Crise política: O que será o amanhã?
Cátia
Guimarães
EPSJV/Fiocruz
04-07-2017
“Aparentemente lá no andar de cima o pau está quebrando
feio”
PLINIO DE ARRUDA SAMPAIO JUNIOR Economista - UNICAMP |
Analistas
discutem motivações e desdobramentos possíveis da crise política brasileira,
que atinge novo auge com a denúncia do presidente.
Os
tempos, definitivamente, não estão para brincadeira. Mas é com uma expressão
descontraída que o professor Plinio de
Arruda Sampaio Junior, do Instituto de Economia da Unicamp, resume o que,
na sua avaliação, estaria na raiz da turbulência que tem assolado o Brasil. “Aparentemente lá no andar de cima o pau
está quebrando feio”, descreve, com olhos atentos ao momento em que a crise
política atinge um novo “auge”, com as denúncias de corrupção envolvendo
diretamente o presidente Michel Temer.
Hipóteses
diversas tentam explicar as motivações dessa “briga”, que envolveria frações do grande empresariado e, cada vez
mais, instituições clássicas do sistema político, como o Judiciário, o Legislativo
e o Ministério Público. Análises
variadas fazem suas apostas sobre o que virá depois do fundo do poço. O
consenso é quase nenhum. “Se alguém
disser que sabe explicar o que está acontecendo no Brasil hoje, prende porque
está envolvido”, brincou também o professor da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mauro
Iasi, durante um evento realizado ainda antes do vazamento da delação
premiada dos donos da J&F, que deu início ao “cai não cai” do presidente.
A
única certeza é que, comparado com um ano atrás, quando o país assistiu ao impeachment da presidente Dilma
Rousseff, o cenário ficou mais complexo.
De um lado, cresceu a mobilização social contra as reformas trabalhista e da
previdência que, ironicamente, se tornaram o trunfo do governo Temer para
manter o apoio do grande empresariado. De outro, os “estragos” produzidos pela
Operação Lava Jato se expandiram para outras siglas e lideranças políticas,
complicando as teorias que identificavam apenas um processo de criminalização
do Partido dos Trabalhadores. “Até então
se imaginava que o movimento da classe dominante era apenas para atingir a
esquerda da ordem, o PT. Ficou claro que é uma briga mais profunda do que isso”,
completa Plinio.
PABLO ORTELLADO USP |
Dúvida
cruel
O
comportamento das Organizações Globo,
um dos maiores e mais importantes grupos empresariais do Brasil, deu a medida
da temperatura da crise. Temer não tinha mais condições de governar, bradavam,
já na primeira noite, os comentaristas que circulam diariamente pelos
principais veículos de comunicação do país. O “furo de reportagem” chegou à casa dos brasileiros na noite de 17 de
maio. E a sensação era de que o breve e instável governo de Michel Temer
não duraria nem mais 24 horas. Ele, no entanto, resistiu. Dois dias depois, um editorial do jornal O Globo publicado no meio do dia na versão online dava um passo
adiante, pedindo a renúncia do presidente. “O Temer passou uma semana sendo
literalmente bombardeado, tanto pelo O Globo
quanto pelo Jornal Nacional. Isso é
muito difícil de explicar”, reconhece Pablo
Ortellado, coordenador do Monitor do
Debate Político no Meio Digital, projeto que ele desenvolve como professor
da Universidade de São Paulo.
Mas o que parecia um ataque
fulminante foi cada vez mais se mostrando uma batalha com dois lados, que
dividiu até os grupos de mídia. Na direção oposta àquela assumida pelas
Organizações Globo, o Estadão saiu em defesa de Michel Temer: com críticas crescentes ao
Ministério Público Federal, chegou a recomendar, em editorial, que a denúncia
do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que acusa o presidente do
crime de corrupção passiva, fosse recusada pelo Supremo Tribunal Federal. Só
depois de passados 18 dias do vazamento, a Folha de S. Paulo assumiu um
posicionamento mais claro, recomendando
– sem sucesso, como se viu depois – a
cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
lamentando repetidas vezes o grau de instabilidade que geraria a saída de outro
presidente em tão curto tempo.
O que explica toda essa
divisão?
“Há setores mais
imediatistas que acham que o Temer é um governo capaz de conduzir as reformas e
que, por mais que cheire mal, é preciso tapar o nariz e segurar isso até 2018. E há outros setores que, no meu
entendimento, trabalham com uma estratégia de transição de longo prazo.
Quando a Rede Globo joga o Temer ao mar com tanta rapidez e tanta decisão, eu
acredito que o que está em jogo aí é o
entendimento de que é preciso construir uma nova transição. Porque o que
está se desmontando neste momento não é apenas o governo Temer, é o sistema
político da Nova República”, analisa Guilherme
Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
A
suposição é de que o grau de rejeição e
descrença atual tornou o sistema político brasileiro insustentável, trazendo de forma concreta o “risco” de
surgirem “movimentos contestatórios por baixo”. Assim, o crescimento da
mobilização social nos últimos meses teria acendido um sinal de alerta. “Eu
acho que há setores da classe dominante que perceberam isso e que acreditam piamente
em alguma forma de transição conservadora, tal como aquela feita no fim da
ditadura militar – e que gerou exatamente esse sistema político. Seria uma transição controlada, feita por
cima, de cúpula. E, nesse processo, depositam
um papel protagonista para setores do Judiciário”, analisa Boulos. Por
enquanto, diz, Temer tem sido mantido por um outro setor do grande empresariado
que, “apesar de tudo, o vê ainda como a via mais rápida de realizar as
reformas”. Mas ele alerta: “Se essa turma perceber que ele não vai ter
condições de entregar esse pacote e, de uma vez por todas, desembarcar do
governo, o Temer cai”.
GUILHERME BOULOS Sociólogo e líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) |
A
julgar pela fala do presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, que representa quase
700 mil empresas no país, esse momento ainda não chegou. Segundo ele, em
entrevista à jornalista Maria Cristina Frias, na Folha de S. Paulo do dia 26 de junho, hoje “todo o empresariado” defende a permanência do presidente Temer.
