Refletindo sobre... o Diabo

 Demônio, inferno, homossexualidade: uma reflexão à luz do “caso Novell”

 José María Castillo

Religión Digital, 08-09-2021 

Não entendo por que, nem para que, existem líderes na Igreja que estão determinados a manter o diabo vivo e em ação

JOSÉ MARÍA CASTILLO, teólogo católico espanhol, com PAPA FRANCISCO

Primeiramente, um aviso: não falarei aqui do bispo de Solsona e seu comportamento (Nota: Xavier Novell, bispo de Solsona [Espanha], pediu renúncia do ministério, por questões pessoais. Posteriormente, foi revelado que Novell promoveu em sua diocese e participou de terapias de cura gay para reafirmar sua heterossexualidade. O motivo da sua renúncia, segundo informações publicadas pela imprensa espanhola, é o namoro com uma escritora). O que pretendo é lançar luz sobre três temas, que se mencionam frequentemente com motivo do que, segundo se diz, ocorreu com este bispo, seja qualquer for a responsabilidade que o prelado teve neste episódio. Nisto, atenho-me às duas excelentes cartas que publicaram os teólogos José Ignácio González Faus (artigo em espanhol acessível aqui) e Xabier Pikaza (artigo em espanhol acessível aqui). E sem mais preâmbulos, entro diretamente na explicação mais elementar do que aqui quero deixar claro. 
Pintura de Francisco Goya mostrando São Francisco de Borja executando um exorcismo

Demônio 

Em relação à conduta (verdadeira ou falsa) do bispo de Solsona, os meios de comunicação falam, com frequência, do “demônio”, do “satânico”, e dos remédios que se costumam usar para expulsar os demônios. Remédios que normalmente são os “exorcismos” e os que os administram, os “exorcistas”. Como é lógico, toda esta terminologia e seu conteúdo dependem da religião e sua linguagem.

Pois bem, hoje está bem demonstrado que o “demônio” – e tudo que é relativo a “demoníaco” – não provém da revelação de Deus ao povo de Israel.

Tudo isso do “demônio” e do “satânico” foram introduzidos na religião bíblica durante o desterro dos israelenses na Babilônia. Tanto o do “demônio” como o dos “anjos” aparecem como poderes espirituais que são poderes danosos ou prestam auxílio, que intervém no povo para o bem ou para castigar pelos seus bons ou maus comportamentos. Os estudos sobre esse assunto são abundantes e muito bem documentos (conferir: O. Böcher, em Diccionario Exegético del Nuevo Testamento, vol. 1, páginas 815-824, Ediciones Sígueme).

Empenhar-se em seguir mantendo o demônio, os exorcistas e seus exorcismos não é nada mais que a torpeza e a mentira com que se enganavam os “babilônios” de vários séculos antes de Cristo. E com o que muita gente de hoje ainda segue se enganando.

É verdade que o Código de Direito Canônico dedica um cânone (1172) aos exorcismos, considerados “sacramentais”, um ritual piedoso. Mas não mais que isso. Isso nem pertence à fé cristã. Nem há para acreditar em tal cerimônia. Não entendo por que, nem para que, existem líderes na Igreja que estão determinados a manter o diabo vivo e em ação. E aqui eu paro. Porque não quero falar do dinheiro que alguns exorcistas recebem dos ingênuos e dos pacientes que pagam o que pedem por um serviço supostamente religioso, que só serve para encher o bolso do exorcista. 

Inferno 

O inferno existe? Não existe uma “Definição Dogmática”, do Magistério da Igreja, que tenha afirmado que a existência do inferno é um “Dogma de Fé”. Não existe uma “definição dogmática” no Magistério da Igreja sobre este assunto. Os documentos mais importantes sobre a possível existência do inferno são:

a) uma Constituição de Bento XII, do ano 1334 (Denzinger - Hünermann, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, n. 1002 – Paulinas Editora e Edições Loyola, 2007).

b) E a afirmação genérica do Concílio de Florença (Denzinger - Hünermann, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, n. 1306 – Paulinas Editora e Edições Loyola, 2007), que repete o que já foi dito por Bento XII.

O que o Magistério ensina é que “as almas dos que morrem em pecado mortal estão condenadas”. Mas em nenhum documento oficial da Igreja foi definido que alguém morreu em pecado mortal.

Pela simples razão de que ninguém pode alegar (muito menos definir) que alguém (nem Judas) morreu em pecado mortal.

A Igreja não pode definir isso. Portanto, ela não pode definir a existência do inferno. 

