Ensino às avessas!
O alvo da educação: rentabilidade e punição
Carolina Catini
Professora associada da Faculdade de Educação da Unicamp e
coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas “Educação e Crítica Social” (Gepecs) Só no Brasil, mesmo: militares ocupados com a "educação" de nossos adolescentes e jovens!
O
nosso ensino está pensando, de verdade, em nossa atual juventude? O que se
pretende, de fato?
No mundo do avesso da educação nacional, corporações militares e empresariais são educadoras e formuladoras das políticas educacionais e de juventude, em nome da democracia e do combate às desigualdades sociais. Embora os ofícios que exerçam e a posição social que ocupem sejam a pura e simples negação de tais atributos, seu poder se amplia e se espraia por toda a gama de ação social que comandam, enquanto quem possui experiência e formação na educação tem o alcance de suas práticas reduzido a pequenos espaços, quando conseguem realizar uma experiência formativa que se contrapõe à lógica dominante, criando fissuras no aparente consenso hegemônico.
Quando está tudo invertido, é preciso revirar tudo do avesso, fazendo falar os efeitos da prática educativa e da ideologia que a sustenta. Quem preside os processos educativos se coloca como garantidor do direito à educação, mas o faz convertendo-o em tecnologia de gestão da juventude, associando as bandeiras da educação integral e do acesso ao trabalho à rentabilidade e à punição.
Educação pelo
confinamento
Um dos pontos em que se cruzam as
práticas militarizadas e a modernização empresarial da educação é o da criminalização
da pobreza. A educação integral, outrora
pauta de reivindicação da esquerda, tornou-se presa do empresariado e
converteu-se em mais uma forma de dominação. A imagem de escolas
periféricas sucateadas, gradeadas e com rondas da PM combina mais com presídio
do que com ensino, ainda mais com a reforma do
ensino médio e toda a privação de formação cultural e intelectual que
ela impõe.
A educação integral é também confinamento da juventude pobre e
periférica.
Além disso, numa terra em que,
para sobreviver, é preciso trabalhar desde cedo, a educação integral tende a
ampliar a evasão escolar. Para falar com base em “evidências”, segundo
dados reunidos a mando das próprias corporações empresariais, as taxas de
evasão do ensino médio bateram recorde em 2013, quando quase 7% dos estudantes
de primeiro ano abandonaram a escola. Em 2020, com a adoção das aulas a
distância, no contexto da pandemia de Covid-19, as taxas de evasão recuaram,
mas voltaram a crescer de maneira alarmante em 2021 e em 2022, já nos marcos do
Novo Ensino Médio e da ampliação da rede de ensino integral (Barros et al., 2023).
Essa tendência deveria assombrar
os ideólogos do domínio empresarial da educação, que correlacionam inversamente
escolaridade e criminalidade, e calculam ganhos e perdas monetárias com base no
aumento ou na diminuição da escolarização.
Um desses recentes estudos concluiu que o aumento de 1% de jovens
com escolaridade completa diminuiria em 0,6% a taxa de homicídios (Barros et
al., 2021).
Que se privilegie relacionar a
educação com a diminuição da criminalidade juvenil e nenhuma palavra seja dita
sobre violência estatal e a letalidade policial nos territórios em que a
juventude pobre, negra e em idade escolar habita apenas demonstra o lado em que
estão os economistas da educação. Ao que tudo indica, para eles a educação
se equilibra entre os negócios e os casos de polícia.O tédio e a chatice dominam o cotidiano dos alunos, especialmente no Ensino Médio
Educação pela
violência
As recentes chacinas nos estados de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, sob responsabilidades de gestões petistas ou bolsonaristas, se inscrevem numa cadeia de massacres perpetrados pelo Estado. Longe de se apresentarem como desvios da ação policial para o combate ao crime, são métodos sistemáticos de gestão da pobreza pela violência, que atingem comunidades de maneira fatídica e afetam a sociedade de modo geral. As chacinas também educam.
Em 2022, só o estado da Bahia teve mais mortos por policiais do que os Estados Unidos (Carta Capital, 2023). Eram quase todos negros. Seria relevante estudar as relações desse dado com o fato de que o mesmo estado já havia militarizado escolas antes mesmo do Programa de Escola Cívicos-Militares de Bolsonaro (Pereira, 2020). Com base na formação de policiais, nessas escolas a lógica disciplinar é acompanhada de rituais de humilhação cotidiana, que se reverte em ódio e ausência de parâmetros para a violência.
O problema, porém, não se limita
às escolas cívicos-militares. Desde o início dos anos 1990, os programas
educacionais desenvolvidos pela PM no interior das escolas, e executados por
policiais fardados e armados, espalharam-se pelo país.