“É melhor seguir e fazer a transição no país. Chega de turbulência”, defendeu,
de acordo com o jornal. Foi uma fala isolada. Entre as outras entidades, parece reinar um compasso de espera.
Entre os analistas ouvidos pela Poli,
há controvérsias. “Temer tem muito pouco
apoio na classe dominante hoje”, aposta Valério Arcary, professor titular aposentado do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Baseado
em pesquisas que fazem monitoramento da esfera pública nas ruas e nas redes
sociais, Ortellado vai além: “Temer está
completamente isolado. Na sociedade civil hoje, ele não tem nenhum apoio
significativo”. Ele exemplifica com a situação dos movimentos sociais de
direita que deram sustentação ao impeachment,
como Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem pra Rua. “Todos eles se retiraram.
Se estão apoiando, é por debaixo dos panos, o que conta muito pouco para quem
faz agitação na sociedade civil. Eles
foram obrigados a se posicionar de forma contrária ao governo Temer, embora
não tenham feito nenhum tipo de mobilização, um pouco para não se somar ao grito de Diretas e, com isso, permitir
que Lula seja eleito”, explica.
O
fato inegável é que a declaração de Andrade foi um passo além, comparada à
cautela que marcou a posição das principais entidades empresariais do país,
inclusive a própria CNI, nos dias imediatamente após a denúncia. Num “Comunicado à nação” publicado no dia
23 de maio nos principais jornais brasileiros, a Confederação Nacional da Indústria clamou por “estabilidade política
e econômica”, reconheceu a “turbulência” do momento e declarou confiança
nos “poderes da república” para solucionarem a crise com “serenidade,
equilíbrio e espírito público, em estreita observância da Constituição
Federal”. Sem fazer qualquer referência ao presidente Temer, a imprecisão sobre
o apoio ao governo contrastava com a firmeza na defesa da pauta econômica: “As reformas trabalhista, previdenciária,
tributária e política são imprescindíveis e têm de continuar avançando”,
dizia o texto.
VALÉRIO ARCARY Professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) |
Três
dias depois, foi a vez da Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que, também em anúncio na
imprensa, se referiu às denúncias como “acontecimentos inesperados, que não nos
cabe julgar”, afirmou confiança nas instituições para a “manutenção do Estado
de Direito” e declarou-se contrária a
“qualquer resultado” que prejudicasse as reformas. “A interrupção da volta
à normalidade representa um grave risco à retomada do crescimento. Este é um
destino que não podemos e não vamos aceitar”, diz o texto.
Na
véspera, referindo-se genericamente às denúncias como “últimos acontecimentos”,
a Federação das Indústrias do Rio de
Janeiro (Firjan) pediu paz, apelou a uma “espécie de trégua institucional,
política e partidária” e à “união de todas as forças da sociedade civil”. Sem
fugir à regra, defendeu que “o Brasil
precisa chegar às eleições de 2018 sem novos sobressaltos e com manutenção de
uma base de apoio no Congresso Nacional que viabilize a continuidade da agenda
de reformas”. É pelas reformas, pareciam dizer em bloco, que Temer deve
ficar ou cair. Apenas a Fiesp, que
protagonizou a defesa do impeachment em 2016, não fez referência às mudanças
trabalhista e previdenciária, dedicando-se a defender a urgência de uma reforma política.
Pressão
das ruas
Mas,
reproduzindo o velho ditado, o que a realidade já mostrava a essa altura é que
tinha faltado combinar com os adversários. Isso porque, quase dois meses antes da delação que envolveu o presidente, no dia 15
de março, cerca de um milhão de pessoas, segundo os organizadores, foram às
ruas do país. Em 28 de abril, uma unidade de ação entre as várias centrais
sindicais produziu um dia de paralisação e mobilização que foi comemorado como
a maior greve nacional do país desde a década de 1980. “A pressão popular já
estava extremamente ativa antes mesmo da divulgação das delações da JBS e isso
tem a ver, acima de tudo, com a agenda de reformas”, explica Boulos.
Na
continuidade dessa mobilização, quando movimentos sociais e centrais sindicais
agendaram um ato chamado “Ocupa
Brasília” para o dia 24 de maio,
o objetivo era o mesmo: intensificar a
pressão no Congresso contra a aprovação das reformas. Mas, com o país
surpreendido uma semana antes pela denúncia de corrupção que atingiu o
Planalto, a manifestação incorporou os gritos de “Fora Temer” e “Diretas Já”. O
governo resolveu demonstrar força. Literalmente. Uma violenta repressão
policial deixou muitos feridos e pelo menos um manifestante atingido por bala
letal. Além disso, Temer e o ministro da
Justiça, Raul Jungman, assinaram um decreto autorizando a presença das Forças
Armadas por uma semana para garantir a ordem em Brasília. Diante da
repercussão, no dia seguinte, Temer recuou.
Nas
manchetes dos jornais, o descabido do decreto e a bandeira do “Fora Temer” deram
o tom do noticiário, deixando a oposição às reformas em segundo plano. Mas não
tem sido fácil ignorar o grau de impopularidade dessas medidas. Pesquisa Datafolha realizada em abril deste ano mostrou que 71% dos
brasileiros são contra as mudanças propostas na aposentadoria. Enquete
desenvolvida pelo Instituto Ipsos em maio aponta
que 58% da população também não aprova a reforma trabalhista, o que é
reforçado pelo resultado da consulta pública promovida pelo site do Senado: na
data de fechamento desta matéria, 154,7
mil tinham votado contra a reforma e apenas 7,5 mil a favor. Além disso,
segundo a última pesquisa Datafolha, realizada em junho, 64% dos
brasileiros afirmam que essa reforma vai beneficiar mais os empresários do que
os trabalhadores.
“O problema é que tanto o governo Temer
quanto o Congresso Nacional demonstraram nos últimos meses que governam de
costas para a sociedade. As reformas são rejeitadas por mais de 70% da
população, uma maioria esmagadora defende eleições diretas e isso não ecoa nem
no governo nem no parlamento. Criou-se
um verdadeiro abismo entre a voz das ruas, o Congresso e o governo do outro
lado”, analisa Boulos. Pablo Ortellado resume: “Como Temer não foi eleito,
ele não precisa ligar muito para sua aprovação. Essa agenda econômica não veio do processo eleitoral. Além disso, a gente tem um Congresso unido pelo medo da
Lava Jato, que está apostando que, ao fazer as reformas que agradam o mercado,
vai conseguir uma espécie de salvo-conduto. Eu acho que essa conjunção de
fatores está levando a essa situação excepcional que a gente está vivendo de
desprezo pela democracia, em que pouco
importa o que os eleitores pensam”.
