Como dialogar com os evangélicos
Governo precisa de “bilíngues” para falar com evangélicos
Cézar Feitoza & Marianna Holanda
Jornalistas
Entrevista com:
Paul Freston
Sociólogo especializado em religião e política. Inglês naturalizado brasileiro. Professor colaborador do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de Religião e Política em Contexto Global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. É autor de vários livros, como “Cristianismo Antigo para Tempos Novos” (Ultimato Editora, 2024).
PAUL FRESTON |
Para Paul Freston, “abraço
íntimo” do segmento com populismo representa um perigo para as próprias igrejas
Sociólogo especialista em religião e política, Paul Freston afirma que os evangélicos dificilmente vão se aproximar do governo Lula (PT) a partir de políticas públicas ou da melhora na economia.
Para ele, a chave para a aproximação com o segmento é o discurso. "O que precisa, acima de tudo, é de gente bilíngue", disse ele à Folha de S. Paulo.
Segundo ele, a esquerda tem preconceito e uma visão massificante sobre os evangélicos, o que precisaria ser abandonado. "Se você não aprender a falar a língua, não vai conseguir mudar as mentalidades."
Inglês naturalizado brasileiro, Freston leciona na pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos (SP), além de ser catedrático de religião e política em contexto global em instituições do Canadá.
O acadêmico também avalia o cenário atual da relação de políticos com as igrejas: diz ser perigoso para as próprias igrejas o que classificou como "abraço íntimo" com o populismo. Sobre o aborto, tema de grande repercussão recente, Freston defende que não houve debate sério nas igrejas e que a pauta virou arma para um lado atacar outro.
O senhor pesquisa a relação entre religião e política há mais de três décadas. Como
os temas se relacionam no Brasil dos últimos anos?
Paul Freston: O quadro religioso mudou
radicalmente e talvez a gente não tenha se dado conta. Geralmente, quando há
uma mudança religiosa rápida no país, ou é por que o Estado agiu para mudar, ou
é por causa de imigração maciça de pessoas de outra região.
No caso do Brasil, houve uma mudança rápida,
em poucas décadas, que não é fruto da ação do Estado nem de imigração,
mas de um processo de conversão que vem basicamente das bases da sociedade,
sobretudo nos segmentos sociais menos favorecidos. E isso transformou o país
radicalmente.
O pentecostalismo se tornou um ator religioso enorme em pouquíssimo tempo, e também um ator político. A gente tem de ver como as duas coisas se imbricam.
O
que torna os pentecostais tão fortes?
Paul Freston: São fortes numericamente,
para começar. Na redemocratização, os pentecostais vinham crescendo e começaram
a perceber que tinham possibilidade de converter esse crescimento numérico em
presença política, sem que necessitasse de intermediários.
Mas claro que a gente tem de ver a questão do
perfil social. Quando você olha o mapa do crescimento pentecostal no Brasil, vê
claramente onde estão as manchas escuras [de maior presença]: nas fronteiras
agrícolas e nas periferias de grandes cidades.
Embora os pentecostais, hoje, abranjam camadas mais diversificadas, ainda assim são, na maioria, pobres, não brancos e femininos. O que é interessante. Porque todo olhar desfavorável ao pentecostalismo que existe por aí não leva isso muito em conta.
O
último Datafolha mostrou aumento sutil na rejeição dos evangélicos a Lula. Acha
possível o governo se aproximar desse segmento?
Paul Freston: Este é um segmento extremamente dividido, mas há uma visão massificante, uniformizante. E assim não tem nenhuma chance de se aproximar.
O
governo tem uma visão massificante?
Paul Freston: Eu acho que setores da
esquerda tradicionalmente têm, sem dúvida, ojeriza. O preconceito existe. A
dificuldade para diferenciar as bolas. É tudo bola de sinuca, mas não vê que
algumas são vermelhas, outras são azuis. E essas diferenças são teológicas,
organizacionais, sociais.
Essa dificuldade de se relacionar com os
evangélicos é um problema crônico para a esquerda. O que precisa, acima de
tudo, é de gente bilíngue.
Eu sei que há preocupações e iniciativas. O
problema agora é que se está correndo muito atrás quando o trem já partiu. Nos
anos 2010, você teve aquele sentimento de ameaça diante da aceitação social de
outras minorias na sociedade, a crescente pluralização da sociedade. Isso foi
criando um sentimento de ameaça [para os evangélicos].
Mas também você teve um sentimento de oportunidade. “Nós já somos 30% da população. Continuamos crescendo. Então nós temos a possibilidade de fazer mais do que a gente vem fazendo.”
E
então surge o bolsonarismo...
Paul Freston: [O ex-presidente Jair]
Bolsonaro aparece como o grande beneficiário dessa conjuntura. Qual foi a
base inicial do movimento dele? Em maioria rico, branco e masculino —todas
as pesquisas mostravam isso. Veja bem, o perfil evangélico e principalmente
o perfil pentecostal é o extremo oposto disso.
