«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Quanto de religioso suporta o Estado liberal? [Oportuna discussão]

Jürgen Habermas *

Jürgen Habermas - filósofo alemão
Após a eleição do primeiro Presidente egípcio democraticamente eleito, o artigo de primeira página do Süddeutsche Zeitung [jornal diário alemão, fundado em 1945] do dia 26 de junho intitulava assim: "Mohammed Mursi ajuda o Islã político a obter o seu maior triunfo refutando os valores ocidentais". Em qual prospectiva se fala de "valores ocidentais"?

Uma cultura é portadora de valores como liberdade e paz, igualdade e temor a Deus segundo uma ordem de prioridade diferente daquela de uma outra cultura. Se Mursi seguirá a linha dura da Fraternidade Muçulmana ou, de fato, será um presidente de todos os egípcios, portanto, também dos xiitas, dos coptas e dos leigos, dependerá, entre outras coisas, do fato se ele considerará a liberdade de religião e os outros direitos fundamentais de uma constituição liberal somente como valores ou também como princípios. Na verdade, é preciso admitir que os princípios racionalmente fundados requerem uma sensibilidade ao contexto de aplicação mas, de acordo com a sua pretensão, eles valem para todos e, além disso, não têm nem mesmo uma presunção de tensão  com os "valores" de outras culturas.

Também no Ocidente, as bases de legitimidade segundo o direito natural do poder político foram, inicialmente, entrelaçadas com a compreensão da estrutura do kósmos e da pólis, com as revelações de um Deus que redime ou com os pensamentos de Deus objetivados na criação. Somente o moderno direito de razão retirou o peso das motivações metafísicas e religiosas destas concepções globais com os princípios que adquiriram validade positiva nas revoluções constitucionais do século XVII. Desta visão, limitadamente antropocêntrica, a democracia e os direitos humanos constituem, para as sociedades modernas, os dois pilares reciprocamente interconectados do poder político.

O justo e o bem

Não posso entrar no mérito das tentativas de fundação do direito de razão, mas me limitarei ao tipo de raciocínio seguido por ela. Podemos distingui-la do contexto das visões globais do mundo,  assim que se diferencia a ideia de justiça daquela de bem supremo. A justa ordem não se orienta, então, mais em direção a uma forma de vida exemplar, solidamente ancorada no cosmos ou na história da salvação. Esta prospectiva de justiça que adere ao bem concreto vem substituída pela ideia de inclusão formal dos indivíduos livres e iguais, que podem dizer sim ou não.

Sobre isso, é decisiva a transformação de uma concepção de teor da vida boa à ideia de um processo de confronto, segundo a qual os participantes constroem por si mesmos um ordenamento justo. No curso de um progressivo descentramento da compreensão de si mesmas e do mundo, pessoas livres e iguais devem encontrar aquilo que é, igualmente, bom para cada uma delas. Esta separação conceitual do justo do bem tornou independentes os conceitos de legitimidade da construção do mundo ou da história em seu todo, tornando possível, deste modo, a ideia de um poder secularizado do Estado. No Ocidente foi realizada, mais ou menos, uma adequada separação institucional entre Estado e religião sob a forma de acordos muito diversos de direito canônico.

Sociedade civil não secularizada

Mas a secularização do poder do Estado não significa, por isso, secularização da sociedade civil - nos Estados Unidos, desde o princípio, ela não teve esta intenção. Esta circunstância coloca os cidadãos crentes numa situação paradoxal. As constituições liberais garantem a todas as comunidade religiosas (levando em conta a liberdade negativa de religião) o mesmo espaço e, ao mesmo tempo, protegem as instituições do Estado, as quais acolhem as decisões como coletivamente vinculantes, das interferências políticas por parte das comunidades religiosas mais fortes. Disso decorre, que as mesmas pessoas, que são expressamente autorizadas a praticar a sua religião e a conduzir uma vida pia, no seu papel de cidadãos do Estado devem participar de um processo democrático, cujo resultado deve ser mantido livre de qualquer aditivo religioso.

A resposta que dá o laicismo, é insuficiente. As comunidades religiosas, na medida em que na sociedade civil desempenham um papel vital, não podem ser banidas do âmbito político público e limitadas à esfera privada, porque uma política deliberativa depende do uso público da razão assim como os cidadãos crentes ou não. Se a estridente polifonia das sinceras opiniões não são suprimidas, as contribuições religiosas a questões moralmente complexas como o aborto, a eutanásia a intervenção genética pré-natal etc. não devem ser cortadas pela raiz do processo decisional democrático. Cidadãos e comunidades religiosas devem permanecer livres de ser representados enquanto tais no âmbito público, de fazer uso de uma linguagem religiosa e de usar argumentos correspondentes.

