«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A RENÚNCIA DO PAPA BENTO XVI

AS PALAVRAS DA RENÚNCIA


Apresentamos as palavras com que 
Bento XVI anunciou a sua renúncia:


Papa Bento XVI
lendo a mensagem de sua renúncia
Caríssimos Irmãos,

convoquei-vos para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20,00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.

Caríssimos Irmãos, verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.

Vaticano, 10 de Fevereiro de 2013. 

BENEDICTUS PP. XVI

Fonte: ZENIT.ORG - 11 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.zenit.org/pt/articles/bento-xvi-renuncia-ao-ministerio-de-bispo-de-roma-sucessor-de-sao-pedro?utm_campaign=diarioportughtml&utm_medium=email&utm_source=dispatch
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EXPLICAÇÕES OFICIAIS SOBRE A RENÚNCIA


O porta-voz vaticano, padre Federico Lombardi, explica as razões da histórica decisão do Santo Padre

Salvatore Cernuzio
Padre Federico Lombardi - porta-voz da Santa Sé
O Papa não está doente. O Papa está bem. A razão da decisão de renunciar ao ministério petrino é devida à fragilidade proveniente do envelhecimento e da consequente impossibilidade de governar a Igreja melhor.

Padre Federico Lombardi explicou com clareza as causas subjacentes da histórica decisão anunciada ontem pelo Pontífice. Uma "decisão consciente, espiritual, bem fundamentada do ponto de vista da fé e humano”,  como declarou na coletiva de hoje com os jornalistas na Sala de Imprensa vaticana.

Em particular, o porta-voz do Vaticano, quis "eliminar" algumas insinuações que sairam ontem pelos meios de comunicação italianos, sobre uma possível doença do Santo Padre, que ainda estivesse escondida e sobre alguns procedimentos cardíacos que o Papa teria sofrido recentemente.

"Não existem doenças específicas", afirmou Pe. Lombardi, nem sequer “algum intervenção especial”. É verdade que Bento XVI nos meses passados se submeteu a uma pequena operação cardíaca, mas – explicou Lombardi – foi apenas uma substituição das baterias do marcapasso. Portanto, uma intervenção “normal, de rotina, como de todas as pessoas que têm um controlador cardíaco” que não tem nenhum importância na decisão do Pontífice, porque foi algo “irrelevante sob todos os pontos de vista”.

O diretor da Assessoria de Imprensa Vaticana confirmou que até o dia 28 de fevereiro – data em que a Sé ficará vacante – a agenda de Bento XVI não sofrerá nenhuma variação. Trata-se das últimas intervenções do Papa Ratzinger, portanto, “ocasiões preciosas” que o Padre Lombardi convidou a “prestar muita atenção”.

Sobretudo, prestemos atenção na Audiência geral de amanhã (a primeira aparição pública post declaratio), e a celebração das Cinzas que, por questões de espaço, não será mais na Santa Sabina no Aventino, mas na Basílica de São Pedro, justamente “para acolher mais fieis e tantos cardeais” que participarão daquela que, de fato, é “a última grande concelebração do Papa”.

Depois ainda acontecerá, na quinta-feira de manhã, na Sala Paulo VI, a antiga tradição do encontro – conversa do Papa com o clero romano. Naquela ocasião, Bento XVI “falará espontaneamente com anotações preparadas”, e de acordo com o que disse Pe. Lombardi, “falará da sua experiência no Concílio Vaticano II”.

Permanecem inalterados também outros eventos, como os Angelus do domingo, as visitas ad limina dos bispos italianos, as audiências aos presidentes da Romania e Guatemala, a intervenção no final dos exercícios espirituais e a última audiência do 27 de fevereiro, que acontecerá provavelmente na Praça de São Pedro, “para dar possibilidade de uma participação maior na saudação ao Santo Padre”.

Respondendo a uma questão urgente, o porta-voz do Vaticano também falou da possível encíclica sobre a fé e a possibilidade de que seja publicada no final do mês. "Que eu saiba não - disse - porque não estava preparada para ser traduzida, publicada, terminada em pouco tempo".
MOSTEIRO MATER ECCLESIAE no Vaticano onde viverá o Papa após sua renúncia
"Se haverá depois outro modo em que Bento XVI nos fará participantes das suas reflexões sobre a fé, muito bem”, acrescentou. Porém, “a Encíclica como tal, publicada pelo Papa não podemos pensar que a teremos até o final do mês".