Mas ele percebeu que, para virar um movimento
de massas, tinha que ter um pé fincado no meio evangélico. E, veja bem, ele não
se converte nem se declara evangélico.
Como tem o vínculo da Michelle [Bolsonaro, que é evangélica], proximidade com gente como [o pastor Silas] Malafaia, o batismo [de Bolsonaro] no rio Jordão... Tudo isso permitiu esse trânsito. E ele consegue lucrar com as vantagens eleitorais da proximidade evangélica sem as desvantagens eleitorais disso.
Jair e Michelle Bolsonaro em culto evangélico |
O
ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, participou recentemente de
atividade na igreja do pastor Ed René Kivitz, conhecido pela sua posição mais
progressista. A esquerda está pregando para convertidos?
Paul Freston: Pelo que eu sei, existe um
debate dentro da esquerda interessada em se aproximar mais dos evangélicos a
respeito da melhor estratégia. Se é melhor cultivar as relações com quem já
concorda contigo ou ir atrás de outras lideranças.
Você tem uma certa fração que é bolsonarista até debaixo d’água, e não vai adiantar nada. O que resta? A faixa do meio. Nas últimas eleições, Lula conseguiu algo em torno de 25% a 30% de votos dos evangélicos. Se conseguisse aumentar para 35% ou 40%, já seria um tremendo sucesso.
Parte
do governo crê que os evangélicos naturalmente vão voltar a apoiar se a
política econômica der certo. O que acha disso?
Paul Freston: Uma frase que eu ouvi de
alguém que atuou em governos anteriores do PT sobre os evangélicos é que “seus
irmãos têm goela larga”. A percepção de que você se reúne com esse pessoal e
eles vão pedir mundos e fundos. Ou você dá e cria outros problemas, ou você não
dá e eles vão alegar perseguição religiosa porque não deu.
Então, uma das estratégias é focar em bases, no pessoal que tem certa projeção, influência. E cultivar.
A
aproximação tem de ser pelo discurso?
Paul Freston: Eu creio que sim. Tem o que
se chama de ad hominem, em latim. O argumento ad hominem é quando
você leva em conta onde a outra pessoa está. O posicionamento dela, a
linguagem que ela está acostumada a ouvir.
Você parte disso e tenta trazer a pessoa, gentilmente, na sua direção. Mas você não transforma quem está aqui com o discurso ali. Não tem ressonância. Se você não aprender a falar a língua, não vai conseguir mudar as mentalidades.
As
lideranças evangélicas foram governistas em todos os governos desde a
redemocratização. Agora, são opositoras. Há percepção de que a igreja não
precisa mais do governo para conseguir benefícios?
Paul Freston: Acho que é cedo para dizer isso porque há uma esperança forte de volta, que o exílio seja curto. A coisa ainda está muito crua para saber que movimento é este: se é o anúncio de uma nova fase em que o situacionismo já não é visto como importante, ou se é outra coisa.
Encontro de LULA com lideranças evangélicas antes das eleições de 2022 |
A
relação das igrejas com o populismo é perigosa?
Paul Freston: Acho que, por várias razões,
essa associação muito forte, esse abraço íntimo com o populismo é um perigo
para o evangelicalismo no Brasil. Primeiro, porque as raízes do Brasil não são
evangélicas, essa é uma religião de crescimento muito recente e ainda minoritária.
Em segundo lugar, aquela tradição de corporativismo eleitoral que vem desde a Constituinte também é posta em perigo pela adesão ao populismo. A bancada evangélica [em 2022] continuou bem forte, mas o número de evangélicos diminuiu. Em parte, o bolsonarismo incorporou várias cadeiras.
A
bancada evangélica é representativa mesmo dos evangélicos?
Paul Freston: Em certos temas, talvez sim; em outros, não. Tem algumas pesquisas que insinuam que não. A lógica é outra, a bancada tem uma lógica política. O pessoal está agindo de acordo com certas lógicas políticas que nem sempre são compreendidas e muito menos abraçadas pelas bases das igrejas. Eu acho que a representatividade, no máximo, é parcial.
A
bancada evangélica pode ser um risco para a laicidade do Estado?
Paul Freston: Eu acho que, às vezes, há um certo abuso dessa frase “ameaça ao Estado laico”. A existência em si de bancadas evangélicas não é uma ameaça. Determinadas ações dessas bancadas evangélicas podem ser, como esforços para privilegiar uma determinada religião na esfera pública em detrimento de outras.
Qual
a adesão do público evangélico ao Projeto de Lei Antiaborto e sua visão sobre o tema?
Paul Freston: Nunca houve um debate sério
sobre a questão do aborto no meio evangélico, que pense nas várias dimensões —moral
individual, da prática pastoral, da dimensão pública legislativa.
Essa pauta tem sido usada como uma arma para atacar o outro lado. Assim como se diz hoje com essa proposta atual, que seria uma maneira de atacar o governo, de colocar o governo em uma saia justa.
Fonte: Folha de S. Paulo – Entrevista da 2ª – Segunda-feira, 8 de julho de 2024 – Pág. A12 – Internet: clique aqui (Acesso em: 10/07/2024).
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