitos tinha suas próprias ONGs. Ou seja, a ONG muitas vezes é utilizada para desviar recursos públicos ou é cooptada com recursos públicos para defender o governo. O sistema político não pode ser substituído, ele tem que ser melhorado e fortalecido.
O sr. escreveu certa vez que hoje o mundo da política "se bifurca entre um Estado que administra sem utopias, e utopias que se afastam dos problemas de administração do Estado". Podemos sair dessa encruzilhada?
Bernardo Sorj: É uma encruzilhada universal. O fim das grandes utopias revolucionárias teve um elemento positivo: acabou com a ideia de que um grupo representa o bem de uma sociedade e pode impor à maioria a sua vontade. Na medida em que elas acabaram, no entanto, isso também afetou a conduta das pessoas associadas ao sistema político. Se antes havia muitas pessoas generosas, ao menos nas intenções, que entravam na política em nome de ideias, hoje as ideias ocupam um papel cada vez menos relevante. Passou-se a atrair para a política pessoas, no melhor dos casos, ambiciosas - para as quais os ideais de sociedade são menores. Já as que tinham grandes ideais para a sociedade saíram dos partidos políticos para se localizarem em movimentos sociais, ONGs de direitos humanos, ONGs que se dedicam ao meio ambiente, e assim por diante. O resultado é que a maioria das pessoas que tem ideais e procura defender uma visão mais moral da vida política não está no sistema político - visto como um ambiente que perdeu suas motivações mais altas. Aí está a bifurcação: as pessoas que querem mudar sentem que não há lugar para elas no sistema político, no qual predominam a negociação e os interesses. Já na sociedade civil elas podem manter a pureza de suas crenças, mas com influência quase nula na vida política. Essa separação entre uma militância de sociedade civil com ideais, mas sem poder político, e um poder político que está perdendo seus ideais termina se expressando em fenômenos como temos visto no PT hoje.
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Dos males, os maiores
Juliana Sayuri
Os grandes vícios da política acossam instituições, que devem resistir para garantir legitimidade
ALFREDO BOSI |
“Para que sejam consideradas legítimas pela sociedade, é necessário que as instituições se concentrem sempre nos seus valores próprios e resistam corajosamente a esses males: a sedução do dinheiro, o poder burocrático e a endogamia*.” A análise é de Alfredo Bosi**, que ocupa a cadeira nº 12 na Academia Brasileira de Letras desde 2003 e a de professor emérito de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo desde 2009.
Nesta entrevista ao Aliás, Bosi comenta tais enfermidades crônicas que fragilizam as instituições brasileiras, do tablado dos tribunais aos quadros da universidade, passando pelos gabinetes de Brasília. Diante desses “deslizes”, a sociedade brasileira estaria resignada? “Essa atitude permissiva é uma das consequências mais deploráveis da imagem que o homem do povo tem de nossa classe política”, observa o crítico literário.
Para Bosi, a lei deve valer - e se aperfeiçoar ao longo do tempo no combate a toda sorte de fraude. “A Constituição de 1988 é um diploma avançado em termos de democracia e justiça social”, diz o autor de Dialética da Colonização (1996) e Ideologia e Contraideologia (2010), entre outros. “Uma Carta Magna deve durar o bastante para criar raízes no cotidiano e na memória de um povo. Trata-se agora de cumpri-la e levar adiante seus dispositivos que elevam nossa democracia formal representativa ao patamar necessário de uma democracia participativa”, pondera. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O desprestígio dos poderes
“Por um lado exaltadas, por outro desmoralizadas, as instituições muitas vezes são alvo de motivações puramente partidárias e jornalísticas, motivações fáceis de serem detectadas. Mas se a ação dos tribunais fosse, em princípio, reconhecida como um exercício de verdadeira isenção, a Justiça não precisaria ser nem teatralmente endeusada nem tristemente aviltada. Considerada longe desses extremos, a Justiça deve ser simples, mas, rigorosamente, um serviço público respeitado. O que o senso comum do público estranha é a desproporção das penas em relação às culpas: assassinos atrozes soltos após curtos períodos de encarceramento, ao lado de condenados a longos anos de prisão por delitos incruentos. Igualmente a morosidade do sistema judiciário como um todo vem concorrendo para o desprestígio de um poder que, no entanto, deveria receber da opinião pública as mais profundas mostras de respeito. Portanto, há medidas de reforma a serem tomadas em benefício da instituição e da sociedade que tanto dela espera. Nessa linha, para que sejam consideradas legítimas, é necessário que as instituições se concentrem sempre nos seus valores próprios e resistam corajosamente a três dos seus males endêmicos: a sedução do dinheiro, o poder burocrático e a endogamia. São três enfermidades difíceis de curar. Primeiro, resistir à tentação do dinheiro fácil - a ‘argentite’, de que falava o grande físico Oscar Sala, referindo-se a certas tentações da universidade - implica contrariar a lógica perversa do sistema capitalista abrangente e de sua ideologia própria, o fetichismo do ganho cada vez maior. Segundo, resistir à máquina burocrática é contrariar a tendência das instituições a centrar o poder nas mãos de uma hierarquia que sacraliza as suas atribuições e rejeita qualquer projeto de democratização das decisões. Por fim, resistir à endogamia é arejar os quadros das instituições com a entrada periódica de participantes externos, que podem dialetizar as normas internas, impedindo-as de se converterem em dogmas.