Não
veio das urnas nem das ruas. De acordo com pesquisas realizadas por Ortellado
durante os protestos pró-impeachment, mais
de 70% dos manifestantes que foram às ruas denunciar o governo Dilma e o
Partido dos Trabalhadores eram contra a reforma da previdência. O mesmo se
verifica no acompanhamento feito nas redes sociais onde, segundo ele, as lideranças de movimentos como o MBL e o Vem pra Rua têm “apanhado” da sua base a cada vez que fazem
campanha pelas reformas do governo Temer. Embora pondere que seus
seguidores nas redes sociais não são todos integrantes da sua base, a
coordenadora nacional do Vem pra Rua, Adelaide
de Oliveira, não nega. “A gente já sabia que as reformas são impopulares,
não é novidade. Mas continuamos considerando um remédio amargo que nós teremos
que tomar”, afirma, explicando que, no mundo todo, a “população em geral” é “um
pouco mais imediatista”.
ADELAIDE DE OLIVEIRA Coordenadora nacional do movimento "Vem pra Rua" |
Ela
lamenta que hoje, diante da crise política, sejam “reduzidas as chances” de
aprovação, principalmente da reforma da previdência. “A gente torce para que
isso aconteça, mas não acredito”, diz. Adelaide
considera o Congresso atual “horroroso”, reconhece que boa parte dos
parlamentares está comprometida com escândalos de corrupção, mas não
concorda com o argumento de que eles não teriam legitimidade para votar
mudanças tão profundas como essas. “Legitimidade eles têm porque foram eleitos.
A palavra não é ‘legítima’. Se eu acho conveniente que eles façam? Sim, eu acho
conveniente que eles façam o correto. E para nós, as reformas estão na direção
certa”, afirma.
Da parte do governo, pesa
nesse cálculo o fato de as reformas da previdência
e trabalhista serem o carro-chefe da carta de
exigências que diversos segmentos do grande empresariado apresentaram a Temer
quando decidiram apoiar o impeachment que o levou ao Planalto. Entre a popularidade que
nunca teve e o compromisso com o que uma parte do andar de cima considerava a
receita para a “retomada da economia”, o governo não teve dúvidas em acelerar a
votação das medidas. Parecia estar dando certo. “Temer tentou fazer com as reformas trabalhista e da previdência o que
ele fez com a PEC do Teto: tramitar muito rapidamente e impedir o debate
público. Acontece que houve uma
inédita aliança das centrais sindicais, que conferiu força às mobilizações e
impediu essa tramitação rápida. E uma vez que a sociedade discutiu o tema,
ela foi contra”, explica Pablo Ortellado, ressaltando que as duas últimas
grandes mobilizações sociais atrasaram a agenda do governo.
Na
avaliação de Plinio de Arruda Sampaio,
foi exatamente esse movimento, mais especificamente a realização da greve geral em abril, um dos fatores que acelerou o que
ele chama de “derretimento do governo Temer”. O que se viu, diz, foi a
“entrada em cena” de um sujeito que estava relativamente ausente: a “classe
operária”. “Eu uso uma metáfora: você vai a um velório e, de repente, o morto
mexe o dedo. Todo mundo presta atenção, é um susto danado”, brinca,
argumentando que essa surpresa “catalisou” um segundo processo: a tal disputa no andar de cima, que, segundo
ele, está na raiz da delação dos irmãos Batista e das ameaças que rondam o
presidente.
O
velho e o novo
Mas, afinal, que disputa é
essa?
Antes
de tudo, ressalta Plinio, é preciso
não esquecer do pano de fundo da crise econômica, que ele considera a maior da
história moderna no país. No caso específico do Brasil, ele defende que está em curso uma “crise terminal da
industrialização por substituição de importações”, que se intensificou nos
últimos 15 anos. Isso significa que, na divisão internacional do trabalho, o país passou a ocupar um lugar
“ultraespecializado” – e mais rebaixado – de quem produz
e exporta produtos primários como carnes e minérios: as chamadas commodities. Nesse processo, diz, há
setores empresariais em decadência e outros em curva ascendente.
No
primeiro caso, está, segundo ele, a indústria como um todo, aqueles setores
representados por entidades como a CNI e a Fiesp. Engrossam também esse grupo
as empreiteiras que, neste momento, sofrem uma grande pressão das concorrentes
internacionais que querem entrar no mercado brasileiro. Coerentes com esse novo
papel econômico do país, na outra ponta,
em “franca expansão”, estariam os setores ligados ao agronegócio e à mineração.
JBS e Vale – que, como ele destaca, cometeu um dos maiores crimes
ambientais da história e até hoje não sofreu qualquer consequência – são bons
exemplos de quem sai ganhando. No mesmo
barco, aponta, o sistema financeiro também vai muito bem, obrigado. “A nova burguesia agora não tem a cara
do Antonio Ermírio de Moraes [do grupo Votorantim]. Tem a cara do Joesley”, resume.
Tentando
mapear o posicionamento do conjunto do empresariado, a reportagem da Poli entrou
em contato com três entidades de diferentes segmentos. Nenhuma delas aceitou
dar entrevista. Por meio de sua assessoria, a Fiesp respondeu que apenas o presidente, Paulo Skaff, poderia falar
sobre isso, mas não tinha agenda. A Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária enviou a nota publicada nos jornais,
afirmando que aquela era a posição oficial da entidade. Já a Federação Brasileira dos Bancos
(Febraban), que não divulgou anúncio sobre o tema em nenhum jornal, disse,
também através da assessoria, que não costuma se posicionar sobre a “crise
econômica”. Esclarecida de que a pauta era, na verdade, a crise “política”, a
resposta foi: “Menos ainda”.