Mas há algo mais em todo esse caso. Defender a existência do inferno seria e representaria um ataque direto a Deus. Por quê? Muito simples: o inferno é, por definição, um “castigo”. Ora, o critério humano mais elementar diz-nos que um “castigo” não pode ser um “fim” ou um “objetivo”. Uma “punição” é – e sempre será – um “meio”, para obter um outro fim: a educação de uma criança, a correção de um criminoso, a manutenção da ordem na sociedade e os direitos dos cidadãos, e assim por diante.

Fazer sofrer com o único propósito de que a vítima sofra e sem esperança ou possibilidade de solução, isso não pode brotar senão de uma maldade absoluta, que é incompatível com a bondade absoluta de Deus.

Portanto, ou o inferno ou Deus. 

Nota

Falarei sobre a homossexualidade, em outro artigo, o que me parece o mais certo e pertinente no momento. 

Traduzido do espanhol por Wagner Fernandes de Azevedo. Editado e corrigido por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 9 de setembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 13/09/2021). 

Continuando o artigo anterior... 

A derrota do demônio

 José María Castillo

Teólogo católico espanhol 

Jesus não instituiu “exorcistas” ou decretou ritos e liturgias para expulsar demônios

JOSÉ MARÍA CASTILLO - teólogo católico espanhol

Em um pequeno artigo, que publiquei em Religión Digital há poucos dias, terminei esse escrito anunciando que em breve publicaria uma reflexão sobre a homossexualidade. Mas, em vista das abundantes correções que me fizeram alguns leitores que defendem a existência do demônio, entendo que esses leitores têm todo o direito de pedir uma explicação, já que demônios são frequentemente mencionados nos Evangelhos. 

Pois bem, o Evangelho de Lucas, quando relata a missão evangelizadora que Jesus confiou a um grupo de discípulos, que era muito maior do que a dos “doze” apóstolos, o grupo dos “setenta e dois” (Lc 10,1-20), termina dizendo que: “Os setenta e dois voltaram com alegria, dizendo: ‘Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!” (Lc 10,17). Ao que Jesus respondeu: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago! Eis que vos dei poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do Inimigo...”(Lc 10,18-19). 

Esta é a convicção que o Cristianismo deixou clara: desde a vinda de Jesus, as forças demoníacas foram esmagadas; os demônios se submetem ao poder e ao nome de Jesus Cristo (François Bovon, El Evangelio Segun San Lucas. Vol. II: 9, 51 – 14,35, página 79 – Ediciones Sígueme, 2005). O demônio foi derrotado para sempre. 


Mas isso, sendo tão importante, não é toda a verdade que, aqui, é decisivo deixar claro. O demônio foi derrotado, mas como? Por meio de rituais, exorcismos e cerimônias? Nada disso. Jesus não instituiu “exorcistas” ou decretou ritos e liturgias para expulsar demônios. E, menos ainda, ele colocou um preço sobre eles ou estabeleceu tarifas e espórtulas para anular os demônios satânicos. Como e quando Jesus viu Satanás cair como um raio?

Quando os discípulos dedicaram suas vidas inteiras para colocar o evangelho em prática.

Assim - e somente assim - podemos limpar este mundo de demônios. 

Mas, agora, ao explicarmos essa questão capital, vamos até o fim. Como se sabe, no final do século passado, o conhecido antropólogo René Girard publicou um livro que tem dado muito que falar. O livro tem o título exato: Eu via Satanás cair como um relâmpago (Paz e Terra, 2012). Girard toma como ponto de partida um fato que muitas pessoas nunca perceberam. No Decálogo, que a Bíblia nos apresenta no livro do Êxodo (20,17), nos são impostos dez mandamentos, que são dez proibições: Não mate, não roube, não minta... Mas o último desses mandamentos não é um “fato” (matar, roubar…), mas um “desejo”:Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo”. 

Tendo isso em conta, atrevo-me a dizer que, neste “mundo endemoniado” em que vivemos, está ocorrendo uma mudança radical, que não podemos imaginar. O “desejo” é mais decisivo e poderoso do que a “proibição”. O “horizontal” já é mais poderoso do que o “vertical” (conferir: Peter Sloterdijk, Has de cambiar tu vida, páginas 151-153, Editorial Pre-Textos, 2012). O que, aplicado ao assunto do diabo e como expulsá-lo, vem nos dizer que o grande exorcismo, de que este mundo precisa, não virá do poder dos que estão acima, com seus títulos, seus poderes e suas cerimônias, mas só poderá vir da simplicidade, da insignificância, da vulgaridade de quem está abaixo. 

No final das contas, continua de pé e recobra força, o que Jesus disse aos setenta e dois discípulos, aqueles que viveram misturados com o povo: “Vejo Satanás cair como um relâmpago”. 

Traduzido do espanhol e editado por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo. 

Fonte: Religión Digital – Teología sin censura – Domingo, 12 de setembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 13/09/2021).

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