O semiocapitalismo
Ricardo
Forster
Página/12
28-07-2017
O semiocapitalismo [capitalismo semiótico] se tornou o
ponto máximo de abstração do capital, impactando direta e fulminantemente sobre
indivíduos que vivem, cada vez mais, no interior de realidades virtuais e sob o
signo da desmaterialização dos vínculos intersubjetivos
FRANCO "BIFO" BERARDI |
“O nível de predomínio do capital financeiro na atualidade é esmagador e constitui o eixo central da acumulação
contemporânea, até praticamente reduzir a produção de objetos materiais ou
imateriais à periferia na busca de rentabilidade. O semiocapitalismo [capitalismo semiótico] se tornou o ponto máximo
de abstração do capital, impactando direta e fulminantemente sobre indivíduos
que vivem, cada vez mais, no interior de realidades virtuais e sob o signo da
desmaterialização dos vínculos intersubjetivos”, escreve o filósofo Ricardo Forster, analisando a obra Fenomenología
del fin. Sensibilidad y mutación conectiva, de Franco “Bifo” Berardi, filósofo, escritor e agitador cultural
italiano.
Eis o artigo.
Leio, não sem
começar a me perguntar algumas coisas que me remetem a nossa atualidade, o
último livro de Franco “Bifo” Berardi,
Fenomenología
del fin. Sensibilidad y mutación conectiva [Caja Negra Editora, 2017],
no qual esmiúça a época da digitalização e do predomínio da financeirização do
mundo, não sem derramar, ao menos sobre mim, uma sutil dose de pessimismo civilizatório, que conduz mais à
melancolia que à rebelião.
Não por isso,
deixa de ser um livro valioso e agudo em sua tentativa de cartografar a obscura
complexidade de nossa época. Detenho-me em um dos tantos parágrafos de um texto
inquietante: “O ponto crucial da crítica de Baudrillard é o fim da
referencialidade e a (in)determinação do valor. Na esfera do mercado, as coisas não são consideradas a partir do
ponto de vista de sua utilidade concreta, mas, ao contrário, a partir de sua
permutabilidade e seu valor de troca. De maneira similar, na esfera da comunicação, a linguagem é
comercializada e valorizada como performance. É a efetividade, e não o valor de
verdade, a regra da linguagem na esfera da comunicação. É a pragmática, e não a hermenêutica, a metodologia para compreender a
comunicação social, especialmente na era dos novos meios de comunicação”
(pág. 175).
Nestas reflexões
de Berardi se manifesta o processo
que, no interior da modernidade burguesa, chegou, séculos depois, ao que ele
denomina “semiocapitalismo”
[capitalismo semiótico], esta etapa na qual o signo linguístico se emancipou plenamente de qualquer
referencialidade para se deslocar por uma espacialidade na qual a abstração
domina.
Citando Jean Baudrillard – que não costuma ser
citado, ultimamente, para além do valor antecipatório de muitas de suas
análises -, diz que o filósofo francês “propôs uma semiologia geral da
simulação baseada na premissa do fim da referencialidade, tanto na economia
como no campo linguístico. Em O espelho da produção [edição
portuguesa: Edições Espaço, Braga, 1976], escreve: ‘[...] a necessidade, o valor de uso e o referencial ‘não existem’: não passam
de conceitos produzidos e projetados em uma dimensão genérica pelo próprio
desenvolvimento do sistema de valor de troca’. O processo de autonomização do dinheiro, que é a
principal característica do capitalismo financeiro, pode se inscrever no marco
geral da emancipação da semiose da referencialidade” (págs. 172-173).
O capital financeiro não só constitui o ponto mais avançado da
“abstração”, já destacado por Marx, como também, na
perspectiva da comunicação, introduz, de forma radical, a autonomização do
signo e de seu impacto na produção artificial de conteúdos imateriais que,
no entanto, definem o vínculo com a realidade determinando a busca de
rentabilidade por parte de um capital
que abandonou a esfera da produção para se centrar na esfera financeira. Ao
se evaporar a referencialidade, o que também se encerra é a vinculação
argumentativa, abrindo passagem à fabricação
de sujeitos impulsionados por signos vazios e abstratos que impactam de cheio
na dimensão afetiva e sensível.
“Todos os signos – escreve Baudrillard, em “A troca simbólica e a morte”
[edição brasileira: Edições Loyola, 1996] – se permutam entre si, daqui por diante, sem se permutar por algo real (e
não se permutam bem, não se permutam perfeitamente entre si, a não ser na
condição de não se permutar por algo real)”. Pensar as estratégias
comunicacionais é adentrar nesta hipérbole do signo, na qual a operação de
deslocamento se consumou de forma definitiva, impactando de cheio na
subjetivação de indivíduos que estabelecem vínculos com “a realidade” por meio
desta “emancipação do signo de sua função referencial”. Na era da “pós-verdade”, tudo pode ser dito e convertido em “verdade
irrefutável”. Romper esta nova forma de feitiço constitui o desafio mais
árduo e difícil de qualquer projeto de libertação.