Mas
o que tudo isso tem a ver com a crise? “Ao
ajuste econômico vai corresponder um ajuste político”, sugere Plínio,
ressaltando que, evidentemente, esse processo não se dá de modo automático.
Isso significa que, junto com os
representantes do “velho” na economia, estaria morrendo também o que ficou
“velho” na política: mais precisamente, a chamada Nova República, entendida
como o sistema que emergiu no Brasil após o fim da ditadura
empresarial-militar. Para caracterizar os lados dessa disputa, o economista
criou até uma nomenclatura própria. “A
briga dentro da burguesia se divide em duas frações, que eu chamo de ‘partido do estanca sangria’ e ‘partido do fora todos’”, classifica.
Entre os representantes do “fora todos”,
ele cita:
* Rodrigo Janot,
* a Rede Globo e
* o juiz Sergio Moro – mas, institucionalmente, esse grupo pode ser
resumido como aquele que tem sustentado o que ficou conhecido no Brasil como
“Operação Lava Jato”.
Já
o “estanca sangria”, segundo ele,
teria o senador Romero Jucá,
ex-ministro do governo Temer, afastado após o vazamento de um áudio em que defendia um pacto para frear a operação,
como sua maior expressão.
O
mistério da Lava Jato
Afinal,
quais as motivações da operação que já prendeu vários políticos e empresários,
fomentou o caldo social que facilitou o apoio ao impeachment e agora ameaça o
presidente Temer? Sobre isso, mais uma
vez, abre-se um terreno em que não há consenso. Para Pablo Ortellado, os fatos
mais atuais já permitem concluir que a
seletividade antes atribuída à Lava Jato se deve, na verdade, à exploração que
os meios de comunicação fazem dos seus resultados e não à operação em si.
“Eu acho que uma coisa importante que qualquer análise de conjuntura precisa
levar em conta é que não tem nenhuma
força política por detrás do que está acontecendo no Brasil”, diz,
defendendo que, para entender essa dinâmica, é preciso olhar para as “lógicas institucionais separadas”. “O Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), a Lava Jato, a Procuradoria Geral da República (PGR),
o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso, cada um tem um jogo próprio. Todas as explicações que buscam uma força
oculta que estaria conduzindo todos esses atores são, obviamente, falsas”,
diz. Especificamente em relação à operação, isso significa, na avaliação do
professor, que se trata, “aparentemente”, de uma investigação que, ainda que
com “recursos de legalidade duvidosa”, está tentando limpar o Brasil da
corrupção. “Não está a serviço de nenhum
ator político”, resume.
Mantendo
o raciocínio da briga entre o “partido do estanca sangria” e o “partido do fora todos”, Plinio não nega que as
instituições que compõem a Lava Jato tenham se autonomizado – ele acredita,
inclusive, que, já na presidência, Temer
fez de tudo para frear a operação e não conseguiu. Mas, para o economista,
o importante é que, sozinha, essa autonomia “não explica nada”. Isso porque,
segundo ele, a pergunta para entender
esse processo deve ser: “qual o sentido do conjunto dessas ações?”. E a
resposta, na sua opinião, é que – ainda
que não se trate de um movimento “intencional e programado”, já que os
agentes não seriam “totalmente conscientes”– há uma parte do “sistema de poder” no Brasil que está atuando para
destruir a outra. E ele acha que, por enquanto, tem conseguido.
Para
Valério Arcary, a Lava Jato tem
atuado, ela própria, como ator político. Mas ele recusa qualquer interpretação
que se prenda na autonomia das instituições envolvidas. “A ideia de que há uma autonomia da investigação da Polícia Federal ou
da atuação do Ministério Público em relação à classe dominante, ao capitalismo
brasileiro, é fantasiosa. As classes médias no Brasil não têm musculatura,
não têm peso social, não têm iniciativa política nem representação partidária
que permita cumprir papel tão elevado”, opina, e conclui: “Isso significa que há um apoio burguês à Operação Lava Jato.
Sem isso, não seria possível eles conquistarem esse prestígio, inclusive com os
grupos de mídia, que obedecem diretamente às escolhas estratégicas da classe
dominante”.
VIRGÍNIA FONTES Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) |
Mas que forças seriam essas
representadas pelas ações da Lava Jato?
“Eu
acho que, primeiro, há uma pressão dos
imperialismos em geral, particularmente do norte-americano”, responde.
Segundo ele, ainda em 2008, os efeitos da crise na economia dos Estados Unidos
da América (EUA) provocaram, entre outras coisas, uma mudança na relação entre
os países que incluiu, por exemplo, uma maior colaboração internacional entre
os ministérios públicos. “A Suíça, por exemplo, flexibilizou o seu sigilo
bancário, que era inviolável há séculos”, conta. No caso específico do Brasil,
o ponto central de incômodo, de acordo com Arcary, passava pela relação dos
partidos políticos com alguns “grandes ramos da economia nacional”. “Isso
atingiu proporções que subvertem as regras de funcionamento do capitalismo
contemporâneo, basicamente, as operações com o BNDES [Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social] e o papel da Petrobras”, analisa, afirmando
que hoje já se sabe que, no início da Lava Jato, “o Ministério Público foi subsidiado pela Polícia Federal com
informações do governo norte-americano, que também estabelecia vigilância sobre
alguns grandes grupos empresariais no Brasil, em particular, as empreiteiras”.
Isso lá na origem, diz. Porque, a partir daí, uma fração da classe
dominante brasileira teria se convencido de que, de fato, era preciso
“modernizar as regras” do regime político que tinha gerado essas relações.
E, na sua avaliação, é precisamente isso que está acontecendo até agora: uma
reforma política, só que feita “a quente”.
Ele
explica que, em condições normais de temperatura e pressão, uma transição como
essa deveria se dar com debate no Legislativo, comandada por um “partido
burguês” – papel que, segundo Arcary, caberia ao PSDB, sigla que representaria
a “direção política da classe dominante” no Brasil. “Mas o PSDB está falhando”, diz, alertando que, diante dessa ausência, a Lava Jato passou a operar como “sujeito
político”. A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Virgínia Fontes também reconhece que, em algum
momento, a “condução” da Lava Jato pode ter adquirido certa autonomia quando se
tratava de “travar” o PT. Mas ela ressalta que nenhuma parte do Estado tem
autonomia completa e acredita que a
presença maior da Procuradoria Geral da República atualmente pode ter o
objetivo de corrigir os rumos da operação, fazendo com que ela se espalhasse
para um espectro político muito além do petismo.
