INDIGNAÇÕES DE UM BIBLISTA...

Caras amigas, caros amigos,
Johan Konings

Ao enviar a minha saudação natalina, sei que, durante os últimos tempos, fiquei em dívida para com muitos de vocês, mas isso é, em grande parte, porque dez anos atrás tomei a decisão de priorizar incondicionalmente a nova tradução da Bíblia da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Igreja Católica] dedicando-lhe todo o meu tempo que sobrava das aulas, atividades pastorais e sociais. Claro, com a ajuda do coordenador e dos outros colaboradores. Eu assumi o papel de ser o arquivo vivo do projeto, tendo tudo na cabeça e no computador, para ligar tudo com tudo, o texto material, a interpretação, o projeto de edição... Acabou (quase). Agora posso pensar em mensagens para meus amigos...

E minha preocupação política, social, cultural? Não neguei. Somente, fui para a retaguarda, para poder terminar o trabalho de que falei acima. Meu pensamento não abandonou o povo brasileiro, muito amado e muito abandonado. Decerto, há ainda uma aparência de bem-estar material, até de progresso... Mas que progresso? Venda de automóveis, aumento da violência e competição para um lugar debaixo das pontes...

Minhas preocupações

Estou preocupado, sobretudo, com o que se chama de EDUCAÇÃO. Os brasileiros, em geral, são agradáveis, amáveis, corteses, têm boas maneiras. São simpáticos e comunicativos. Alegres até, pois riem para não chorar. Mas muitos chegam ao fim do ensino fundamental sem domínio da língua pátria, da matemática e das ciências. Sem compreensão da história, da sociedade e da própria pessoa. Nas escolas públicas é comum encontrar no oitavo ou nono ano pessoas “normais” que não sabem ler, por falta de método educativo coerente e/ou de atenção psicopedagógica. Perde-se muito tempo na aula. Não se aprende a aprender – coisa que exige disciplina. Professores e direções se veem impotentes diante de fatores estranhos à educação. Atmosfera generalizada de imediatismo, de consumismo, até na sala de aula. Substituição da recepção auditiva (ouvir e refletir) pela meramente visual (ver e crer que as coisas são assim mesmo...). E os profissionais da educação cruzando os braços ou levando as mãos à cabeça...

As crianças e adolescentes não aprendem a observar e a compreender o mundo em que vivem. Com isso viram vítimas de todo tipo de manipulação: comercial, política, religiosa. Falava-se em Paulo Freire, mas agora está sendo demonizado, seu nome tirado de praças e ruas... Fala-se ainda, às vezes, em Piaget. Mas o que queriam esses educadores? Que os jovens, e também os adultos, observassem o mundo em que vivem e a partir daí construíssem um saber que lhes servisse. Entretanto, muitos nem sabem o nome da rua vizinha ou até da sua própria. Não aprendem a agarrar o boi pelos chifres para os afazeres de cada dia. Muita alienação.

Estou preocupado também com o CRISTIANISMO, a tradição religiosa na qual me insiro. Digo “cristianismo”, porque muitas coisas são comuns à igreja católica e às protestantes. Estou preocupado com o fundamentalismo, o recorrer a frases bíblicas absolutizadas ou a dogmas e tradições inquestionáveis para não ter de refletir sobre a realidade vivida. E no meio disso, as inclarezas do ensino religioso na escola pública. Catecismo é questão de comunidade, mas na escola pode-se aprender a observar, estudar a fé das pessoas como elemento do mundo em que se vive. Como formação humana integral, respeitosa, aberta. Como saber viver. Se “a graça supõe e eleva a natureza”, como dizem os teólogos, comecemos enobrecendo a natureza...

Quem viveu com todo o entusiasmo os anos do Concílio Vaticano II não pode ficar quieto diante da onda de neoconservadorismo que sopra na Igreja. Claro, não da parte do Papa Francisco – embora seja teologicamente mais prudente do que dizem seus adversários! Eu mesmo me considero como “tradicional”, acredite ou não. Dediquei tempo imenso à organização de grandes obras que representam a tradição cristã (a Bíblia) e católica (o Compêndio de Dogmas e Declarações de fé e moral).

No seio da CNBB estou articulando um ambiente para os biblistas católicos de nível acadêmico superior, porque eles e seus bispos têm questões e projetos específicos a serem contemplados. Amo nossa tradição, mas não o neoconservadorismo. A Idade Média passou. O Concílio de Trento foi atualizado no Concílio Vaticano II, que, por sua vez, precisa ser atualizado em cada parte do mundo, na África, na América Latina, e também na velha Europa.

E há um neoconservadorismo que não o parece: escondido atrás do som de guitarras elétricas, com melodias incantáveis que os fãs procuram impingir nas comunidades paroquiais, transformando a missa em show, tudo para curtir um Jesus "espiritual", que não mexe com os conflitos do mundo. 

Perdeu-se a consciência de que a missa é a memória viva de Jesus, o qual, por amor e fidelidade até o fim, enfrentou a morte. Tremenda superficialidade que invadiu o mundo, no qual vale a nova máxima: “Eu posto, logo sou”.

Estamos vivenciando o FIM DE UMA CIVILIZAÇÃO. O Papa Francisco o diz abertamente: no caminho em que estamos não há mais como continuar. Por um lado, o esgotamento do habitat humano. Por outro, a morte do ser humano pessoal. O ser humano acoplado à eletrônica, se não se cuidar, poderá acabar anencéfalo, reduzido a registrar e reagir, sem saber o que está fazendo. O “sistema” é que vai mandar.

Não podemos ficar assistindo passivamente a uma política econômica e social suicida e ao esvaziamento da humanidade dos indivíduos. Inundados por informação, perdemos a capacidade de pensar e agir.

É isso aí, gente. Mas, ao recordar que alguém que nasceu numa estrebaria virou o profeta que mais mexeu com o mundo, creio que haja esperança.

Desde já, feliz Natal e Ano Novo.

Johan Konings*, novembro 2017.


* Johan Konings é padre jesuíta nascido na Bélgica, professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Participou como perito na XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em Roma, em 2008, com o tema «A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja». Filósofo e filólogo, concluiu o doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, sócio-fundador da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Entre suas muitas obras, coordenou a tradução da «Bíblia Ecumênica» – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" da CNBB.

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