Perguntado sobre o motivo que fez o Papa não ter definido uma data que lhe tivesse dado mais tempo para entregar o importante documento, padre Lombardi respondeu “a escolha da data de uma comunicação e depois a sede vacante é uma escolha feita com uma reflexão ampla também em base a um calendário litúrgico e aos compromissos da Igreja".

"Esse - afirmou – era um bom tempo para ter um espaço de um anúncio e depois a convocação do conclave, de tal forma que se chegasse à Páscoa e ao período pascal com a eleição do novo Papa”. Consciente, portanto, da “sua condição de forças que diminuem”, Bento XVI considerou já o momento amadurecido para deixar que fosse um outro Papa a enfrentar os novos compromissos e concluir o Ano da fé.

Continuando o tema dos "tempos", Lombardi explicou que o Papa deixará as suas funções às 20hs e não às 24hs do dia 28 de fevereiro, porque naquela hora acaba “normalmente” a jornada de trabalho do Papa, “antes de retirar-se em oração e depois repousar”.

Grande preocupação dos jornalistas foi, então, compreender como se chamará ou vestirá Bento XVI quando volte ao Vaticano depois da sua estada em Castel Gandolfo. “São questões ainda não definidas” disse Lombardi.

Notícia certa é, pelo contrário, que Bento XVI “não voltará cardeal”, nem “será Bispo emérito de Roma” ainda se, por agora, não existem fórmulas oficiais. É certo, porém, que não terá nenhum papel no próximo conclave, enquanto que permanece a probabilidade de que, como é normal, o anel petrino seja quebrado.

O diretor da Sala de Imprensa do Vaticano confirmou o início em novembro dos trabalhos de restauração do mosteiro Mater Ecclesiae "no Vaticano, que há um tempo era ocupado por irmãs de clausura, onde o Papa residirá.

Embora tenha sido "ampliado com a construção de uma capela ao longo do muro que desce da torre da Colina”, o Mater Ecclesiae “permanece portanto um edifício pequeno – disse Lombardi – onde não podem estar unidos a residência das religiosas e a do Papa" .
Livro "Luz do Mundo"
No Brasil, foi publicado por
Edições Paulinas (SP)

Quando perguntado sobre o motivo que fez o Papa decidir morar neste lugar, o porta-voz respondeu que foi uma decisão do Papa, porque “ninguém lhe impõe onde deve ir ou o que deve fazer”. “O Papa conhece muito bem o Vaticano – acrescentou – e portanto sabia perfeitamente o que era o convento, onde estava e se poderia ser uma colocação adequada” que garantisse uma certa “autonomia e liberdade”.

Uma última questão levantada é a de que foi a mesma viagem a Cuba e ao México que determinou, devido à fadiga, a decisão do Pontífice de demitir-se. Na realidade, assinalou Padre Lombardi, Bento XVI tinha considerado esta hipótese já no livro-entrevista do 2010, Luz do Mundo, de Peter Seewald.

Portanto, era um tema já claro antes da viagem ao México e Cuba, “independente de eventos específicos". Além disso, depois da experiência da viagem intercontinental, o Santo Padre "não colocou no calendário outras grandes viagens, mas só afirmou que para Rio era normal que o Papa estivesse presente, mas não quer dizer que seria ele mesmo que estaria presente”.

Em conclusão, à questão "escaldante": conseguirão conviver dois Papas no Vaticano? Pe. Lombardi respondeu calmamente: "É uma situação nova, mas acho que não haverá nenhum problema para o seu sucessor". Na verdade, afirmou, “o sucessor provavelmente se sentirá sustentado pela oração, por uma presença intensa de amor e de participação da pessoa que mais do que qualquer outra no mundo pode compreender e participar das preocupações do seu sucessor”.

