Está difícil “esperançar”

 Educação em tempos bolsonarísticos

 Renata Cafardo

Repórter especial do jornal “O Estado de S. Paulo” e fundadora da Associação de Jornalistas de Educação (JEDUCA) 

O Brasil deixou as escolas fechadas por mais tempo, não aumentou seus investimentos em educação durante a pandemia e ainda tem o pior piso salarial do professor

PAULO FREIRE: 1921 - 2021 - Centenário de nascimento

Mesmo em dia de centenário de Paulo Freire, fica difícil “esperançar”, como dizia o educador. Relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgados na semana passada mostram que:

a) o País deixou as escolas fechadas por mais tempo,

b) não aumentou seus investimentos em educação durante a pandemia como outras nações e

c) ainda tem o pior piso salarial do professor. 

Somam-se a essas novas constatações outros alertas dados o ano todo:

* sobre prejuízos de aprendizagem das crianças brasileiras que nos farão andar décadas para trás.

* Sobre os milhões de estudantes que não tiveram nenhuma atividade escolar, online ou presencial, durante a pandemia.

* Sobre as meninas e os meninos que desistiram da escola, mesmo remota, para trabalhar. 

MILTON RIBEIRO: pastor presbiteriano e atual Ministro da Educação

Mas o insensível ministro da educação e pastor Milton Ribeiro não está preocupado que o Banco Mundial diga que o desenvolvimento econômico do Brasil será muito prejudicado por causa da situação atual. Ao contrário, enfureceu-se semana passada por ter “jogado no lixo” o dinheiro que colocou no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para pagar isenções de estudantes carentes que acabaram faltando à prova por causa da covid, em janeiro. Negou-se a dar gratuidade novamente a eles, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou que o fizesse. Ribeiro então achou por bem humilhar mais um pouco os já humilhados jovens que nem sequer podem pagar R$ 85 para fazer o Enem. 

Enquanto isso, durante a pandemia, países como Portugal e França contrataram milhares de professores para ajudar no enfrentamento da covid nas escolas, tanto para substituir os afastados como para dividir turmas. Aqui, o Ministério da Educação de Jair Bolsonaro parece que não tem nada a ver com o professorado. Só aparece para criticar quando acredita que, por não jogarem pedras em Paulo Freire, estão todos querendo manipular a cabecinha de seus alunos para a esquerda. 

O relatório da OCDE mostrou que o Brasil paga um piso salarial equivalente a 13 mil dólares norte-americanos anuais, enquanto na Alemanha são US$ 70 mil. Chile e Colômbia também tem melhores salários: US$ 20 mil anuais. A pandemia ainda exigiu desafiadoras aptidões dos trabalhadores mais mal pagos entre os 40 países estudados. Tiveram de aprender a ensinar pelo celular. E com os pais ao lado, alguns reclamando da aula, metendo o bedelho, dizendo que a prova está difícil. 

O Brasil deixou suas escolas fechadas por mais tempo, 178 dias! Enquanto que a média de dias fechados nos 40 países que a OCDE pesquisou foi de 48 dias

A maior crise educacional recente não foi suficiente pra que o governo brasileiro acreditasse que era preciso investir mais na área:

a) Houve cortes nas universidades federais, que já tinham seus orçamentos reduzidos e trabalharam em pesquisas sobre covid.

b) Com muito atraso, o MEC apresentou apenas parcos programas de ajuda às escolas públicas no período.

Segundo a OCDE, dois terços das nações aumentaram seus investimentos em educação durante a pandemia. 

Por aqui, preferimos deixar as escolas fechadas por 178 dias – outro recorde mundial – e torcer para que tudo voltasse ao seu rumo quando a tempestade passasse. Em setembro de 2021, ainda há cidades que não abriram um só dia sua educação desde março de 2019. 

Está óbvio que países que já tinham a educação de pior qualidade, não só vão aumentar essa desigualdade como também a distância que estavam das nações desenvolvidas. No Pisa, o exame internacional feito pela OCDE, os estudantes brasileiros já não chegavam nem perto do desempenho da média dos colegas de outros países. 

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”

Paulo Freire, 100 anos.

 

No centenário de Paulo Freire, Universidade de Columbia anuncia eventos

 Renata Cafardo 

Universidade em Nova York vai destacar obra de brasileiro, pioneiro em temas atuais como equidade, gênero e educação antirracista

UNIVERSIDADE COLUMBIA, em Nova York, Estados Unidos, promove uma série de eventos e concede apoio financeiro para pesquisas e debates sobre o pensamento de Paulo Freire

Aos 100 anos, Paulo Freire é atual. Com essa convicção, uma das maiores universidades do mundo, a Columbia, em Nova York, anuncia hoje [19 de setembro], no centenário do educador brasileiro, uma série de eventos e incentivos para pesquisa sobre o seu trabalho. “Equidade, educação antirracista, gênero, a preocupação com diferentes camadas de opressão e exploração são temas com muita força na academia atualmente. E foram explorados há muitas décadas por Freire”, diz o professor de Columbia Paulo Blikstein, que é brasileiro. 

Ele é um dos idealizadores da Paulo Freire Iniciative, organizada pelo Teachers College, pelo Centro Lemann e pelo Institute of Latin American Studies (ILAS), todos de Columbia. No texto que apresenta a iniciativa, ao qual o Estadão teve acesso com exclusividade, a universidade americana lembra que Freire tem “um legado impressionante” que ajudou a promover “equidade e justiça social, missões alinhadas com as da Columbia”. 

Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, no Recife, e passou a vida defendendo uma educação que transformasse o mundo. Criou um método de alfabetização de adultos, que deu certo em Angicos, Rio Grande do Norte, mas logo foi perseguido pela ditadura militar e teve de deixar o País. No exílio, suas ideias se espalharam e começou a consagração internacional. Voltou ao Brasil em 1979 e foi secretário de Educação na Prefeitura de Luiza Erundina. Freire foi um dos pioneiros de uma pedagogia crítica, preocupada em formar cidadãos. 

Um dos livros mais lidos, citados e comentados de Paulo Freire

Seu livro Pedagogia do Oprimido, de Freire, é o terceiro mais citado de todos os tempos em pesquisas da área de ciências sociais. Mais até que A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Freire morreu em 1997, aos 75 anos. 

Por ignorância ou desconhecimento, o mais célebre educador brasileiro foi associado em tempos de bolsonarismo ao comunismo ou a uma educação partidária. Tornou-se um dos principais alvos de ataques de grupos de apoio, ministros da Educação e do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.

A Universidade Columbia vai financiar estudantes que queiram pesquisar sua obra. Segundo Blikstein, a ideia é criar uma comunidade, que não precisa ser só de brasileiros. Haverá também um trabalho de advocacy em outras instituições do mundo para manter vivo o trabalho do brasileiro. 

Os primeiros eventos serão em 3, 4 e 10 e 11 de novembro com nomes da cultura e educação brasileiros e estrangeiros que vão discutir o legado de Freire em vários aspectos. Ele será online e aberto ao público em geral. E a partir de 2022 todo dia 19 de setembro terá uma palestra especial em homenagem ao educador na Columbia. 

PAULO BLIKSTEIN - professor na Universidade Columbia, de Nova York, brasileiro de nascimento, é um dos idealizadores da iniciativa

“Num momento no qual o País se encontra tão polarizado, precisamos contribuir para que setores da sociedade brasileira compreendam que Paulo Freire é um intelectual sofisticado, com propostas concretas para a educação de crianças, jovens e adultos”, diz o aluno brasileiro de doutorado da Columbia, Danilo Fernandes Lima da Silva, de 34 anos, que também organiza a iniciativa. 

Blikstein diz que a ideia dos eventos e pesquisas não é apenas repetir as ideias de Freire.

“Ele sempre falava que ele não queria ser um fóssil, queria que o reinventassem, então é repensar, significar o que ele falou, mas antenado no mundo atual.”

A ideia dos organizadores é ampliar a iniciativa ao longo dos anos com mais seminários, publicações e bolsas de estudo. 

A neta de Paulo Freire, Sofia Freire, diz que está esperançosa por mudanças no País com a chegada do centenário do avô. Ela conta que, desde que voltou ao Brasil há três anos, depois de morar em Barcelona, convive com ataques a Freire. Sofia acaba de criar o coletivo independente Esperanzar (referência à palavra célebre do educador, que dizia que era preciso ter esperança e agir e, não, só esperar) para fomentar e assessorar ações transformadoras com movimentos sociais e atores culturais urbanos periféricos. 

Uma das iniciativas é um mural imenso em um prédio na Avenida Pacaembu, na zona oeste, com uma foto de Freire e a frase:

Esperançar: Amar é um ato de coragem.

A expectativa é de que a obra, feita pelo artista Raul Zito, fique pronta hoje. “Escolhemos uma frase amorosa, não queremos partir para o conflito. Queremos gerar emoção e, se der para partir para a ação, melhor ainda”, diz Sofia.

 

Paulo Freire não era comunista, era crítico, diz biógrafo

 O tiro saiu pela culatra

 Renata Cafardo 

Entrevista com Sérgio Haddad

Biógrafo de Paulo Freire 

De acordo com o pesquisador Sérgio Haddad, o educador era uma pessoa de esquerda, mas não se alinhava a nenhum governo autoritário

SÉRGIO HADDAD

O pesquisador Sérgio Haddad, biógrafo de Paulo Freire, acredita que os ataques que surgiram no governo de Jair Bolsonaro ajudaram a impulsionar a busca por conhecimento sobre o educador. 

Há um entendimento equivocado de quem foi Paulo Freire?

Sérgio Haddad: Tem muita desinformação na crítica, por exemplo, ele nunca foi comunista. Era, sim, uma pessoa de esquerda, estava do lado dos mais pobres, mas não se alinhava a nenhum governo autoritário, foi crítico com os comunistas. Mas há aqueles que não querem saber, criticam porque foi secretário do PT. 

Onde é possível ver Freire nas escolas atuais?

Sérgio Haddad: Nas escolas mais participativas, que trazem o conhecimento dos alunos para a sala de aula. Freire fala que se um professor passa um ano dando a sua aula e no fim ele é o mesmo, algo está errado. Esse estímulo a refletir no processo educativo é freireano. 

Livro publicado pela TODAVIA, em agosto de 2019 - obra fundamental para compreender a trajetória desse educador brasileiro, mais lido e pesquisado no exterior que no Brasil!

Os ataques o enfraqueceram?

Sérgio Haddad: Acho que a quantidade de eventos, de textos, que vem sendo feitos foi também muito impulsionada por essa conjuntura. Desde a campanha, com ministros da Educação atuais, foi surgindo um movimento em defesa do legado de Freire e de debate sobre seu pensamento e obra. Se ele estivesse vivo, seria uma voz muito forte para confrontar o que está ocorrendo. Ninguém é obrigado a gostar dele, mas respeitar seu reconhecimento internacional seria uma forma de respeito à ciência. 

O que será que ele diria sobre Bolsonaro?

Sérgio Haddad: Ele estaria muito bravo, estaria verbalizando uma raiva, mas também o “esperançar”. A importância de saber que o futuro não é inexorável. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – .Edu – Domingo, 19 de setembro de 2021 – Pág. A14 – Internet: clique aqui; aqui e aqui (Acesso em: 23/09/2021).

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