Como salvar a frágil democracia brasileira
NAS TRINCHEIRAS DA RESISTÊNCIA
Os limites da democracia brasileira
Cândido
Grzybowski
Sociólogo
e assessor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
«O pessimismo da racionalidade não deve subjugar o
otimismo da vontade...
Temos de extrair o bom senso do senso comum que está aí
a nos emparedar»
O
golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita em 2014,
revelou as contradições e os limites da Constituição de 1988 e do processo de
democratização no Brasil. O golpe é, de
certo modo, o desfecho de uma democracia que vinha perdendo intensidade ou, de
outro modo, que não havia conseguido superar suas contradições de origem.
Ao mesmo tempo, o golpe, ao inaugurar um novo período político, aguçou as
contradições anteriores e criou novas, que passaram a corroer o que ainda resta
de democracia.
Estamos diante de uma
questão de disputa de HEGEMONIA POLÍTICA – de coalizão de forças capaz de gerar poder político e imprimir direção – na
sociedade brasileira. Como ponto de partida de minha análise, é fundamental identificar e qualificar o
que estava e ainda está em disputa de forma capaz de aglutinar a sociedade em
blocos. Considero que se trata de disputa de hegemonia por ter tal
capacidade aglutinadora no seio da sociedade, nos imaginários sociais, na
mídia, nas organizações e movimentos, nos partidos. Claro, as disputas
políticas na sociedade são muitas e diversas, não podendo ser reduzidas a uma
disputa de hegemonia do poder político em dado momento histórico. Considero
estratégicas as muitas lutas e debates emergentes, mas por questão de espaço de
análise neste artigo limito-me à luta por hegemonia política no contexto
democrático, sabendo que ela é apenas um elemento indispensável, mas longe de
responder a tudo.
Em
termos simples, qualifico a conquista da
democracia nos anos 1980 como alternativa à ditadura na promoção do
desenvolvimento capitalista no Brasil, e não como alternativa ao próprio
capitalismo. Ou seja, gestou-se um poderoso movimento de cidadania que
contribuiu decisivamente para o fim da ditadura e para instaurar uma regulação
democrática do capitalismo e seu desenvolvimento entre nós. O mal maior a superar, naquele momento, era
o capitalismo selvagem identificado com a própria ditadura militar e seu
projeto de Brasil potência a pau e fogo.
Com
a democratização, a disputa de hegemonia se deslocou e
passou a se configurar de outro modo:
* de um lado, o conjunto de sujeitos coletivos que
busca a radicalização da democracia
com mais e mais direitos de cidadania, com enfrentamento das exclusões sociais,
injustiças, racismo, patriarcalismo e a enorme desigualdade social, com um
Estado mais republicano e indutor de um desenvolvimento capitalista inclusivo,
com geração de empregos e distribuição de renda; e,
* de outro, o conjunto dos sujeitos coletivos que pensam
e desejam uma democracia mais formal e uma cidadania sobretudo eleitoral,
com um Estado a serviço do desenvolvimento, mas não seu indutor, com menos
interferência na economia e mais liberdade ao mercado, tudo visto como
condições para o investimento capitalista e a acumulação privada, capaz de
gerar empregos e, consequentemente, com o possível crescimento do bolo,
aumentar o consumo e o bem-estar de todos.
DEMOCRACIA À BRASILEIRA Ilustração de Cau Gomez |
Apesar
de a questão da hegemonia estar apenas esboçada, identifico alguns momentos fortes
de tal disputa desde o fim da ditadura militar no Brasil. No entanto, como não
pretendo fazer a história da democratização, limito-me a chamar atenção para
alguns elementos, sem pretensão de esgotar a análise. Partindo do momento que
estamos vivendo, com o aguçamento das contradições nele presentes, vou
“escavar” o que está por trás e o que já passou, para melhor avaliar o que precisamos fazer hoje para
revitalizar e radicalizar a democracia, desta vez como alternativa ao
capitalismo globalizado, forte em nosso seio, que nos está levando à barbárie.
Golpe
da cleptocracia
Creio
que não preciso aqui, em nosso Le Monde
Diplomatique Brasil, explicar por que o governo Temer nasceu praticando um
golpe na institucionalidade democrática, com a conivência do Judiciário. Basta
dizer que o golpe contra o governo Dilma
se situa no limite de uma ruptura perigosa no que defini anteriormente como a
disputa hegemônica no processo de democratização. Do golpe à volta ao
autoritarismo é um passo. Não é de ficar surpreendido com a legitimação de
atores e vozes autoritárias neste momento que, aliás, apoiaram desde a primeira
hora o golpe e a volta do autoritarismo militar, inclusive com bandeiras nas
grandes mobilizações ocorridas em 2015 e começo de 2016.