É o caso de questionar o que se espera ao delegar a uma das
corporações militares mais genocidas do mundo a educação de crianças e jovens.
Educação pelo trabalho
Para conter o abandono escolar, o empresariado promete elevar a “audiência” das escolas, tornando-as mais atrativas, com exercícios práticos, articulados com a seleção para o trabalho em empresas ou programas de transferência de renda destinados a públicos-alvo da juventude. Não por acaso, a oferta de recursos para estudantes mais vulneráveis ocorre no contexto de grande controle empresarial da educação, inclusive transformando o empreendedorismo em matéria escolar, o que altera a relação educativa de maneira ampla e profunda. Fazer brigadeiro gourmet se tornou prática no Novo Ensino Médio, assim como fazer bolos, sabão, tijolos, artesanatos ou plantar hortaliças, porque tais atividades práticas transformam as escolas em lugares de trabalho. Em muitos casos se comercializa o que é produzido, e, mesmo quando se trata de simulação do trabalho, como no caso da criação de empresas fictícias nas escolas, a questão não é apenas educar para o trabalho.
Educação pelo trabalho na educação estatal já era lema da Tecnologia Empresarial Odebrecht, escrita nos anos 1980, que depois se transformou em Tecnologia Socioeducativa. Estava em jogo aí a substituição do welfare[1] pelo workfare, que consiste em atrelar o acesso a serviços sociais com transferência de renda e contrapartidas à “ativação” para o trabalho, o que na educação se traduziu pelo “protagonismo juvenil”. Nos anos 2000, essa concepção ganhou corpo nas escolas de tempo integral de Pernambuco e do Ceará, sob a batuta do Instituto de Corresponsabilidade Empresarial (ICE), e nas práticas de educação não formal do Itaú Social, em periferias de grandes cidades.
Hoje, um de seus principais difusores é o Itaú Educação e Trabalho, que fala em nome de uma “educação para a emancipação” e da “união entre educação e trabalho produtivo”. Entre inúmeras iniciativas, fomenta a articulação entre escola e empresa, como a oferta de vagas de “jovens aprendizes” no próprio banco Itaú, para estudantes que estão em escolas de tempo regular, ou programas que colocam estudantes de tempo integral para trabalhar em empresas durante o período letivo, com bolsa paga pelo estado, como é o caso do Primeira Chance, realizado na Paraíba.
Por meio dessas medidas, as
empresas vão transformando a escola de ensino médio em lugar de seleção.
Assim, a juventude que não é atingida pela letalidade policial é acolhida pelos
direitos antissociais empresariais, que lhe abrem a oportunidade de ser
confinada, de trabalhar em troca da educação que recebe, ou, em alguns casos,
concedem-lhe a dádiva de ser selecionada para ser explorada. O que as empresas estão buscando no mundo da educação? É muito interesse! Dá, até, para se desconfiar, não é mesmo?!
Educação como ativo
financeiro
As vantagens empresariais em privatizar o direito à educação também se referem ao fim do monopólio da escola na oferta da educação. Neste ano de 2023, o IFood celebra os 14 mil diplomas de ensino médio dados a jovens e adultos entregadores. Um curso de curta duração preparatório para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) realizado por empresas privadas substitui o ensino médio dos Programas de Educação de Jovens e Adultos estatais. Ofertado de modo gratuito e a distância pela plataforma de parceria entre a IFood Decola e a Edtech Descomplica, o Programa Meu Diploma do Ensino Médio não esconde a que veio: visa ofertar um objeto, e não um processo educativo.
Não é só o controle sobre a
população trabalhadora e a apropriação de trabalho sub-remunerado, gratuito ou
de recursos estatais que movem essas empresas. Como diz uma postagem do Senac
(2023), “acolher jovens aprendizes vai muito além de um cumprimento da
legislação, é questão de responsabilidade social das empresas se atentar ao S
da sigla em inglês ESG (Environmental, Social and Governance)[2], sobre a qual tanto se fala hoje. Pois é
pelo Social que se estabelecem ações de combate à pobreza”. A adoção desses
parâmetros, que se difundiram nos mercados financeiros e nas corporações
empresariais que estão colonizando a educação, revela que a financeirização
não é mais somente o contexto econômico no qual se insere a educação, mas
também passa a organizá-la. Com ou sem a mediação da escola, a prática
permite que empresas cumpram regras do mercado financeiro e atraiam
investimentos, garantindo “os objetivos de desenvolvimento sustentável”.
