Desconstrução Judaica
Livro examina dez autores que desconstruíram a
cultura judaica
Moacir Amâncio*
Professor
do Departamento de Letras Orientais
FFLCH-USP
Desde o século 17, nomes como Espinosa e Kafka
contribuíram para
o esfacelamento dos conceitos essencialistas do
Ocidente
LUIS SERGIO KRAUSZ |
Santuários Heterodoxos, de Luis Krausz, é um livro sobre a crise que começou a destruir
conceitos essencialistas na cultura ocidental e no mundo judaico europeu de
modo particular, com o abalo das
estruturas religiosas, a tentativa
de adesão ao mundo laico e o resultado disso. O autor selecionou dez escritores, entre memorialistas e
ficcionistas, e examinou cada um e sua época, desde o século 17, quando
dois grandes sinais dos tempos se anunciaram. Um na Turquia, onde o judeu
otomano Shabtai Tsvi (1626-1676) se
lançou como o messias, provocando uma tempestade pelo mundo judaico. Multidões
aderiram a ele como solução redentora, para se frustrarem profundamente quando
Shabtai se converteu ao islamismo. Outro foi o filósofo Espinosa (1632-1677), com a crítica à Bíblia e o panteísmo
que lhe custaram a excomunhão, por heresia, da sinagoga portuguesa de Amsterdã
– ele é visto como um precursor do
laicismo judaico e dos transgressores mais tarde rotineiros.
MOSES MENDELSSOHN |
Cerca
de cem anos depois disso, o filósofo
Moses Mendelssohn (1729-1786) iniciaria, a partir da Alemanha, o movimento
da Hascalá (Instrução), seguido por
intelectuais judeus de vanguarda, que proporia
inovações reformistas no campo religioso e a inserção das massas judaicas na
cultura europeia, com as polêmicas internas previsíveis a partir do mundo
tradicionalista. Mais a desconfiança e o ódio provenientes do antissemitismo. Funções e papéis estabelecidos estremeciam
ou se desfaziam no cenário da revolução industrial. E como essas pessoas
ficariam nos mapas dos Estados nacionais? Uma proposta tem origem napoleônica:
a inclusão dos judeus entre os cidadãos do país. No Império Austro-húngaro o
projeto “emancipador” explicitou-se de maneira dúbia, propunha-se como
“solução” e ao mesmo tempo impunha restrições aos cidadãos judeus. Algo
falsamente simples, um sério problema no dia a dia judaico e novo fator de
estranhamento na atmosfera refratária ou abertamente hostil: como ser judeu dentro de casa e cidadão
comum na rua? Na tradição, um não difere do outro. A conversão por convicção ou conveniência ao cristianismo era sempre
uma possibilidade problemática e sem garantia.
Dilemas,
contradições produzidas por essas mudanças e atritos são vistos nesse livro
através da obra de Jacob Wasserman, Kafka, S.Y. Agnon e Singer, que
se tornaram referências mundiais. Mas a lista começa numa senhora chamada Glückl Von Hameln, de Hamburgo, não tão
conhecida, que já fugia aos padrões
comportamentais nos primórdios desse processo, inaugurando a expressão da
perspectiva e da subjetividade feminina entre os judeus. Essa mulher de negócios viveu entre 1645 e 1724 e registrou sua
trajetória num diário em iídiche germânico somente publicado em 1892. Uma precursora da efervescência literária
em iídiche e também em hebraico, a partir da primeira metade do século 18,
quando começou a surgir uma literatura que se tornaria completa: com ficção,
poesia, jornalismo, tradução.
Nessa
linha, outra grande personalidade irrequieta foi a missivista Rahel Varnhagen (1771-1833), que
conviveu com as filhas de Mendelssohn, filósofos e escritores, inclusive em
Paris, e assumiu suas inspirações e vontade. Foi amiga do poeta Heinrich Heine, para quem, não obstante a
exuberância, ela encarnava a chamada “dor judaica” sob o signo da personalidade
dividida no cenário desconfortável. Figura também exemplar e trágica na
experiência da divisão entre o mundo judaico e o não judaico exposta ao
antissemitismo foi o financista Josef
Suss Oppenheim (1698-1738), administrador do duque Karl Alexander, a quem
serviu de maneira submissa, e com alta competência, até a morte do
patrono-déspota, quando seus inimigos acabaram levando-o ao enforcamento numa
gaiola onde o cadáver ficou exposto durante seis anos. O grotesco da cena é
apenas mais um requinte antissemita. Ele é a personagem de Judeu Suss, obra que Lion
Feuchtwanger publicou em 1925 – essa tragédia judaica emerge como uma
alegoria atemporal sobre a tentativa de integração ao universo europeu.
Aí
está o fio condutor desses ensaios. A viagem passa, claro, por Franz Kafka e O Castelo. Se o escritor checo é o grande intérprete da anulação do indivíduo, fim do sonho romântico
diante do sistema, na perspectiva judaica ele também pode ser isso entre
muitas outras coisas. Suas metáforas, universais, transcendem os motivos talvez
imediatos, mas esses motivos tornam-se gritantes quando vistos sob aquele
ângulo. O não sentido, o absurdo
detectado pelo escritor mostra-se autoirônico.
Do choque entre a certeza
ilusória da tradição e a atualidade incerta sobram interrogações, sintetizadas
em outro escritor excepcional, S.Y.
Agnon (Nobel de 1966). Nascido na Ucrânia em 1888, ele viveu na Alemanha
durante a 1.ª Guerra Mundial e depois se radicou no território do futuro Israel
até a morte em 1970. Sua obra, entre as mais expressivas do século 20, está
escrita em hebraico o romance escolhido foi Hóspede
por Uma Noite (Perspectiva), no qual o autor encena o seu tema principal: o impasse entre a nostalgia e a incógnita
herética dos novos tempos na época anterior ao ponto culminante do processo
ensaiado por séculos que foi o extermínio industrial dos judeus, a Shoá (Holocausto). A sequência, à
primeira vista errática, revela-se terrivelmente lógica.
L I V R O
Título: Santuários Heterodoxos
Autor: Luis
S. Krausz
Editora: Edusp (Editora da USP)
Páginas: 264
Preço de capa: R$ 32,00
*
Moacir Amâncio
é autor dos livros «Matula» (Annablume), «Ata» (Record) e «Yona e o Andrógino -
Notas sobre Poesia e Cabala» (Nankin/Edusp).
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