Deixo
de lado tal questão e vou direto ao que o golpe significa. Talvez a melhor definição para o governo Temer seja que estamos diante
de uma CLEPTOCRACIA escrachada –
segundo o dicionário Houaiss, trata-se de regime político-social em que
práticas corruptas são admitidas e consagradas. O presidente lidera a lista
dos fortemente envolvidos em corrupção. Oito ministros acusados de corrupção o
secundam. Sua base parlamentar é liderada e composta por um bando de corruptos.
Os partidos da base do governo no Congresso Nacional têm em comum, como liga
que os une, a prática da corrupção e a busca de medidas legais para se livrar
de possíveis investigações e condenações. Não vale a pena seguir a lista de
escândalos e da pequenez política dos cleptocratas, pois isso é de conhecimento
público.
Como foi que corruptos de
tal quilate armaram o golpe… e, o que é mais incrível, em nome do combate à
corrupção dos governos petistas?
Aí
é que entra a disputa de hegemonia.
A Lava Jato e a percepção criada na
sociedade sobre ela foram muito importantes. Para o golpe, porém, fundamental foi o papel da GRANDE MÍDIA, negócio
privado e monopolista. Aí começamos a identificar o PRIMEIRO DÉFICIT – melhor, talvez, CONTRADIÇÃO
– da democratização ocorrida. Não enfrentamos o poder privado e a
mercantilização da comunicação, que afeta de morte a informação, a
imaginação e a cultura, bens comuns fundamentais para a radicalização da
democracia.
O OUTRO DÉFICIT fundamental foi não ter criado uma blindagem da política, outro bem comum essencial
na democracia, de sua mercantilização
ou, de outro modo, dos negócios empresariais que, para prosperar, corrompem a
política em busca de favores. Ampliamos a cidadania política de forma
abrangente – acabamos, por exemplo, com a vergonhosa exclusão do direito de
votar e ser representados dos analfabetos e estendemos o direito de votar à
faixa dos 16 aos 18 anos –, mas não
livramos a cidadania da manipulação de partidos e campanhas eleitorais pelos donos
de capital.
O
golpe do impeachment se fez à base de
corrupção e traições, numa negociata envolvendo financiamentos e partilhas com
partidos e deputados migrando da coalizão com a presidenta Dilma para uma
outra, sob liderança do vice Temer, do PMDB. Aqui está o TERCEIRO DÉFICIT fundador de nossa democracia: a conciliação como estratégia de conquista
do poder político e da governabilidade, formando maiorias nada programáticas e ideologicamente articuladas. No
Executivo e nos parlamentos forjam-se maiorias com compra de lealdades
momentâneas e loteamento do Estado. A negociata foi a tal “agenda de reformas”,
com garantia de limitar as investigações de corrupção. As reformas são, na verdade, um desmonte da Constituição de 1988 e de
direitos conquistados e consagrados. Ela já avançou perigosamente e talvez
já destruiu o essencial em termos de uma democracia que mereça tal nome. Tudo vem sendo feito em nome de um projeto
de futuro que nos remete ao capitalismo selvagem. Não se trata somente de
menos Estado, mas de um Estado forte
para favorecer as forças brutas do mercado, contra direitos. Sei que a
afirmação é forte, mas precisamos
encarar as mudanças em curso como estratégias que podem levar a uma instauração
do fascismo… por via democrática, como foi na Alemanha com Hitler e na
Itália com Mussolini.
LULA & MICHEL TEMER Política da conciliação, sem tocar nas causas das injustiças sociais brasileiras Foto: Ricardo Stuckert - Instituto Lula |
No
momento em que escrevo este texto, o governo Temer resiste na corda bamba, por
causa das graves denúncias contra o presidente e seus mais próximos apoios no
Palácio e no Congresso. A grande mídia já está caindo fora, especialmente a
Globo. A tal base no Congresso é muito gelatinosa e pouco confiável, sem
consistência programática, como o próprio governo, só oportunismo político e
preocupação em preservar os mandatos conquistados, nada representativos da sociedade,
mas fiéis aos financiadores eleitorais. Ou seja, estamos diante de algo de fachada, de institucionalidade legal, mas sem
legitimidade democrática ou poder real. São outros, nada ou pouco visíveis,
que impuseram a “agenda de reformas”, utilizando-se do governo fantoche que
temos. O pós-Temer poderá ser uma inversão de tendência ou algo pior ainda.