O perigo é que a
dimensão real e imaginária deste ‘transtrocamento’ da materialidade em
abstração acabe por ser aceita pelos sujeitos como a efetiva “realidade”, sem
chances de se subtrair desta colonização cada vez mais profunda. “A virtualização financeira – diz Berardi – é o último passo na transição para a forma do ‘semiocapital’. Nesta
esfera, aparecem dois novos níveis de abstração, como fruto da abstração do
trabalho, a respeito da qual Marx
escreveu (...). A abstração digital soma uma segunda camada à abstração
capitalista. A transformação e a
produção já não acontecem no campo dos corpos, da manipulação material, mas,
sim, no da pura interação autorreferencial entre máquinas informáticas. A
informação toma o lugar das coisas e o corpo fica eliminado do terreno da
comunicação (...). Depois, há um terceiro nível de abstração, que é o da
abstração financeira. As finanças (...)
se desvincularam da necessidade da produção. O processo de valorização do
capital, ou seja, aquele que aumenta o dinheiro investido, já não passa pela
instância da produção do valor de uso ou, inclusive, pela produção física ou
semiótica de bens” (págs. 176-177).
De qualquer modo, Giovanni Arrighi, em seu livro O longo século XX [edição brasileira:
Contraponto Editora, 2012], já havia destacado que em cada uma das etapas ou
ciclos atravessados pelo capitalismo, desde sua primeira estação genovesa, era
possível constatar um traço comum a todas: que em seus períodos de declive se produzia, no centro hegemônico de
cada época, um deslocamento do capital
comercial e produtivo para o capital financeiro (isso aconteceu com Gênova,
Holanda, Grã-Bretanha e, atualmente, com Estados Unidos que, segundo Arrighi,
constituem os quatro ciclos de acumulação que definem o percurso histórico da
economia-mundo capitalista). Traço mais que interessante – aquela condição de
hegemonia financeira nas épocas de decadência, em cada etapa do capital – que
nos permite antecipar a crise, talvez terminal, do ciclo dominado pelos Estados
Unidos. É como se no corpo imaterial do
capitalismo já estivesse escrito, desde seus começos no século XVI, a
significação decisiva da financeirização como núcleo último de seu
desdobramento histórico e como marca de sua condição crepuscular.
Claro que, e nisto
é preciso dar razão a Berardi, o nível de predomínio do capital financeiro
na atualidade é esmagador e constitui o eixo central da acumulação
contemporânea, até praticamente reduzir a produção de objetos materiais ou
imateriais à periferia na busca de rentabilidade. O semiocapitalismo se
tornou o ponto máximo de abstração do capital, impactando direta e
fulminantemente sobre indivíduos que vivem, cada vez mais, no interior de
realidades virtuais e sob o signo da desmaterialização
dos vínculos intersubjetivos.
Berardi acrescenta que a depredação do mundo real se
tornou possível, em toda a sua extensão, no exato momento em que o capital pôde prescindir da produção de
coisas úteis para se centrar, quase com exclusividade, na dimensão abstrata da
circulação e investimento monetário. “A separação do valor de um
referencial conduz à destruição do mundo existente” (pág. 178). O domínio da
abstração generalizada como traço decisivo da etapa neoliberal não só avança
sobre uma depredação do mundo real, como também deixa sem capacidade de
reflexão e, portanto, de crítica, a uma humanidade que é incapaz de compreender
os mecanismos que definiram uma atualidade demolidora, sobre a qual parece
impossível intervir em um sentido político.
Slavoj Zizek, por sua vez, também insiste neste caráter
desmaterializador e supostamente não ideológico do capitalismo contemporâneo,
um caráter que se torna indecifrável para o indivíduo presos nas volumosas, mas
invisíveis malhas do consumo e da virtualidade, a trama de dominação que segue
exercendo seu grande poder sobre os corpos e a natureza, ao mesmo tempo em que
promove uma “verdade-sem-significado”
que se adapta, sem inconvenientes, à era da digitalização e da comunicação de
massas.
