Forças Armadas comprometidas!

 A impunidade dos generais golpistas

 Silvio Caccia Bava

Diretor do “Le Monde Diplomatique Brasil” – Jornalista 

Jair Bolsonaro foi a ponta de lança para o retorno das Forças Armadas ao poder

A politização das Forças Armadas promovida pelo governo Bolsonaro apenas reforçou a postura de extrema direita que já era dominante

A cúpula das Forças Armadas (FFAA) se movimenta para impedir a prisão dos generais golpistas e a maior degradação de sua imagem institucional, cada vez mais associada à tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro, à corrupção e à defesa dos privilégios do oficialato. 

Um dos mais recentes movimentos dos comandantes das três forças – Exército, Marinha e Aeronáutica – foi pedir uma reunião extraordinária com o presidente Lula, ocorrida num fim de semana (19 de agosto), intermediada pelo ministro da Defesa, José Mucio. Qual é a urgência para reafirmar ao presidente sua fidelidade à democracia, sua disposição de punir os infratores? Especula-se que o motivo central tenha sido apresentar o pedido de que os generais incriminados não sejam levados à prisão. Evidentemente, essa agenda não foi a oficial do encontro. 

O Inquérito Policial Militar (IPM) criado para averiguar o envolvimento de militares na invasão da sede do governo não encontrou crimes militares na conduta dos agentes públicos, isentando de responsabilidade os generais e demais membros do oficialato pela tentativa de golpe. Conduzido pelo coronel Robert Julian da Silva Graça, chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Planalto, o IPM já tinha seus resultados definidos antes mesmo das averiguações. 

Ocorre que os fatos contradizem essas conclusões. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que reúne Câmara dos Deputados e Senado e apura os acontecimentos de 8 de janeiro, parece ir por outro caminho, baseando-se em vídeos e depoimentos que incriminam vários generais e outros oficiais da ativa e da reserva, e levando à frente suas investigações.  

A iniciativa dos comandantes também leva em conta a deterioração da imagem das Forças Armadas perante o público. Pesquisa Genial/Quaest, de agosto de 2023, identifica uma queda expressiva na avaliação das FFAA por parte dos brasileiros. Em dezembro de 2022, 43% diziam “confiar muito” nas FFAA; esse percentual caiu para 33% em agosto deste ano, ou seja, 10 pontos percentuais. E os percentuais dos que “não confiam” passou de 18% para 23%

É preciso evitar o que aconteceu com a CPI da Pandemia, criada no Senado, cujo relatório final, encaminhado à Procuradoria-Geral da República (PGR), propunha vários indiciamentos, atribuindo crimes ao presidente, ao general Pazuello e a outras autoridades com foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal. A PGR não tomou nenhuma atitude para indiciar quem quer que seja. 

A razão dessa postura dos três comandantes é a forte presença do bolsonarismo nas FFAA, somada à defesa corporativa de seus pares e da imagem das FFAA. Ao que tudo indica, e os dados da CPMI vão corroborando, a tentativa de golpe de Estado era articulada por um núcleo de generais e tenentes-coronéis que não aceitam a vitória eleitoral de Lula, tido como um comunista a ser combatido por todos os meios.    

LULA passando em revista à tropa de fuzileiros navais, o qual, em sua maioria, os militares, jamais lhe foram simpáticos ou acolhedores

Núcleo golpista nas Forças Armadas

As investigações apontam a existência de um grupo de 26 militares de alta patente (23 generais) que participam de um grupo de extrema direita no Twitter, inseridos numa rede de políticos bolsonaristas e influenciadores olavistas, que ainda contam com a participação de 668 políticos, entre governadores, ex-ministros, senadores e deputados.[1]  

O fato de, apenas em abril, oitenta militares, entre eles um general, terem sido chamados pela CPMI para prestar depoimento à Polícia Federal sobre os atos golpistas alertou o alto comando para suas possíveis consequências. 