Limito-me
a sinalizar estes pontos e vou para o outro momento ou nível de análise. Não é
um bando de corruptos que tem projeto, ele é somente pago para executá-lo. Quem está por trás? Qual é sua
capacidade em impor a tal agenda ao país, base para nos levar a um gigantesco
retrocesso e até ao fascismo, ou, como afirma Boaventura de Sousa Santos, a uma
democracia fascista, se é que tal híbrido é possível inventar?
As forças e os interesses que sustentam a volta
de um capitalismo selvagem e a inserção submissa na globalização
Volto
ao que já escrevi há pouco. O golpe do impeachment
não só revelou uma conjuntura de grande mudança na correlação de forças
políticas no Brasil, mas também trouxe com ele um projeto de arquitetura do
poder de Estado que restringe seu poder garantidor de direitos democráticos de
cidadania para todas e todos, amplia seu poder repressivo em nome da “ordem e
progresso”, renuncia ao seu poder de regular o desenvolvimento e abre espaço à expansão das forças brutas do mercado.
Trata-se de um “Estado
mínimo” do ponto de vista democrático e de um “Estado
fortaleza”, beirando o fascismo, para garantir privilégios de classe da
nossa velha oligarquia capitalista. O projeto visa a uma mudança mais
duradoura para que a assimetria do poder em favor das classes abastadas não
seja ameaçada novamente, por isso o esforço de fazer o mais rápido possível as
tais reformas constitucionais ou, se Temer cair, zelar por um substituto que
leve a tarefa a cabo.
O
poder formal está, por enquanto, nas mãos da cleptocracia. No entanto, o poder real está sendo exercido pelo
“senhor mercado”. Mas quem é esse tal senhor?
De
maneira simples, podemos defini-lo como
aquele 1% de privilegiados porque donos de
vultosos capitais, empresas e conglomerados, proprietários de terras e de bens,
banqueiros e especuladores. O “senhor mercado” tem seus analistas e
ideólogos, estrategistas e gestores fiéis, além da grande mídia para o trabalho
de convencimento e criação do senso comum sobre o bem e o mal. É incrível que
tal sujeito abstrato – “o mercado” –, um verdadeiro feitiço que se mede por
valores monetários milionários e até bilionários, com consumo suntuoso em ilhas
fortalezas em nossas cidades, tenha tanto poder de sedução e indução, sem outra
motivação que não sua própria acumulação. Para crescer e acumular, todos os meios
são possíveis, legítimos e ilegítimos. Em
sua visão, o poder estatal e as leis devem estar a seu serviço, caso contrário
tudo se faz para mudá-los ou, então, contorná-los pela fraude, corrupção e
paraísos fiscais.
A
“agenda de reformas” formulada pelo gerentão
de banco, ministro Meirelles, tem em seu DNA o sentido único e certeiro de
adequar o país, especialmente o principal instrumento de fazer política do
Estado, que é o orçamento, para limitar
gastos com direitos sociais (em seu sentido amplo), vistos como desperdício, para assim priorizar o mercado e a acumulação
– na verdade, favorecer os lucros de
banqueiros e especuladores sanguessugas da dívida pública, alimentada por
uma política de juros beirando a
agiotagem oficial.
HENRIQUE MEIRELLES Desde o governo Lula, agora com Temer, garantindo o sistema que agrada ao capital financeiro nacional e internacional |
Um
elemento adicional do projeto de Estado dos donos reais do poder é a volta de uma inserção submissa no capital
globalizado. Nada de veleidades como Mercosul, Unasul, Brics, relações
Sul-Sul. Querem mostrar que são amigos
fiéis e subservientes da potência maior, os Estados Unidos. Será que o
nacionalismo conservador de Trump quer isso? Na realidade, a globalização
capitalista parece caminhar no sentido de desenhar uma espécie de geopolítica
regional. Logo agora que os donos do poder por trás do golpe renunciam a ser
potência regional? Por quê? Nossa sorte é que eles também têm um calcanhar de Aquiles com seu capitalismo selvagem,
extremamente dependente de extrativismo mineral e do agronegócio [aliás, são estes dois setores que estão comandando a
economia brasileira juntamente com os bancos].