Fonte: ZENIT.ORG - 12 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.zenit.org/pt/articles/por-que-bento-xvi-renunciou?utm_campaign=diarioportughtml&utm_medium=email&utm_source=dispatch
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Tudo aquilo que ainda se gostaria de saber
sobre a renúncia de Bento XVI


Padre Federico Lombardi, porta-voz da Santa Sé, responde as perguntas e as dúvidas dos jornalistas sobre o que acontecerá 
depois do fatídico 28 de fevereiro


Pe. Federico Lombardi
Salvatore Cernuzio

Um Papa que renuncia é um evento que não acontece todos os dias, de fato, para ser mais preciso, não acontecia há 600 anos. Ainda são muitas, portanto, as curiosidades e perguntas que animam a imprensa e as pessoas comuns. No briefing de hoje com os jornalistas, no qual se apresentou o calendáro dos últimos eventos do Pontificado de Bento XVI, padre Federico Lombardi respondeu a várias questões sobre o que acontecerá antes e depois do fatídico 28 de fevereiro.

De particular importância são as informações fornecidas pelo porta-voz vaticano sobre o início do Conclave. De acordo com o previsto pela Constituição – explicou – a partir do começo da sede vacante abre-se espaço para as congregações dos cardeais.

Esses momentos serão muito importantes, mas também delicados, durante os quais, além das várias obrigações legais, se preveem conversações e intercâmbios entre cardeais sobre os problemas a serem resolvidos e a situação da Igreja, “de modo a amadurecer também para os membros do colégio, critérios e informações úteis sobre as eleições”.

"Há um trabalho que não leva às eleições rapidamente – sublinhou Lombardi – um discernimento que deve ser feito pelo colégio que chega até os dias chaves do conclave e eleição com uma preparação”. Por isso, a normativa prevê que o começo do conclave tenha que ser estabelecido entre 15 e 20 dias desde o começo da sede vacante.

Portanto – continuou o diretor da Sala de Imprensa vaticana – “se tudo correr normalmente, espera-se que o conclave possa começar entre o 15 e o 19 de Março", embora se ainda "não seja possível dar uma data exata porque são os cardeais que estabelecerão exatamente o calendário”.

Com relação às perguntas do nome e da vestimenta de Bento XVI depois do 28 de fevereiro, padre Lombardi declarou que, "ainda que essas questões possam parecer secundárias e formais”, exigem “importantes aspectos de caráter jurídico e implicações sobre as quais refletir, nas quais o Papa mesmo está envolvido”. Portanto, atualmente, não existem informações confiáveis.

Não haverá também um momento especialmente significativo ou juridicamente relevante que identificará o final do Pontificado do Papa Ratzinger. As normas do código de direito canônico – explicou Lombardi – preveem a opção de que o Papa possa renunciar ao seu ministério, com a condição de que a decisão seja “tomada livremente e manifestada devidamente”. "Isso o Papa fez - disse ele -. Então, não há nada mais a ser feito, a renúncia é válida na sua forma, dado que segunda-feira foi feita em latim, assinada pelo Papa e pronunciada na frente dos cardeais”.

Os mesmos cardeais que, diante das palavras do Papa mostraram vivamente a sua admiração, Sua Eminência Sodano em primeiro lugar... Mas agora, depois de três dias do shock inicial da notícia, qual é o espírito que paira no vaticano? A questão é curiosa e Pe. Lombardi responde que “para muitos o estado de ânimo fundamental ainda é de surpresa, e portanto de reflexão sobre o significado que esta decisão comporta para a Igreja e para a Cúria romana que está envolvida”.

"De minha parte - acrescentou - tenho um sentimento de grande admiração por esta decisão livre, humilde, responsável, lúcida do Santo Padre, com as motivações claríssimas que o levou à avaliação das suas forças que diminuem e do bem da Igreja”.

"Todos nós o vimos tornar-se mais frágil – continuou – ainda que esta avaliação competia só a ele avaliar a gravidade ou seriedade. Estou admirado pelo fato de que o Papa tenha feito este exame tendo vivido plenamente o seu ministério até hoje, e é admirável que ele analise “Cumpri o meu ministério até hoje, agora para que seja levado adiante adequadamente no mundo atual, precisa-se de mais forças”.

A renúncia de um Papa ao seu próprio ministério, reiterou o porta-voz da Santa Sé, “não foi inventada por Bento XVI”, ele “somente a colocou em prática, mostrando uma grande coragem para utilizá-la primeiro desta forma, com um espírito de fé e de amor à Igreja”.

E justamente por causa desta forte ligação com a Igreja e pela grande discrição e sabedoria que desde sempre caracteriza a sua personalidade, Bento XVI, apesar de que a partir do 1 º de março estará livre para mover-se dentro do Estado da Cidade do Vaticano, irá abster-se de toda forma de comunicação ou interferência.