Num Estado secular eles [os cidadãos religiosos] devem aceitar que o conteúdo politicamente relevante das suas contribuições seja traduzido num discurso acessível a todos e independente das autoridades religiosas, antes de poder ter acesso às agendas dos órgãos de decisão do Estado. Deve ser introduzido, num certo sentido, um filtro entre as correntes de comunicação selvagem da opinião pública, de um lado, e as deliberações formais que conduzem a decisões coletivamente vinculantes, do outro. E as decisões aprovadas pelo Estado devem, elas também, ser formuladas numa linguagem acessível, em igual medida, a todos os cidadãos e devem poder ser justificadas.

Mas em quais condições, sobretudo os crentes, cujas ideias normativas, em última análise, se radicam nas crenças fundamentais da fé, podem aceitar as consequências de uma tal cláusula de tradução da mensagem? Principalmente nas religiões vitais, frequentemente, é latente um potencial de violência, que não pode inflamar as faíscas de uma dinâmica da compreensão do modo que liberalmente corre na sociedade civil. Se o ordenamento constitucional liberal sobre um simples modus vivendi deve ser capaz de reivindicar uma legitimidade, todos os cidadãos, mesmo os crentes, devem fundamentalmente poder convencer-se da racionalidade dos princípios constitucionais. Os conflitos religiosos não comprometerão esta base comum somente se as convicções de fé não entrarem em conflito com a lealdade em relação aos princípios constitucionais fundamentais. 

Expectativas

JOHN RAWLS (1921-2002) - filósofo norte-americano
Segundo John Rawls, o Estado liberal deve esperar que os próprios cidadãos crentes fundem, a partir da sua fé, aquelas afirmações seculares - segundo o próprio juízo - amparadas somente pela razão de democracia e de Estado de Direito respectivamente e que insiram estas como "módulo" no contexto de suas convicções religiosas de fundo. A Igreja Católica, por exemplo, realizou tal adaptação dogmática ao concílio Vaticano II, portanto, somente nos anos sessenta do século passado. A imagem do módulo ilustra bem como os cidadãos crentes podem apoiar, em relação às próprias ideias religiosas, a prioridade objetiva e as decisões políticas em casos particulares e harmonizar estas com a prioridade subjetiva das suas convicções existenciais de fé e, em última análise, decisivas. 

O Estado liberal é, portanto, incompatível com o fundamentalismo religioso. Neste conflito, uma figura da modernidade se confronta com uma outra forma moderna, surgida como reação ao processo de modernização que suplanta todas as coisas. O Estado liberal pode garantir aos seus cidadãos as mesmas liberdades religiosas - e, em geral, iguais direitos culturais - somente sob a condição que eles, em certo sentido, se revelem [literalmente: saiam do armário] à comum sociedade civil deixando os mundos de vida integral de suas comunidades religiosas e as próprias subculturas. Ao mesmo tempo, também a cultura majoritária não pode manter prisioneiros os próprios membros no estreito conceito de uma cultura dominante que pretende um poder definitório exclusivo sobre a cultura política do país. Na sentença sobre a admissibilidade da prática da circuncisão dos muçulmanos (e judeus) o tribunal distrital de Colônia é injusto ao julgar, afirmando que, junto aos muçulmanos naturalizados também "o Islã é parte da Alemanha". No papel de "colegisladores" democráticos, todos os cidadãos do Estado são garantidores, uns em relação aos outros, da tutela dos direitos fundamentais entre os quais, como cidadãos da sociedade civil, podem exprimir verdadeiramente e livremente a sua identidade cultural e ideológica. Esta relação entre Estado democrático, sociedade civil e autonomia subcultural é a chave para compreender os dois motivos complementares entre eles, que secularistas e multiculturalistas, erroneamente, consideram incompatíveis. As solicitações universalistas do iluminismo político encontram a sua resposta somente no justo reconhecimento das afirmações particularistas de auto-afirmação das minorias religiosas e culturais.

O discurso intercultural

Com esta autocompreensão do Estado secular, o Ocidente se diferencia das outras regiões do mundo. Neste ínterim, a situação pós-colonial e o deslocamento das relações de poder da política mundial nos constringem a levar a sério as considerações que as outras culturas nos dirigem. Estas trazem à consciência do Ocidente as características provinciais das globalizações eurocêntricas, recordando-nos as conquistas imperialistas e as atrocidades coloniais, os crimes que foram cometidos também em nome das nossas nobres normas.