A favor dos donos reais do
poder no Brasil é a conjuntura mundial de perda de vitalidade da democracia por
toda parte e a volta de uma agenda reacionária e conservadora. Ou seja, eles não são uma
exceção; embarcam numa onda maior de encurralamento das democracias reais e de
redução de direitos. A onda do
conservadorismo está associada:
* ao aumento de visões nacionalistas estreitas e controle de migrações,
* de mais intolerância,
* de fundamentalismos e
* de racismo pelo mundo.
Enfim,
nosso golpe tupiniquim se dá numa conjuntura em que muitos golpes contra a
democracia estão acontecendo pelo mundo. Será que a globalização capitalista,
hoje radicalmente financeirizada, portanto não produtiva, saberá se reinventar
sem levar o planeta Terra a uma desastrosa crise que escapa ao controle e dá
lugar à mais pura barbárie? O incrível é que isso já está ocorrendo de forma
radical no Brasil.
Rupturas
do pacto democrático ou limites da própria democracia conquistada nos anos
1980?
Saímos
da ditadura por meio de muitas trincheiras abertas pelo novo sindicalismo e
pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pelos novos movimentos sociais,
pelas comunidades eclesiais de base (CEB’s), pela Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) liderada por Raimundo Faoro e pela frente democrática, entre outros, que
desembocaram no movimento da Anistia
e, depois, no Diretas Já. O pacto
democrático se esboçou naquele acórdão da Aliança
Democrática, liderado por Tancredo e Sarney para ganhar a eleição indireta de
presidente no Congresso Nacional, ainda no contexto da ditadura militar. Foi como juntar o lado menos radical dos
democratas com o lado menos radical dos autoritários. Deu na Nova República, quase natimorta, pois o representante mais democrata, Tancredo, não tomou posse e veio a
falecer. Seu vice, Sarney, saído
do seio da ditadura e tornado democrata de ocasião, virou nosso presidente.
Vicissitudes da vida, mas bota azar nisso! O fato é que essa se tornou a pedra
fundamental do edifício democrático que acabamos construindo. Pedras
fundamentais são apenas pedras, sinais de algo por fazer, que muitas vezes
nunca acontece. Mas, no caso da Nova República…
A convocação de uma
Constituinte fazia parte do tal acórdão. Ela foi feita, mas não na forma demandada pela
cidadania de uma Assembleia Constituinte exclusiva, e sim de uma Assembleia formada pelos deputados e
senadores eleitos em 1986, somados aos senadores eleitos em 1982, ainda em
plena ditadura. Como a Nova República nasceu como transição e não como ruptura,
a Constituinte acabou tendo uma
hegemonia do pensamento conservador, já que as mesmas regras de eleição da
ditadura determinaram a conformação do Congresso virado Constituinte. Isso deu
origem ao “Centrão”, em que tudo cabia, mas a liga era a linha extremamente
conservadora e a favor do “mercado”, muito semelhante à tal base do Temer no
Congresso hoje.
A
contradição de origem acabou moldando uma Constituição híbrida, extremamente
contraditória em seu âmago. Graças à
pressão popular, de uma sociedade organizada e participante, a Constituição
aprovada em 1988 incorporou o essencial das emendas populares em termos de
direitos sociais e do valor da dignidade humana – especialmente seguridade
social, saúde e educação – mais o Código do Consumidor, erradicação da pobreza
e meio ambiente. Porém, deixou de fora
tudo o que diz respeito à economia e ao desenvolvimento, tributação mais justa,
reforma agrária e imobiliária urbana. Um aspecto fundamental, hoje pouco
lembrado, é que a Constituição de 1988 não reformou a política elegendo-a como bem comum
democrático essencial. Destaco aqui a falta de uma blindagem da política
aos interesses patrimonialistas e à mercantilização, deixando-a mais dependente
de negócios do que de cidadania, em sua diversidade. Já sinalizei anteriormente
os grandes déficits de nossa Constituição, pacto democrático importante naquele
momento histórico, mas não renovado e radicalizado nos trinta anos que nos
separam dele.