Em Problema no paraíso. Do fim da história ao
fim do capitalismo [edição brasileira: Zahar, 2015], Zizek destaca que
talvez “seja aqui onde deveríamos localizar um dos principais perigos do
capitalismo: ainda que seja global e
abarque todo o mundo, mantém uma constelação ideológica stricto sensu sem mundo, privando a grande maioria das pessoas de
qualquer mapa cognitivo significativo. O capitalismo é a primeira ordem
socioeconômica que destotaliza o significado:
não é global em nível de significado. Além do mais, não existe nenhuma
‘cosmovisão capitalista’, nenhuma ‘civilização capitalista’ propriamente dita:
a lição fundamental da globalização consiste precisamente em que o capitalismo consegue se adaptar a todas
as civilizações, desde a cristã até a hindu ou a budista, do Oriente ao
Ocidente. A dimensão global do capitalismo só pode ser formulada em nível
de verdade-sem-significado, como Real do mecanismo global de mercado” (pág.
16). Essa destotalização do significado
corresponde ao abandono da ação reflexiva de parte de sujeitos carentes
daqueles instrumentos promovidos pela ilustração e que permaneceram como restos
arqueológicos de uma história vazia de conteúdo.
Há uma asfixia da compreensão que é proporcional à complexidade
tecnológica, a partir da qual se deslocam os infinitos fluxos
do capital financeiro pela abstração do éter informacional. É como se aquele sujeito da ilustração
tivesse se transformado em um INDIVÍDUO PASSIVO, que é falado por uma realidade
desmaterializada, na qual só parece imperar o reino da ficção e da
artificialidade. Nada permanece da aposta kantiana que postulava indivíduos
autônomos e soberanos. O
semiocapitalismo se move, sem inconvenientes, no interior de uma sociedade presa
nas redes do binarismo digital.
Bifo Berardi disse isto de um modo direto e preocupante:
“Hoje em dia, a tecnologia digital se baseia na inserção de memes
neurolinguísticos e dispositivos automáticos na esfera da cognição, na psique
social e nas formas de vida. Tanto
metafórica como literalmente, podemos dizer que o cérebro social está sofrendo
um processo de cabeamento, mediado por protocolos linguísticos imateriais e
dispositivos eletrônicos. Na medida em que os algoritmos se tornam cruciais
na formação do corpo social, a
construção do PODER SOCIAL se desloca do nível político da consciência e a
vontade, ao nível técnico dos automatismos localizados no processo de
geração de intercâmbio linguístico e na formação psíquica e orgânica dos
corpos” (pág. 34).
Fenomenologicamente,
isto pode ser observado nas estratégias desenvolvidas pelos meios de
comunicação na hora de construir dispositivos que operam sob a lógica dos memes
neurolinguísticos, aos quais Berardi
faz referência, buscando, justamente, saltar
a cristalizada capacidade reflexiva dos telespectadores ou dos usuários da
internet e de redes sociais, até atingir sua mais profunda sensibilidade, onde
as respostas se vinculam ao GESTO AUTOMÁTICO que se manifesta como um antes
e, por que não, como um bloqueador de qualquer ação argumentativa.
Mais adiante, e
seguindo sua desconstrução da era digital, Berardi
especifica melhor sua definição da atual etapa da sociedade dominada pela
confluência do semiológico e do financeiro: “Chamo de semiocapitalismo a atual configuração da relação entre
linguagem e economia. Nesta configuração, a produção de qualquer bem, seja
material ou imaterial, pode ser traduzida a uma combinação e recombinação de
informação (algoritmos, figuras, diferenças digitais). A semiotização da produção social e do intercâmbio econômico implica
uma profunda transformação no processo de subjetivação. A infosfera atua diretamente no sistema
nervoso da sociedade, afetando a psicoesfera
e a sensibilidade em particular. Por esta razão, a relação entre economia e estética é crucial para entender a atual
transformação cultural” (pags. 127-128).
A massa dos
cidadãos-consumidores se movimenta no interior deste processo de estetização do
mundo, que corresponde ao que Nicolás
Casullo chamava de “culturalização
da política”, perspectiva que nos leva diretamente à influência decisiva que se estabeleceu entre as esferas da linguagem e
da economia no interior do semiocapitalismo, uma categoria perturbadora que
busca decifrar a fabricação de subjetividade e os novos dispositivos da servidão voluntária, que já não se desdobra
na dimensão exclusiva da imagem, mas penetra nos interstícios da linguagem até
atingir seu núcleo mais profundo e inconsciente. Os sujeitos sujeitados no interior desta lógica do capital são, agora,
falados por esta configuração feita de algoritmos, figuras e diferenças
digitais. A armadilha já foi construída e caímos em suas redes. Seremos
capazes de romper seus nós?
Artigo traduzido do espanhol pelo Cepat. Acesse a versão original deste
artigo, clicando aqui.
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