Pelo contexto de formação europeia, somos capazes de compreender a secularização do poder do Estado como resposta pacificante à violência religiosa das guerras de confissão. Vice-versa, em outras partes do mundo, a constituição do Estado nacional levou somente a uma confessionalização, isto é, à recíproca exclusão e opressão das comunidades religiosas que, até agora, viveram lado a lado mais ou menos pacificamente e amigavelmente. Além do mais, as obscuras formas híbridas e as dúbias simbioses do poder estatal e religioso, que em outros lugares deploramos, nos recordam a resistência tenaz das igrejas cristãs ao Estado liberal, e a longa luta para a emancipação da instrução pública e do direito de família das garras eclesiásticas.

Do outro lado, é o relativismo a falaciosa consequência da autocrítica solicitada. Não por acaso, os dissidentes de todo o mundo fazem uso da linguagem da democracia e dos direitos humanos. Como parte nos debates interculturais, o Ocidente constitui, agora, somente um dos muitos partidos. Neste papel, devemos habituar-nos a ter uma relação não dogmática e disposição para aprender das civilizações que se desenvolveram em percursos muito diversos até se tornarem contemporâneas de uma sociedade mundial formada pela modernidade múltipla. Mas é somente sobre a base de uma defesa autoconsciente de pretensões universais que nos deixaremos instruir pelos argumentos dos outros sobre os nossos pontos cegos na compreensão e na aplicação dos próprios princípios.

A isto pertence aquela leitura secularista com um só olho do poder do Estado secularizado, que edifica falsas fachadas.  Como cidadãos leigos não podemos saber se o processo de verbalização do sagrado, em nível de história do mundo, foi completado. Este já tinha sido iniciado com os primeiros mitos, isto é, com o surgimento narrativo dos significados encapsulados performativamente no comportamento ritual. No berço do cristianismo, este processo foi continuado com o trabalho sobre os conceitos por parte dos Padres da Igreja. No intercâmbio com a culta elite grega do império romano, estes teólogos insistiram sobre uma tradução dos seus conteúdos de fé mais estimulantes, impermeável às influências, na linguagem da metafísica. Então, eles, que eram também filósofos, despertaram uma sensibilidade totalmente não grega para a peculiaridade daquelas experiências históricas e comunicativas subtraídas dos conceitos ontológicos de uma metafísica da substância. 

Relações com a herança

Primeiramente, a filosofia teve somente uma muda participação neste processo de tradução. Foi, ao menos, a partir do século XVIII que ela continuou esta instância segundo a própria regia, absorvendo os conteúdos teológicos em seus conceitos fundamentais de ética e de filosofia da história. Kant e Hegel desejaram, então, retornar ao conceito o conteúdo de verdade da tradição religiosa. Nos diagnósticos de crise e de alienação dos jovens hegelianos este processo de tradução continuou, involuntariamente. E, na mudança de prospectiva que a filosofia da existência e o pragmatismo realizaram do "o que" do objeto ao "como" da relação com o mundo para torná-lo performativo, percebe-se uma símile osmose semântica. Os seminários conjuntos de Heidegger e Bultmann ou as experiências religiosas de um William James são sintomas disso.

Ao mesmo tempo, os autores religiosos de Kierkegaard a Walter Benjamin, Emmanuel Lévinas ou Martin Buber, passando por Josiah Royce conduziram, partindo de outra margem, os conteúdos das tradições confessionais através do filtro conceitual filosófico. Da retrospectiva do desiludido pensamento pós-metafísico sobre esta relação com a herança podemos aprender uma certa reserva para com uma autocompreensão leiga: não podemos saber se o processo em curso até agora - até as criações conceituais de Jacques Derrida - de uma tradução não completada do potencial religioso de significado tenha sido esgotado.

Portanto, o Estado liberal não deve somente solicitar aos cidadãos leigos de levar a sério como pessoas os cidadãos crentes que eles encontram no espaço político. Pode-se, ainda mais, esperar desses cidadãos leigos que não excluam reconhecer nos conteúdos articulados das tomadas de posição e das declarações religiosas, se necessário, percepções reprimidas - isto é, os potenciais conteúdos de verdade que podem ser introduzidos numa argumentação pública não vinculada religiosamente.

Observação: este texto é a versão escrita de uma conferência proferida por Jürgen Habermas no contexto da série "Política e Religião", em 19 de julho de 2012 na Fundação Carl Friedrich von Siemens, em Munique, na Bavária (Alemanha). Cf.: www.muenster.de/~angergun/.

Tradução do italiano por: Telmo José Amaral de Figueiredo.

* Para saber mais sobre este importante e influente filósofo alemão, consulte: http://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BCrgen_Habermas

Fonte: Blog da Editrice Queriniana, Brescia (Itália) - Teologi@Internet - 27/11/2012 - Internet: http://www.queriniana.it/blog

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