ULYSSES GUIMARÃES - Presidente da Constituinte de 1988 - mostra o exemplar oficial da nova Constituição brasileira |
O
espaço aqui não me permite aprofundar a questão. O fato é que deixar a economia
de fora de uma leitura e regulação democrática sobre ela deixou nossa
Constituição de 1988 com uma contradição monumental para o futuro democrático
do Brasil: direitos sociais de cidadania de feição mais para a radicalização da
democracia e falta de regulação radical
da economia como condição para o Estado democrático garantir tais direitos
sociais. Os momentos de democratização que se seguiram à Constituição de
1988 se configuraram como formas em que tal contradição foi vivida. Nos termos
em que aqui estou analisando, isso conformou a disputa de hegemonia dos últimos
trinta anos no Brasil.
Em meu modo de ver, gestamos uma democracia limitada nela mesma, sem condições
constitucionais para rupturas de fundo com um capitalismo patrimonialista, destruidor
e excludente, machista e racista, gerador de muita desigualdade.
Seria
necessário analisar os momentos, diversos e muito contraditórios, que fizeram a
história real e ligam a Constituinte de 1988 ao que acontece hoje. Tivemos o
ajuste estrutural e seu impacto interno, antidemocrático em sua essência,
passando por Sarney e seus planos econômicos, o aventureiro Collor, o interino
Itamar, o Plano Real e a doma da inflação com Fernando Henrique Cardoso (FHC) –
aquele que pediu que se esquecesse seu passado de pensador da teoria da
dependência –, que apostou no neoliberalismo e, a bem da verdade, na submissão
à nascente globalização. Tivemos os
treze anos de Lula-Dilma, com suas políticas distributivas e avanços em
direitos sociais, mas sem enfrentar e transformar os tais fundamentos da
economia. Foram anos importantes em termos de distribuição de renda – sem tocar na riqueza e acumulação – e inserção no consumo de amplas
camadas excluídas e pobres, sem mudanças estruturais para dar sustentabilidade
e mais democracia. Estimulou-se a participação democrática, sem transformar a
cidadania ativa em força de mudança da própria política como desenhada pela
Constituição de 1988. Com um “reformismo
fraco” (André Singer), avançamos sem
mudar o essencial. O resultado está aí: numa penada as conquistas estão indo para o ralo.
Estou
somente esboçando os pontos e sei que tal análise é insuficiente, mas
precisamos fazê-la para que nas trincheiras de resistência de hoje possamos
reinventar a democracia em novas bases.
O fato é que
ninguém, nos vários momentos políticos que vivemos, enfrentou a contradição
original do pacto democrático conciliador e propício a ser corrompido. Os governos petistas renunciaram a ser isso, mesmo que a cidadania
esperasse tal vontade política de Lula, em particular na questão da disputa de
hegemonia.
Os
outros nem mesmo se propuseram a enfrentar o dilema de base da Constituição.
Agora, porém, com o golpe da cleptocracia e a tal “agenda de reformas”, o
impasse está sendo de algum modo resolvido, mudando a Constituição para bem
pior. Ou seja, estamos num momento em
que está sendo mandado às favas aquele pacto democrático capenga que, bem ou
mal, nos dava alegrias cidadãs.
No
entanto, as possibilidades sempre continuam abertas
É
assim que vejo os limites da democracia entre nós. Mas a história não acabou.
Analiticamente, parece difícil sairmos da atual encrenca e voltar a sonhar com
democracia. No entanto, o pessimismo da
racionalidade não deve subjugar o otimismo da vontade, como nos ensinou Gramsci. Devemos apostar no que nossa
cidadania sonha e deseja, uma sociedade democrática, justa, vibrante, boa para
todo mundo, dançante de alegria, como é próprio de nossa cultura comum. A possibilidade não virá por si só, pois
ela nunca é uma espécie de inevitável histórico. Ela se forja no devir, ela
se faz na história, na resistência e na ousadia da ação, enfrentando as
relações contraditórias para nós e, não esqueçamos, para os que combatemos.
Acreditar na experiência e na força que adquirimos no processo de
democratização, em nossas ideias e, sobretudo, em nossa capacidade. O que mais
ganhamos em trinta anos de Constituição foi aperfeiçoar nosso ativismo cidadão.
Claro, no momento estamos perdendo com o descrédito
na política, que se alastra perigosamente. Afinal, somos uma potencial
maioria. Temos de extrair o bom senso do
senso comum que está aí a nos emparedar, como nos ensinou Gramsci. Outro
Brasil e outro mundo sempre são possíveis. Saídas existem, precisamos achá-las
e construir o caminho.
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