Como
elemento da conjuntura, Virgínia não ignora, por exemplo, o fato de o juiz
Sergio Moro se achar um “salvador”, mas ela avalia que o magistrado também não
deixa dúvidas sobre sua simpatia e “eventualmente proximidade” com o PSDB, o
principal partido de oposição ao PT que foi o primeiro foco da Lava Jato. “A
estrutura de investigação dele era muito enviesada e não deixou de ser”, opina.
Muito ilustrativo disso, na avaliação da historiadora, é o fato de o capítulo mais recente da operação, que
atinge o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, do PSDB, não ter sido
conduzido pela chamada força-tarefa de Curitiba e sim pela Procuradoria Geral
da República, em Brasília.
De
fato, a condução da delação premiada dos irmãos Batista pela PGR não fui fruto
apenas de um trâmite legal, pelo fato de o presidente ter foro privilegiado.
Segundo a assessoria do procurador Rodrigo Janot, a J&F já tinha sido
citada nas investigações da Lava Jato conduzidas pela força-tarefa de Curitiba.
Mas, como eram muitos os fios levantados pela operação, naquele momento não se
desdobrou uma investigação específica. Um envolvimento mais direto da empresa
com esquemas de corrupção veio à tona recentemente, por meio de outras duas
operações policiais: a Greenfield e a Carne Fraca. Foi aí que Joesley e Wesley
decidiram propor um acordo de delação premiada e, para isso, procuraram
diretamente o procurador-geral da República.
Tudo
que aconteceu a partir daí – por exemplo, a produção de provas materiais, como
o áudio da conversa de Temer, a gravação do telefonema de Aécio e o vídeo do
então deputado Rodrigo Rocha Loures com uma mala de dinheiro que os donos da
J&F denunciaram como propina – foi acordado e conduzido apenas pela PGR,
sem participação da força-tarefa mais conhecida da Lava Jato, associada a
Sergio Moro.
Para
o cientista político Luiz Felipe Miguel,
da Universidade de Brasília, os desdobramentos atuais da Lava Jato expressam as
divisões no interior da correlação de forças que instrumentalizou a operação
para promover o impeachment da presidente Dilma. Na sua avaliação, quando Temer
assumiu o Planalto, esses conflitos se tornaram visíveis tanto no “bloco de
poder” quanto nos próprios “operadores do campo jurídico”, o que inclui o
Judiciário e o Ministério Público. “Sergio
Moro é claramente vinculado ao PSDB. Tanto que ele perde o protagonismo a
partir do momento em que a investigação chega, de fato, ao PSDB e ao PMDB”,
diz.
LUIZ FELIPE MIGUEL Cientista Político - Universidade de Brasília (DF) |
No
exato momento em que esta matéria estava sendo concluída, novas mudanças
pareciam não só deslocar o protagonismo da Lava Jato, mas também alterar os
desdobramentos mais imediatos da crise política. No dia 30 de junho, enquanto
trabalhadores faziam mais uma greve geral, o
STF tomou duas decisões que podem mudar os rumos dos acontecimentos.
Primeiro, o ministro Marco Aurélio Mello
não apenas negou o pedido da PGR para prender Aécio Neves como determinou a
volta do político mineiro às funções de senador. Horas depois, o ministro Edson Fachin, relator da Lava
Jato no Supremo, mandou soltar o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, ex-assessor
de Michel Temer. Na madrugada do mesmo dia, apenas algumas horas antes
desta decisão, o blog do jornalista Ricardo
Noblat no jornal O Globo informou
que Temer havia sido avisado de que Loures tinha decidido fazer delação
premiada. “Se de fato delatar, o episódio da mala será só um detalhe de um
copioso relato que Loures poderá fazer. Sua estreita ligação com Temer é
antiga. Loures prestou relevantes serviços ao amigo. E, agora, está se sentindo
abandonado por ele e pelos que o cercam”, dizia o texto, ressaltando o fantasma
que há muito assombrava o Planalto.
Vale
registrar que, desde o início, não faltam críticas à Operação Lava Jato pelo
que vários juristas identificam como uma estratégia de prender investigados
para forçar um acordo de delação premiada. Em entrevista para reportagem da
Poli em setembro de 2016, Afranio Silva Jardim, promotor aposentado e professor
de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, condenou essa prática
e lembrou que, no famoso artigo sobre a operação Mãos Limpas, o juiz Sergio Moro defende que é preciso,
de fato, “criar um desconforto” ao investigado.
Nas
situações em que isso foi denunciado, os responsáveis pela força-tarefa negaram
essa motivação, defendendo o argumento de que as prisões são necessárias para
impedir a fuga, o cometimento de novos crimes ou a destruição de provas,
conforme o caso. Mas o fato é que, com muitos investigados presos
preventivamente, a operação conseguiu estabelecer um acordo que incriminasse
outros, gerando a bola de neve que a Lava Jato se tornou. Como o próprio texto
de Noblat lembra, “a pressão da família e o isolamento numa cela da Polícia
Federal” – situação exatamente igual a que Loures estava submetido – “também foram
decisivos para que o ex-senador Delcídio Amaral delatasse”. A diferença é que uma possível delação do
ex-deputado atingiria diretamente Michel Temer; no caso de Delcídio, a
delação – que se concretizou – teve como alvos os ex-presidentes Lula e Dilma.
Preso em novembro de 2015, o ex-senador também saiu da prisão por determinação
do ministro do STF Teori Zavascki, morto em janeiro deste ano num acidente de
avião. Ele foi solto exatamente na mesma data (19 de fevereiro de 2016) em que
assinou a primeira parte da sua delação – que, no entanto, só foi homologada
por Zavascki em 15 de março.
