Interesses obscuros

 Não estamos em uma nova Guerra Fria

 Fareed Zakaria

Jornalista e Colunista do “Washington Post” 

GENERAL MARK MILLEY

Interdependência econômica e mundo mais conectado dificultam uma nova Guerra Fria

Estamos testemunhando outro momento Sputnik? O Financial Times noticiou que a China testou um míssil hipersônico em agosto, apesar de Pequim negar. O general Mark Milley, chefe do Estado-maior Conjunto dos Estados Unidos, comparou o teste àquele momento crucial da Guerra Fria:Não sei se este é exatamente como o momento Sputnik”, afirmou, “mas acho que é bem perto disso”. 

Milley deveria tirar a poeira de seus livros de história. O teste chinês não tem nada em comum com o Sputnik, e fazer uma afirmação como essa alimenta uma perigosa paranoia que tem crescido em Washington ultimamente. 

Para recordar, a União Soviética lançou o Sputnik, o primeiro satélite artificial a orbitar o planeta, em 4 de outubro de 1957. Tanto os EUA quando a URSS planejavam, havia anos, lançar satélites ao espaço sideral, e o fato de que Moscou atingiu a façanha primeiro foi um grande choque para os americanos. Lançado num contexto de múltiplos testes nucleares soviéticos, o Sputnik sinalizou que, na próxima fronteira, o espaço sideral, os soviéticos estavam à frente. 

O Sputnik revolucionou a corrida espacial. Mísseis hipersônicos, por outro lado, são notícia velha. Um míssil hipersônico viaja a uma velocidade cinco vezes superior à do som, ou até mais rápido. A partir de 1959, EUA e URSS lançaram mísseis balísticos intercontinentais (MBIC) que atingiram velocidades 20 vezes superiores à do som.

SPUTNIK (foto): foi o primeiro satélite artificial a ser lançado e posto em órbita com pleno sucesso. Marcou o início da Era Espacial, propriamente dita. Isso ocorreu no dia 4 de outubro de 1957. Era em formato esférico e pesava cerca de 83 quilos
Até os foguetes alemães V-2, lançados pela primeira vez contra Paris, na fase final da 2.ª Guerra, atingiam velocidades próximas às hipersônicas. Cameron Tracy, cientista da Universidade Stanford e especialista no assunto, ressaltou que armas hipersônicas não são nem mais velozes nem mais furtivas do que os MBICS. E a propósito, o míssil chinês errou o alvo por cerca de 38 quilômetros. 

Como nota o escritor e jornalista Fred Kaplan, é impossível que esse teste tenha sido uma tentativa da China de neutralizar o vasto sistema de defesa aérea dos Estados Unidos. Mas esse sistema, ressalta ele, é um dispendioso elefante branco que fracassou em três dos seis testes mais recentes, apesar das centenas de bilhões de dólares que já consumiu até hoje. 

Talvez seja por isso que o Pentágono não tenha realizado nenhum teste com esse sistema desde março de 2019. Mesmo se o sistema tivesse mira perfeita, ele ainda poderia se mostrar inútil diante de ações menores e assimétricas, tais como simplesmente disparar dois mísseis simultaneamente. 

Não esperem, porém, que ciência e fatos exerçam muita influência sobre essa discussão. Isso porque existe atualmente um consenso bipartidário em Washington:

estamos nos aproximando perigosamente de uma nova Guerra Fria.

Para o Pentágono, isso representa uma oportunidade: alimentar o medo de um inimigo poderoso e hábil tecnologicamente é uma maneira infalível de garantir novos orçamentos gigantescos, que podem ser gastos em respostas a toda e qualquer movimentação do inimigo, real ou imaginada. 

Essa sensação transcende Washington. A Foreign Affairs publicou um ensaio de um acadêmico famoso por seu realismo, John Mearsheimer, que repreendeu os formuladores de políticas americanos por se envolver com a China ao longo das últimas quatro décadas. 

Ele prevê que nosso encorajamento ativo em relação à China, enquanto concorrente em pé de igualdade, ocasionará uma nova Guerra Fria, que poderia se tornar quente e até mesmo nuclear. 

Mas a lógica realista nos leva apenas até determinado ponto. O papa do realismo, Kenneth Waltz, previu que, após o fim da Guerra Fria, o Japão se livraria dos grilhões da dependência dos Estados Unidos e adquiriria armas nucleares. Mearsheimer declarou que, após o fim da Guerra Fria, a Otan se desintegraria, e a Europa voltaria a ser um continente de Estados beligerantes, como antes da Guerra Fria. Ele acreditava que muitos Estados europeus, principalmente a Alemanha, provavelmente adquiririam armas nucleares. Nenhuma dessas previsões se concretizou. Na verdade, a União Europeia ficou cada vez mais unida e fortalecida nas décadas posteriores à Guerra Fria. E as forças militares do Japão continuam resolutamente não nucleares. 

É a economia que manda 

Levantei essas questões para argumentar que Mearsheimer considerou apenas uma das grandes forças que motivam Estados no sistema internacional: a política de potências. Mas há outras, como a interdependência econômica. O mundo de hoje – incluindo a China – está completamente emaranhado num complexo sistema econômico global, no qual uma guerra prejudicaria o agressor quase tanto quando a vítima. 

Quase não houve usurpações de terras desde 1945 (a mais notável exceção foi a anexação russa da Crimeia, em 2014). Isso representa uma declaração quase sem precedentes de respeito às fronteiras. Além disso, a dissuasão nuclear elevou os riscos, tornando as superpotências muito mais cautelosas em relação a lançar guerras. 

A tarefa da política externa americana é reconhecer que a tradicional política de potências tem capacidade de deter o expansionismo da China ao mesmo tempo que reconhece as maneiras pelas quais a interdependência também pode restringi-lo. Os Estados Unidos deveriam se esforçar para acionar ambas as ferramentas. Essa abordagem certamente se provará mais complicada de implementar do que alarmismos e intimidações, mas é precisamente a que deverá manter a paz mundial e a prosperidade. 

Traduzido do inglês por Guilherme Russo. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional / Colunista – Sábado, 30 de outubro de 2021 – Pág. A23 – Internet: clique aqui (Acesso em: 03/11/2021).

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