Estes estão intimamente ligados à rentabilidade da empresa que cumpre seu
“papel social”. Todas as iniciativas atuais dizem estar interessadas neste tripé: preservação do meio ambiente, preocupação social e governabilidade... Será???
Ideias educacionais
fora do lugar
Quando a educação se fecha aos condicionantes de seu tempo, ela é
presa da situação existente, não podendo projetar nada para fora das
determinações sociais.
Se circunscreve o horizonte de vida ao trabalho, limitando as expectativas de existência pela interdição do acesso a referências da cultura e da história, ela amplia a reverência ao capital e afunda em suas contradições. Além de transformarem toda ação da juventude em trabalho, que é o que a empresa sabe gerenciar, essas grandes corporações educam jovens como se não passassem de um “capital humano”, ensinando desde cedo que é preciso angariar investimentos para seu empreendedorismo ou mesmo atuar como investidores, pela ênfase nos programas de educação financeira.
Um bom exemplo é o estado do Paraná, que produziu material escolar para
combater a mentalidade pobre, que “culpa os outros e o governo” por sua
condição e “trabalha pelo dinheiro”, e fomentar a mentalidade rica, uma
vez que quem pensa assim, mesmo sem ter recursos, “assume os próprios erros”,
“fala de patrimônio e negócios” e “faz o dinheiro trabalhar” (APP
Sindicato, 2023).
A formação pelo trabalho é conjugada com o individualismo, com o
culto aos patrimônios e aos negócios e com o endeusamento do dinheiro.
Nesse contexto, não é possível se surpreender com o fato de estudantes do ensino médio paulista terem anunciado em suas aulas de projeto de vida o desejo de se tornarem agiotas. E isso antes mesmo da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo decretar a substituição da variedade de disciplinas eletivas do ensino médio pela disciplina de Educação Financeira, em agosto deste ano. Em condições de vida precárias, como as que dominam nas periferias de todo o país, as raízes violentas da ideologia do empreendedorismo e da concorrência desenfreada ficam expostas e são facilmente traduzidas numa guerra pela sobrevivência, em sentido literal. Aqui, o tiro do empresariado tem tudo para sair pela culatra…
Notas:
[1] O Estado de
bem-estar social (welfare), ou estado-providência, ou estado social, é
um tipo de organização política, econômica e sociocultural que coloca o Estado
como agente da promoção social e organizador da economia.
[2] Environmental, Social and Governance (ESG): Inicialmente é uma sigla, em inglês, que significa environmental, social and governance, e corresponde às práticas ambientais, sociais e de governança de uma organização. O termo foi cunhado em 2004 em uma publicação do Pacto Global em parceria com o Banco Mundial, chamada Who Cares Wins [tradução livre: quem se importa vence]. Os critérios ESG estão totalmente relacionados aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos pelo Pacto Global, iniciativa mundial que envolve a ONU e várias entidades internacionais.
Referências
bibliográficas:
APP SINDICATO. Críticas da APP viralizam e Seed retira material de
apoio para aulas de Educação Financeira (clique aqui: https://appsindicato.org.br/criticas-da-app-viralizam-e-seed-retira-material-de-apoio-para-aulas-de-educacao-financeira/).
Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, 2023.
BARROS, R. P. et al. Consequências da violação do direito à
educação. Rio de Janeiro: Autografia, 2021.
BARROS, R. P. et.al. Diagnóstico da evasão escolar Brasil (clique
aqui: https://arquivos.insper.edu.br/2023/CEEI/publicacoes/Completo-Cursos-Bolsas-Caderno-Miolo-2023-07-10.pdf).
Insper, jul. 2023.
CARTA CAPITAL. Polícia da Bahia matou 1.464 pessoas em operações em
2022 (clique aqui: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/policia-da-bahia-matou-1-464-pessoas-em-operacoes-em-2022/).
Carta Capital, 14 ago. 2023.
PEREIRA, Roger. Fora do programa federal, estado governado pelo PT
chega a 100 escolas militarizadas (clique aqui: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/bahia-governado-pelo-pt-100-escolas-militarizadas/).
Gazeta do Povo, 8 jan. 2020.
SENAC. Aprendizagem profissional: um caminho para jovens trilharem carreiras sustentáveis (clique aqui: https://estudio.folha.uol.com.br/senac/2023/07/aprendizagem-profissional-um-caminho-para-jovens-trilharem-carreiras-sustentaveis.shtml). Estúdio Folha, 23 jul. 2023.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Setembro de 2023 – Ano 16 – Edição Nº 194 – Páginas 4 a 5 – Publicado em 1 de setembro de 2023 – Internet: clique aqui – Acesso em: 10/09/2023.
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