Sistema
político
O
abalo que cada novo passo da Lava Jato provoca na conjuntura do país –
incluindo, agora, o destino da cadeira de quem ocupa o Planalto – dá a medida da
falência do sistema político que está ruindo. E, na avaliação de Luiz Felipe Miguel, isso envolve também
o Judiciário. “O que a gente tem visto
são acertos entre os poderes ao arrepio da lei”, lamenta. E, de acordo com
o cientista político, o abandono desses mecanismos que ele define como de
“accountability horizontal” fragiliza as bases do sistema político brasileiro.
Ele
volta até os chamados escritos federalistas, que fundamentaram a Constituição
dos Estados Unidos, para explicar o arranjo que, também no Brasil, prevê
mecanismos de freio e controle entre os poderes. “A ideia é que a ambição
controle a ambição. Então, se o interesse individual de quem exerce um cargo de
poder seria adquirir mais poder, a gente tem que pôr outras pessoas em outros
cargos para controlar essa ambição”, explica. O problema, diz, é que essa é uma
“leitura absolutamente individualista das ações políticas”. “Nós temos nessas posições indivíduos com
suas ambições em conflito. Mas, na verdade, todos defendem os mesmos interesses
básicos”, aponta, colocando o dedo na ferida: “Existe um caráter de classe nessas instituições que faz com que, na
hora em que o jogo político parece se expandir para além dos acertos entre os
grupos já dominantes, elas fazem refrear qualquer transformação”.
O
resultado, segundo ele, é que num momento de crise como o atual enfraquecem-se
os mecanismos de responsabilização dos agentes públicos e impera a aposta de
que o crime vale a pena. E isso, na sua opinião, ajuda a explicar a resistência
de Michel Temer mesmo diante de acusações e evidências tão graves. “Se a gente estivesse com o império da lei
funcionado, seria de se esperar uma ação muito rápida para afastá-lo do cargo,
o que provavelmente levaria o próprio implicado a se afastar para se preservar
do que ele saberia ser uma investigação inevitável”, detalha, explicando
que o país está vivendo exatamente o processo contrário: “Como a gente não tem
segurança de que haverá punição para esses crimes e de que eles serão
investigados efetivamente – porque o próprio Supremo já mostrou como age
politicamente, mesmo nessas circunstâncias –, isso leva a que agentes do campo
mais propriamente político – como o presidente da Câmara – que deveriam estar
impulsionando a retirada do Temer, se sintam à vontade para fazer uma
negociação simplesmente política, no mau sentido da palavra, e mais ou menos
desprezar o elemento criminal da história”.
Diante
desse cenário, que ele caracteriza como uma “crise de legitimidade de todo o sistema político”, os problemas
não acabam necessariamente se o presidente sob denúncia cair. Não por acaso,
nas ruas e nas páginas dos jornais já está em disputa o caminho para um
eventual “dia seguinte” ao governo Temer. Na letra da lei, hoje, ocorreriam eleições indiretas, em que o novo
ocupante do Planalto seria escolhido pelos parlamentares. De acordo com Luiz
Felipe Miguel, no entanto, mesmo essa legislação não é clara em muitos
aspectos. “Não se sabe como a eleição
ocorre, se Senado e Câmara têm pesos iguais, se precisa de filiação partidária,
se é só parlamentar que pode ser escolhido...”, exemplifica.
Mas
o mais grave, na sua opinião, é que, ainda que fosse preenchido esse “vácuo de
regulação”, essa solução não dá conta do tamanho do problema. “Evidentemente, nesse sistema, uma eleição
indireta não tem condição de relegitimar o exercício de poder no país. O
chamamento às urnas é a forma clássica de se buscar injetar legitimidade num
sistema que está em crise profunda”, analisa, explicando que “as leis não são
tábuas sagradas”.
Posicionamento
diametralmente oposto tem Adelaide de
Oliveira, do Vem pra Rua. “O Vem
pra Rua é legalista”, diz, e completa: “Não
adianta num momento de crise nós começarmos a mudar uma regra que já estava
estabelecida”. No pacote da “legalidade”, ela lembra que, segundo a Constituição,
um presidente precisa ser investigado antes de ser retirado do poder. “É isso
que tem que acontecer”, afirma, argumentando que o movimento só aceitou pedir o
impeachment de Dilma depois do parecer do Tribunal de Contas da União que
apontava o crime de responsabilidade. De todo modo, caso Temer desocupe o
Planalto – o Vem pra Rua chegou a
defender sua renúncia –, eles não têm
dúvida de que o caminho devem ser as eleições indiretas. “Além do que, é
discutível a legitimidade de quem pede isso. A esquerda está tão atolada nas denúncias quanto o atual governo”,
diz.
Alertada de que, segundo as
pesquisas, “quem pede isso” não é apenas a esquerda, mas sim a maioria
esmagadora da população, a coordenadora nacional do Vem
pra Rua relativiza os resultados. “Mas eu imagino que eleições diretas não
são uma coisa só. Nesse “eleições
diretas” tem vários anseios, tem eleições diretas só para presidente, eleições
diretas gerais, mudanças na Constituição para que as eleições não sejam
separadas... Nesse saco tem gatos de várias raças, tem várias opiniões
embaixo desse guarda-chuva das ‘eleições diretas’”, opina. De acordo com
pesquisa realizada pelo Instituto
Datafolha em junho, 83% dos
brasileiros preferem que sejam realizadas eleições diretas se Temer cair.
“A popularidade é uma coisa muito boa, mas nem sempre ela é possível”,
justifica, respondendo sobre a distância do movimento em relação à maior parte
da sociedade nesse quesito.
Mantendo
o argumento da legalidade, Adelaide de Oliveira garante que, se houver uma
mudança na Constituição que autorize eleições diretas nesse momento, o
movimento passará a apoiar esse caminho. Ela, no entanto, mostra convicção de
que, dada a maior complexidade da votação de uma Proposta de Emenda
Constitucional, não há tempo hábil “para que se discuta, se esclareça e se tome
uma decisão sem casuísmos”.
A
resistência de um movimento que se autoproclama de direita em relação a essa
alternativa concreta apenas reforça o papel estratégico que Valério Arcary
acredita que a bandeira das “Diretas Já” tem para as forças de esquerda neste
momento. “As duas frações da burguesia
em luta entre si são contra as Diretas. Nenhuma expressão burguesa importante é
a favor”, analisa.
