INDIGNAÇÕES DE UM BIBLISTA...
Ao
enviar a minha saudação natalina, sei que, durante os últimos tempos, fiquei em
dívida para com muitos de vocês, mas isso é, em grande parte, porque dez anos
atrás tomei a decisão de priorizar incondicionalmente a nova tradução da Bíblia da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – Igreja Católica] dedicando-lhe todo o meu tempo que sobrava das aulas,
atividades pastorais e sociais. Claro, com a ajuda do coordenador e dos outros
colaboradores. Eu assumi o papel de ser o arquivo vivo do projeto, tendo tudo
na cabeça e no computador, para ligar tudo com tudo, o texto material, a
interpretação, o projeto de edição... Acabou (quase). Agora posso pensar em mensagens para meus amigos...
E
minha preocupação política, social, cultural? Não neguei. Somente, fui para a
retaguarda, para poder terminar o trabalho de que falei acima. Meu pensamento
não abandonou o povo brasileiro, muito amado e muito abandonado. Decerto, há ainda uma aparência de bem-estar
material, até de progresso... Mas que progresso? Venda de automóveis,
aumento da violência e competição para um lugar debaixo das pontes...
Minhas preocupações
Estou preocupado, sobretudo,
com o que se chama de EDUCAÇÃO. Os brasileiros, em geral, são agradáveis, amáveis,
corteses, têm boas maneiras. São simpáticos e comunicativos. Alegres até, pois
riem para não chorar. Mas muitos chegam
ao fim do ensino fundamental sem domínio da língua pátria, da matemática e das
ciências. Sem compreensão da
história, da sociedade e da própria pessoa. Nas escolas públicas é comum
encontrar no oitavo ou nono ano pessoas “normais” que não sabem ler, por falta
de método educativo coerente e/ou de atenção psicopedagógica. Perde-se muito
tempo na aula. Não se aprende a aprender
– coisa que exige disciplina. Professores e direções se veem impotentes diante
de fatores estranhos à educação. Atmosfera
generalizada de imediatismo, de consumismo, até na sala de aula. Substituição da recepção auditiva
(ouvir e refletir) pela meramente visual
(ver e crer que as coisas são assim mesmo...). E os profissionais da educação
cruzando os braços ou levando as mãos à cabeça...
As crianças e adolescentes
não aprendem a observar e a compreender o mundo em que vivem. Com isso viram vítimas de
todo tipo de manipulação: comercial, política, religiosa. Falava-se em Paulo Freire, mas agora está sendo
demonizado, seu nome tirado de praças e ruas... Fala-se ainda, às vezes, em Piaget. Mas o que queriam esses
educadores? Que os jovens, e também os adultos, observassem o mundo em que
vivem e a partir daí construíssem um saber que lhes servisse. Entretanto, muitos nem sabem o nome da rua
vizinha ou até da sua própria. Não aprendem a agarrar o boi pelos chifres
para os afazeres de cada dia. Muita
alienação.
Estou preocupado também com
o CRISTIANISMO,
a tradição religiosa na qual me insiro. Digo “cristianismo”, porque muitas
coisas são comuns à igreja católica e às protestantes. Estou preocupado com o fundamentalismo,
o recorrer a frases bíblicas absolutizadas ou a dogmas e tradições
inquestionáveis para não ter de refletir sobre a realidade vivida. E no
meio disso, as inclarezas do ensino religioso
na escola pública. Catecismo é questão de comunidade, mas na escola pode-se
aprender a observar, estudar a fé das pessoas como elemento do mundo em que se
vive. Como formação humana integral, respeitosa, aberta. Como saber viver. Se
“a graça supõe e eleva a natureza”, como dizem os teólogos, comecemos
enobrecendo a natureza...
Quem viveu com todo o
entusiasmo os anos do Concílio Vaticano II não pode ficar quieto diante da onda
de neoconservadorismo que sopra na Igreja. Claro, não da parte do Papa Francisco –
embora seja teologicamente mais prudente do que dizem seus adversários! Eu
mesmo me considero como “tradicional”, acredite ou não. Dediquei tempo imenso à
organização de grandes obras que representam a tradição cristã (a Bíblia) e católica (o Compêndio de Dogmas e Declarações de fé e
moral).
No
seio da CNBB estou articulando um ambiente para os biblistas católicos de nível
acadêmico superior, porque eles e seus bispos têm questões e projetos
específicos a serem contemplados. Amo
nossa tradição, mas não o neoconservadorismo. A Idade Média passou. O Concílio de Trento foi atualizado no
Concílio Vaticano II, que, por sua vez, precisa ser atualizado em cada parte do
mundo, na África, na América Latina, e também na velha Europa.
E há um neoconservadorismo que não o parece: escondido atrás do som
de guitarras elétricas, com melodias incantáveis que os fãs procuram impingir
nas comunidades paroquiais, transformando
a missa em show, tudo para curtir um
Jesus "espiritual", que não mexe com os conflitos do mundo.
Perdeu-se a consciência de
que a missa é a memória viva de Jesus, o qual, por amor e fidelidade até o fim,
enfrentou a morte. Tremenda superficialidade que invadiu o mundo, no qual vale a nova
máxima: “Eu posto, logo sou”.
Estamos
vivenciando o FIM DE UMA CIVILIZAÇÃO.
O Papa Francisco o diz abertamente: no caminho em que estamos não há mais como
continuar. Por um lado, o esgotamento do habitat humano. Por outro, a morte do
ser humano pessoal. O ser humano
acoplado à eletrônica, se não se cuidar, poderá acabar anencéfalo, reduzido a
registrar e reagir, sem saber o que está fazendo. O “sistema” é que vai
mandar.
Não podemos ficar assistindo
passivamente a uma política econômica e social suicida e ao esvaziamento da
humanidade dos indivíduos. Inundados por informação, perdemos a capacidade de pensar e agir.
É
isso aí, gente. Mas, ao recordar que
alguém que nasceu numa estrebaria virou o profeta que mais mexeu com o mundo,
creio que haja esperança.
Desde
já, feliz Natal e Ano Novo.
Johan
Konings*,
novembro 2017.
* Johan
Konings é padre jesuíta nascido na Bélgica, professor titular da Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
Participou como perito na XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos,
em Roma, em 2008, com o tema «A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja».
Filósofo e filólogo, concluiu o doutorado em Teologia na Universidade Católica
de Lovaina, na Bélgica, sócio-fundador da Associação Brasileira de Pesquisa
Bíblica (ABIB). Entre suas muitas obras, coordenou a tradução da «Bíblia
Ecumênica» – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" da CNBB.
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