Uma alegoria das mazelas
“Um dos maiores mestres da universidade brasileira (ainda vivo, felizmente, e por isso não revelo sua identidade) costumava dizer com límpida franqueza que as escolhas para assistentes do ensino superior eram mais acertadas outrora, quando feitas pelos catedráticos, do que no regime atual dos concursos. Em princípio, a afirmação soa inaceitável do ponto de vista da absoluta e abstrata isenção, que deve presidir à seleção de candidatos ao serviço público. Porém, ela traz à tona uma inquietante verdade de fato, senão de direito. Haverá efetiva imparcialidade na escolha mediante um concurso? O nepotismo, teoricamente evitado pelo concurso, acaso não se reconstitui na hora da formação das bancas julgadoras, verdadeiras igrejinhas - ou panelinhas - que realizam sinuosas ações entre amigos? Mas não é hora de desanimar. A quem quiser conhecer o que era o sistema de votação no Brasil Império, recomendo o conto A Sereníssima República, de Machado de Assis. Uma obra-prima de sátira traduzida no mais leve e sutil humorismo. A moral da história não é, porém, absolutamente pessimista. A narrativa é alegórica. Fala-se de uma república de aranhas que elege os governantes mediante um sorteio de bolas onde estão escritos os nomes dos candidatos. Tudo parecia bem concertado, mas, no momento da apuração, surgiam dúvidas e suspeitas: ora o nome de um candidato aparecia repetido em duas ou três bolas; ora faltava o registro de algum pleiteante; ora, enfim, constatava-se erro na grafia de um provável vitorioso na urna, ou melhor, no saco. Reformas de todo tipo foram propostas, e algumas foram até implementadas. Mas o saco foi refeito um sem-número de vezes, por dez damas que passavam o tempo em tecê-lo, sempre aperfeiçoando-o. As damas são comparadas a Penélope, pois, assim como a esposa de Ulisses, deviam ser castas, pacientes e talentosas. E conclui o narrador do conto: ‘Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino. Não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo’. A alegoria vale para as nossas mazelas, que, de resto, não são apenas nossas. A lei precisa existir, vigorar e aperfeiçoar-se no combate a toda sorte de fraude. E o legislador deve cultivar a paciência esperançosa de Penélope. Um dia, a sabedoria solerte de Ulisses voltará a reinar em Ítaca.
Hipóteses imaginárias
“Revisitando principais intérpretes do Brasil - Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, entre outros -, que podemos dizer sobre a sociedade brasileira contemporânea?, você questiona. Começo propondo uma distinção. Primeiro, Caio Prado Júnior se atém preferencialmente às raízes econômicas da história social brasileira. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda exploram tendências psicológicas e culturais que teriam marcado nosso estilo de sentir, pensar e agir. Não sei o que diriam da situação política atual com sua rede de suspeitas e acusações no plano da ética pública. É provável que Caio Prado falasse da corrupção como um fenômeno inerente a um regime em que o governo teria os mesmos vícios da burguesia afluente em qualquer Estado capitalista - e não só nos chamados Estados periféricos. Talvez Gilberto Freyre não mostrasse a mesma repulsa e indignação, pois conhecia a fundo a corrupção eleitoral e administrativa dos trustes ianques dos anos 20 do século passado. Sérgio Buarque talvez aplicasse sua visão das elites brasileiras, privatistas e individualistas, mostrando como se comportam quando confundem o lugar público com sua casa e seu quintal. Mas tudo são hipóteses imaginárias... Tampouco tenho condições de dizer o que os mesmos pensadores do Brasil diriam sobre a emergência da classe C, a partir do segundo mandato do ex-presidente Lula. Mas sendo todos democráticos, cada um a sua maneira veria com bons olhos uma política social justa e progressista, mas necessariamente imperfeita, como são todas as coisas deste mundo.
Entre a cordialidade e a conivência
“Essa atitude permissiva, pela qual tudo se aceita porque todos fazem o mesmo, é uma das consequências mais deploráveis da imagem que o homem do povo tem de nossa classe política. Infelizmente, evidências de práticas corruptas multiplicam-se a olhos vistos por todo o País. Sei de um prefeito da Grande São Paulo que comprou literalmente todos os vereadores oferecendo um apartamento novinho em folha a cada um deles. O caso não chegou ao Supremo, como milhares de outros. O conluio dos prefeitos com as empreiteiras é notório e está envenenando as cidades do interior, atulhando-as de condomínios e prédios comerciais sem o menor respeito ao ambiente e à qualidade de vida dos moradores. O caos no trânsito das rodovias periféricas é efeito imediato dessa política que se honra com o nome elástico de ‘crescimento’. No plano nacional, há lobbies sinistros forçando o governo a construir usinas nucleares caríssimas, perigosas e desnecessárias. Nunca fui entusiasta da tese da cordialidade brasileira, embora essa tese possa parecer adequada na compreensão de algumas situações interpessoais. De todo modo, supondo que seja verdadeira, não creio que a permissividade em face da corrupção se deva atribuir a uma suposta afabilidade do povo brasileiro. Uma cordialidade assim tão flácida, e que engoliria todos os sapos, acabaria sinônimo de simples conivência.”
* Estado do endógamo = que ou aquele que só se casa com membros de sua própria classe ou tribo, com a finalidade de conservar sua nobreza ou sua raça.
Fonte: O Estado de S. Paulo - Supl. ALIÁS - Domingo, 9 de dezembro de 2012 - Pgs. J4 e J5 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-alta-burocracia-no-olho-da-crise,971031,0.htm e http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,dos-males-os-maiores,971025,0.htm
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