Na
verdade, no debate público, pelo menos duas declarações poderiam relativizar
essa análise. Diferenciando-se do posicionamento das Organizações Globo – que
apelam à Constituição para defender eleições indiretas –, o jornal Folha de S. Paulo reconheceu, em
editorial, que “o ideal seria que o
substituto fosse eleito pelo voto direto”. Da mesma forma, em nota enviada
à imprensa no dia 14 de junho, Fernando
Henrique Cardoso sugere a antecipação das eleições gerais de 2018, num
processo que fosse conduzido pelo próprio presidente Temer.
Há,
no entanto, quem não acredite na firmeza dessas posições. “A Folha acena com diretas
desde o impeachment de Dilma. Mas me parece um aceno cínico: sem fazer força.
Em 1984, a Folha aderiu à campanha e
produziu uma faixa amarela em suas edições. Hoje fala, em meias palavras, no
editorial. A meu ver, pelo risco de perder leitores. O mesmo ocorre com FHC, que acena para eleições gerais – o que
certamente assusta os parlamentares –, enquanto seu partido é o principal pilar
de sustentação do governo Temer. Não acho que nenhuma das iniciativas seja
para valer”, questiona Marcelo Semer,
juiz de direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, que afirma não ver como
resolver o “dilema” atual “sem passar pelo povo”. “A Nova República começou
quando o povo aceitou a derrota das Diretas Já e legitimou a ida ao Colégio
Eleitoral. É hora de corrigir esse erro. Uma
república que seja nova começa com o voto popular, não termina com ele”,
defende.
Para
Virgínia Fontes, no que diz respeito
à pauta organizativa das forças de esquerda, é preciso ir além: “Nossas palavras
de ordem devem ser ‘Diretas Gerais Já’, ‘Fora Temer’, ‘Greve Geral’ e ‘anulação
de todos os atos ilegítimos’. Porque não se trata agora de um governo forte
conseguir empurrar goela abaixo a extração de direitos e sim o contrário”,
propõe, embora, na sequência, ela reconheça que “a correlação de forças ainda não está à altura da gravidade da
situação”.
MARCELO SEMER Desembargador - Tribunal de Justiça de São Paulo |
Pressão
aquém?
E
por que não está? De acordo com a última pesquisa Datafolha, realizada em junho,
83% dos brasileiros acreditam que Temer teve participação no esquema de
corrupção denunciado pela Lava Jato. Seu nível de aprovação chegou a 7%, o pior de toda a série histórica do
instituto. Em 2016, 60% queriam a renúncia da presidente Dilma e, caso isso
não acontecesse, 65% defendiam que ela sofresse impeachment. Junto com as centenas de milhares de pessoas nas ruas,
esses números eram usados para legitimar o aval dado pelo Congresso e pelo
Supremo Tribunal Federal. Era o desejo da maioria, dizia-se – ainda que essa
maioria se expressasse de forma diferente daquela que elegeu a presidente,
meses antes. Hoje, 79% dos brasileiros
querem a renúncia de Temer e 84% defendem um processo de impeachment caso ele
se recuse a sair.
Até
o fechamento desta reportagem, 25
pedidos de impeachment do presidente
tinham sido apresentados. Diferente da pressa e disposição de Eduardo Cunha
no passado recente, o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, que tem a prerrogativa de aceitar ou não os pedidos, se
mantinha em silêncio. Em resposta a uma ação de deputados da oposição
submetida ao STF, o ministro Alexandre de Moraes, que integrou o governo Temer,
estabeleceu um prazo para que o presidente da Câmara explicasse as razões da
inércia.
Mas
a verdade é que há diferença também na
temperatura das ruas. De um lado, no que tem sido ironicamente denunciado
como o “silêncio das panelas”, quando a crise chegou ao presidente Temer e
outros partidos da base aliada, os movimentos que organizaram o campo
“antipetista” em 2016 simplesmente saíram das ruas. Passado mais de um mês da denúncia, nenhum dos movimentos que lideraram
os gritos anticorrupção realizou qualquer manifestação contra o governo Temer.
O Vem pra Rua chegou a convocar um
ato para pedir a renúncia do presidente, no dia 21 de maio, mas recuou, sob o
argumento de que, pela quantidade de manifestações realizadas naquela mesma
data em São Paulo, colocaria seus seguidores em risco.
Mais
de um mês depois, no entanto, nada ainda tinha sido feito. “Eu poderia hoje
evocar uma saída ‘Fora Temer’ e colocar um monte de gente da esquerda na rua,
pedindo atrás disso um monte de outras coisas”, admite Adelaide de Oliveira.
Segundo ela, diferente do que aconteceu
em 2016, hoje as pautas estão muito dispersas, o que justificaria “atos de
rede” e não mais de rua. Ela explica que o Vem pra Rua “não é só ‘Fora Temer’”, quer que estejam fora “todos
os corruptos”. “A gente não personifica porque a corrupção não está personificada
nesse momento”, explica. E completa: “É ‘Fora Todos’, inclusive o Temer, o
Jucá, o Renan, o Aécio. Nós precisamos fazer um movimento que seja muito mais
estrutural do que personificado”.
Seria
um arrependimento por ter personificado a corrupção na presidente Dilma um ano
atrás? “De maneira nenhuma”, responde. “A
personificação aconteceu pela sociedade que, naquele momento, via no governo do
PT o poder de alimentação de uma máquina podre. Por isso tirar o PT uniu
tanta gente”, justifica, argumentando que, neste momento, o movimento poderia
até convocar, mas não haveria “adesão do cidadão”.
No
momento em que esta matéria foi fechada, após a entrevista com a coordenadora
nacional do movimento, o Vem pra Rua finalmente convocou uma “Marcha
contra a Impunidade e pela Renovação”. Diante de uma conjuntura tão
dinâmica, em que tudo pode mudar no dia seguinte, chama atenção o fato de o ato
ter sido anunciado para o dia 27 de agosto, quase dois meses depois da
convocação e mais de três meses depois da denúncia. Talvez a pauta explique o
prazo prolongado: “exigimos a saída de
Temer, a prisão de Lula, e o andamento célere das condenações e prisão dos
diversos bandidos que tomaram de assalto o nosso país”, diz o texto.
