É absurdo, mas real!

 O vírus da teocracia no Brasil atual

 Leonardo Lucian Dall’Osto

Presbítero católico da Diocese de Caxias do Sul (RS), doutorando em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma 

Baixo relevo no monumento La Barre em Abbeville, mostrando a tortura crudelíssima sofrida por François-Jean Lefebvre de La Barre, em 1766

O passado já provou que quando a religião governa, o sofrimento é garantido

            O ano é 1766. Na católica França, após a profanação de um crucifixo, uma histeria coletiva toma conta da cidade de Abbeville. Por intrigas e de forma caluniosa, um jovem Chevalier (Cavaleiro), portanto pertencente a nobreza local, chamado François-Jean Lefebvre de La Barre, foi acusado de cantar músicas blasfemas e de não ter tirado o chapéu diante de uma procissão pública. O juiz local o condenou a ter a língua perfurada, a mão direita cortada e a ser morto. O famoso filósofo e crítico eclesiástico, Voltaire interviu, tentando mostrar a monstruosidade e a inaplicabilidade de uma pena assim desproporcional ao Chevalier. Não obteve sucesso. O jovem teve sua pena comutada: não lhe foram perfuradas a língua nem teve a mão cortada, no entanto teve as pernas quebradas e após ser decapitado, teve seu corpo queimado juntamente com uma cópia do Dicionário Filosófico de Voltaire. Ele tinha 19 anos de idade. 

François-Marie Arouet - mais conhecido pelo pseudônimo VOLTAIRE (1694-1778): escritor, historiador, filósofo iluminista francês 

          Esse é um fato, ocorrido há 258 anos trás. Muito tempo? Será? O pêndulo da história está mostrando que o fanatismo religioso está em pleno vigor no século XXI e não apenas nos países islâmicos, como geralmente se veicula. Durante séculos o ocidente viveu sob a égide do fanatismo religioso, que regrediu, mas que nunca foi debelado totalmente. A religião perdeu os espaços de poder, isso trouxe oxigênio para as mentes dos teólogos e das lideranças religiosas, dando ao Estado a liberdade de afastar-se das armadilhas religiosas para assumir o cuidado da sociedade na sua totalidade. Houve muitos avanços nesse sentido. 

          O retrocesso, no entanto, se sente, se faz audível. O atual parlamento, lotado de fundamentalistas religiosos católicos e evangélicos é um reflexo de parte considerável da sociedade brasileira. Gente de parca formação, baixíssima capacidade cognitiva e de rompantes religiosos, se empossou do parlamento, tentando impor pautas religiosas a uma sociedade plural. E eles têm conseguido. Se não há mais retrocessos é porquê a magistratura atual, muito melhor formada e mais pautada pela laicidade do Estado e pelas linhas da Constituição de 1988, têm impedido retrocessos maiores. Porém, até quando? Logo mais esses grupos fundamentalistas estarão também nos espaços jurídicos, aliás, já estão entrando e com projetos reacionários. 

          O vírus da teocracia sobrevive na atual e frágil democracia ocidental. Quando parece que o ser humano não consegue mais pôr ordem na casa, volta-se a chamar a religião para colocar “cosmos no caos”, impondo à sociedade como tal pautas que pertencem a uma parte desta. Alguns dizem, frequentemente, que a sociedade é religiosa, apesar de o Estado ser laico. Verdade. Porém, o Estado deve governar, legislar e julgar para todos os cidadãos, não importando-se com os vínculos religiosos da maioria ou da minoria. O Estado laico deve pensar políticas públicas para o cristão e para o ateu de forma igual, sem dar mais peso a um que a outro. Somente um Estado fortemente laico pode defender o direito dos religiosos de viverem sua fé e dos ateus de viverem sua descrença. Urge sustentar a laicidade do Estado! 

          O passado já provou que quando a religião governa, o sofrimento é garantido. A teocracia é uma patologia da organização social, faz com que o Estado assuma a agenda religiosa como sua, imponha essa agenda, e ainda justifica a perseguição e o mal da forma mais perversa possível: é a vontade de Deus! Aliás, nas cruzadas, entre os séculos XI e XIII, a expressão Deus vult (Deus o quer) era usada para justificar a morte dos “infiéis” muçulmanos. O filósofo Blaise Pascal advertiu que...

«... os homens nunca fazem o mal de modo tão completo e animado como quando fazem a partir de convicção religiosa».

          E a razão é simples: se uma “pauta” está explícita na vontade de Deus, ela é norma também política para toda a sociedade.

          Que risco se corre no Brasil do século XXI se o fundamentalismo não receber um freio por parte do Estado? É algo para ser refletido com seriedade. O fanatismo religioso é perigoso, ele se organiza, se estrutura, cresce e domina. Fanatismo religioso é um problema de saúde pública, não dá mais para negar isso. Se a parcela da sociedade mais progressista e plural e o Estado não estiverem atentos, em breve poderemos ter que discutir não apenas retrocessos, mas também imposições causadas pela religião que se faz política. 

Fonte: Facebook – Quinta-feira, 20 de junho de 2024 – Internet: clique aqui (Acesso em: 24/06/2024).

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