A politização das FFAA promovida pelo governo Bolsonaro apenas reforçou a postura de extrema direita que já era dominante. É preciso um pouco de história para encontrar as razões pelas quais as FFAA assumem uma postura ideológica de extrema direita e combatem toda forma de dissidência ou discordância.  

Ficou evidente o apoio tácito de muitos militares (Polícia Militar do Distrito Federal, Exército, Polícia Rodoviária Federal e outros) a uma tentativa de golpe contra as eleições de 2022

A “limpeza” feita pelo Golpe Cívico-Militar de 1964

A ditadura militar implantada com o golpe de 1964 puniu ou afastou, de 1964 a 1970:

* 53 oficiais generais,

* 274 oficiais superiores,

* 111 oficiais intermediários,

* 113 oficiais subalternos,

* 936 suboficiais, sargentos, cabos e soldados.

Todos acusados de comunistas, de esquerda,[2] de defensores de uma política nacionalista de desenvolvimento e de soberania para o Brasil. 

Os verdadeiros motivos do golpe de 1964 e a ditadura não foram evitar que o país passasse por um processo de comunização e corrupção.

Foram para viabilizar um modelo de desenvolvimento capitalista de caráter conservador, socialmente excludente e dependente do capital internacional.[3]

Para isso, promoveu-se uma “limpeza” nas FFAA, buscando eliminar todo possível foco de contestação a essa estratégia entreguista. A partir daí, afirmou-se a doutrina do pensamento único. Toda divergência passou a ser tratada como sabotagem, como subversão, e deve ser combatida. É a negação da democracia. 

As consequências dessa “limpeza” se fazem sentir até hoje. A doutrina de defesa do neoliberalismo e combate às ameaças comunistas, que precisam ser erradicadas, orienta a formação dos oficiais nas escolas de formação, a identificação dos “inimigos internos” e as formas de combatê-los. É essa doutrina que dá suporte à maior intervenção das Forças Armadas na política. É essa doutrina a abraçada pelo governo Bolsonaro. 

O Brasil gastou R$ 94 bilhões para pagar pensões a herdeiros de militares nos últimos quatro anos, considerando todas as patentes. Teria sido suficiente para bancar o Bolsa Família a mais quase 3 milhões de famílias pelo mesmo período.

Privilégios da Cúpula das Forças Armadas

Além disso, a permanência do poder nas mãos dos militares por tantos anos lhes assegurou impunidades e privilégios, como as aposentadorias e pensões. As filhas de oficiais, com a morte destes, passam a se beneficiar de uma pensão vitalícia, não importa se estejam casadas ou não. Há casos em que essas pensões ultrapassam R$ 100 mil.

As distorções em favor do oficialato são tais que o custo dos generais da ativa e aposentados são iguais aos dos 90 mil soldados e cabos do Exército brasileiro.[4]

As punições dos oficiais que cometeram crimes contra a democracia e contra a Constituição, que estiveram envolvidos na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro, são essenciais para garantir que não haja novas tentativas de golpe. Da mesma forma é preciso alterar drasticamente os cursos de formação para oficiais, valorizando a pluralidade e a diferença, colocando como eixo a defesa da democracia e dos direitos humanos, como prega a Constituição.   

Notas:

[1] Dados do Laboratório Data_PS, da UFRJ e da UFF.

[2] Projeto Brasil Nunca Mais, que cita “Atos da Revolução de 1964, vol. I, de 9 de abril de 1964 a 15 de março de 1967”, coletânea preparada pelo Ministério da Aeronáutica.

[3] Cláudio Bezerra de Vasconcelos, “Cassação de militares: a ameaça vem de dentro”. Disponível em: http://querepublicaeessa.an.gov.br/temas/208-cassacao-de-militares-a-ameaca-vem-de-dentro.html.

[4] Brasil de Fato, 23 maio 2023. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil - Editorial – Setembro de 2023 – Ano 16 – Edição Nº 194 – Página 3 – Publicado em 1 de setembro de 2023 – Internet: clique aqui – Acesso em: 10/09/2023.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A necessidade de dessacerdotalizar a Igreja Católica

Vocações na Igreja hoje

Eleva-se uma voz profética