Se
levarmos em conta os resultados da pesquisa que Pablo Ortellado fez das demandas que se destacaram nas primeiras
manifestações desse novo ciclo iniciado no Brasil em 2013, não faltariam
motivos para que uma grande massa da população estivesse nas ruas de novo.
Segundo ele, as Jornadas de Junho trouxeram dois “conteúdos reivindicativos”
principais: a defesa dos direitos sociais e a crítica à corrupção. O problema,
diz, é que no “pós-Junho”, houve a cisão
dessa “agenda unitária da sociedade brasileira” em dois grupos polarizados:
* a ESQUERDA
continuou se atendo à primeira pauta e
* o campo que ele chama de ANTIPETISTA
se agarrou à segunda.
Do
lado dos movimentos que cresceram na
esteira da defesa do impeachment, isso se expressa, na avaliação do professor,
numa falta de identidade entre liderança e base em vários pontos que não dizem
respeito à luta contra a corrupção. A diferença no posicionamento sobre as
reformas é um exemplo atual. “A liderança desse campo é toda de direita e muito
conservadora, mas as pessoas que habitam esse campo não são assim, são
diversas, são a cara da população brasileira”, explica. E reforça: “O que unifica os dois campos hoje é que
eles não apoiam o governo”.
O
fato é que, com as denúncias de corrupção atingindo partidos identificados com
a direita e as reformas que atacam os direitos sociais caminhando no Congresso,
o “campo antipetista” saiu das ruas e as manifestações de massa em defesa de
direitos trabalhistas e previdenciários voltaram a crescer. Mas, pelo menos até
agora, elas não foram suficientes para barrar as reformas nem para impor o fim
do governo, que as pesquisas mostram ser o desejo da maioria esmagadora da
população.
“Não foi uma avalanche”, reconhece Valério Arcary,
referindo-se à massa de pessoas que foram às ruas contra Temer. E ele arrisca algumas suposições sobre o que estaria
“bloqueando a entrada em cena de milhões de pessoas para dizer ‘Fora Temer’,
fora reformas e chamar eleições diretas”:
1ª)
Uma hipótese é que as pessoas estejam presas no que ele chama de “ilusões da Lava Jato”, acreditando que
não precisam sair às ruas para derrubar Temer porque a operação já estaria
fazendo isso. E ele ressalta o risco dessa situação, já que, apesar do discurso
de limpeza ética, a reforma política que a Lava Jato está fazendo “a quente”
representará uma mudança de regime com “traços reacionários”.
2ª)
Outro empecilho à mobilização neste momento, diz, seria a dúvida sobre quem vai entrar no lugar do presidente deposto.
3ª)
Por fim, o professor destaca uma “certa
desesperança geral em quem vai governar”. “Quando há uma turbulência provocada
por um processo tão rápido, há muita poeira no ar, há simplesmente perplexidade. As
pessoas ficam muito confusas. E quando estão confusas, elas não se movem
porque têm medo de serem manipuladas”, analisa, defendendo que, por isso, parte
da população se sente mais segura de sair às ruas por uma pauta como a reforma
da previdência, “que elas têm certeza que precisam combater”.
4ª)
Para Luiz Felipe Miguel, é parte desse diagnóstico também o “sentimento de que estamos derrotados de
antemão”. “Eu acho que o golpe, de alguma maneira, reforçou isso. A fúria avassaladora do programa da direita
levou a um estado de choque e gera passividade. Parece que não adianta
fazer nada porque eles vão sempre ganhar”, diz.
5ª)
Virgínia alerta ainda para o aumento da
repressão e da violência como um fator que inibe a participação social.
De
acordo com Valério Arcary, no
entanto, nada disso autoriza uma avaliação pessimista. Afinal, diz, qualquer
comparação com o estado de mobilização atual só pode ser feita em relação ao
passado concreto e não a um futuro idealizado. E o passado recente, diz, foi mais de uma década de um processo de
desmobilização social produzido pelos governos do PT. “Em comparação com o
que nós temos em perspectiva histórica, eu diria que a resposta da classe trabalhadora
brasileira foi surpreendentemente poderosa”, anima-se.
O fantasma da desmobilização
e dos acordos “pelo alto”, no entanto, não desapareceu do horizonte. “O PT é amplo, tem vários
setores com posições bem diferentes e muitos com posições muito lúcidas. Mas eu
acho que o campo majoritário, que inclui o próprio ex-presidente Lula e a nova
presidente do partido, [a senadora] Gleise Hoffmann, tem uma enorme dificuldade
de transferir a luta política de volta para as ruas”, lamenta Luis Felipe Miguel. Segundo ele, a desmobilização das suas bases sociais e a
opção por acordos institucionais foram parte do pacto feito pelo partido para
garantir sua permanência no poder. “O PT está viciado nisso”, diz,
incluindo nesse pacote também os “braços” do partido, como a Central Única dos
Trabalhadores (CUT). Outras forças, no entanto, têm apontado a saída oposta.
Guilherme Boulos, do MTST, por exemplo, não tem dúvida: “É preciso construir
novos caminhos à esquerda. O maior erro que a esquerda brasileira pode cometer
neste momento é se apresentar como salvadora do sistema político. Este sistema ruiu. Quem se agarrar a ele,
vai junto”.
No
momento em que esta reportagem está sendo finalizada, a última jogada dos
trabalhadores organizados nesse tabuleiro de xadrez – o dia de Greve Geral realizado em 30 de junho – ainda estava para ser
avaliada. Com repercussão na imprensa, houve piquetes, fechamento de estradas e
manifestações em cidades de todos os estados brasileiros. Mas a ação unitária
se dividiu, principalmente pela estratégia do governo de chamar algumas
centrais, entre elas a Força Sindical, para negociar os termos da reforma
trabalhista, esvaziando a luta contra a reforma como um todo. Sejam quais forem
as razões, o fato é que as primeiras
contas já apontavam uma adesão menor do que a que foi comemorada na Greve de 28
de abril. “Eu acho que ainda vem revolta popular. E vem maior”, apostava
Virgínia em entrevista à Poli, antes
do dia 30. A conferir.
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