Tanto a nível pessoal com os cardeais ou outros homens da Cúria, para deixar claro a sua plena liberdade e autonomia (isso justifica também a escolha de ir por um tempo para Castel Gandolfo). Seja a nível público, evitando declarações que poderiam “dar origem a um sentido de interferência ou de tomadas de posição influenciantes”. Porém, destacou Lombardi, “se trata-se de escrever um texto teológico espiritual, alimento útil para o Povo de Deus, é bem possível que isso aconteça”.

Por este motivo, o padre Lombardi disse, "não há nenhuma preocupação por parte do colégio cardenalício de que o Papa continue a residir no Vaticano”. Na verdade, “é uma sábia decisão permanecer dentro dos muros vaticanos, com a sua possibilidade de estudar e rezar. E também os cardeais estarão felizes de ter muito próximo uma pessoa que mais do que todas pode compreender quais são as necessidades espirituais da Igreja e do sucessor de Pedro”.

Entre as curiosidades também está o destino de monsenhor Georg Gaenswein. Continuará Prefeito na sede vacante ou irá com o Papa como secretário? "Eu acho que essas questões precisam ser respondidas por Dom Georg", disse Pe. Lombardi. É certo que a tarefa de Prefeito da Casa Pontifícia não decai, e sobre o papel de secretário pessoal Lombardi assegurou: "Se eu conheço o estilo do Santo Padre, eu não acho que ele queira recorrer, no seu retiro no mosteiro, a um bispo como secretário pessoal”.

Importante, também, a notícia de uma possível nomeação nos próximos dias, do novo presidente do IOR, dado que o processo "vinha acontecendo há algum tempo, e não foi interrompido porque o Papa anunciou a sua renúncia".

A última questão foi resolvida no final do briefing: "Se um dia Joseph Ratzinger como ex Papa discordasse de uma escolha do seu sucessor, quem teria razão?" Perguntam os jornalistas. O porta-voz respondeu simplesmente: "O Papa é o Papa, e como a teologia o ensina existem condições para a assistência do Espírito Santo. Condições raras que estão ligadas ao ministério petrino, ao serviço como Papa.” Portanto, "a pessoa que renunciou esse ministério não tem este título de assistência especial, de guia da Igreja universal, e portanto o problema não se coloca”.

Fonte: ZENIT.ORG - 13 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.zenit.org/pt/articles/tudo-aquilo-que-ainda-se-gostaria-de-saber-sobre-a-renuncia-de-bento-xvi?utm_campaign=diarioportughtml&utm_medium=email&utm_source=dispatch
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Perguntas que todos fazem sobre a
renúncia de Bento XVI


23 respostas curtas para 23 questões levantadas
BENTO XVI na Audiência Geral da Quarta-Feira - Vaticano
A renúncia de Bento XVI tem levantado questões legítimas não apenas no mundo católico. Algumas são práticas, enquanto outras têm implicações mais profundas em suas respostas.

O porta-voz oficial do Vaticano, padre Federico Lombardi, deu diversas conferências de imprensa, entre 12 e 15 de Fevereiro. Durante o breafing, vários jornalistas levantaram questões que Pe. Lombardi respondeu com as informações disponíveis no momento.

A partir dessas contestações, oferecemos uma seleção ágil e breve de 23 respostas sobre as questões mais discutidas nos dias de hoje.

A formulação das perguntas e respostas não foram reproduzidas literalmente, foram preparadas, trabalhadas e publicadas no bloghttp :/ / actualidadyanalisis.blogspot.com, com base no que o Pe. Lombardi respondeu. Seguem as respostas, embora não sejam explicitamente como formuladas. A conta Twitter: https://twitter.com/mujicaje tem enviado atualizações relacionadas aos dados enviados pela Assessoria de Imprensa da Santa Sé em tempo real.

1. Qual será a última aparição pública de Bento XVI como Papa?

A última aparição pública como Papa Bento XVI será na Audiência Geral de quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013 na Praça de São Pedro, no Vaticano. Em caráter extraordinário, a Audiência Geral contará com a liturgia da Palavra e momentos de oração. No dia seguinte, quinta-feira 28, está agendada uma audiência privada na Sala Clementina da Santa Sé com alguns cardeais. Será a última audiência de seu pontificado.

2. Bento XVI tem alguma doença grave?

Não, Bento XVI não tem nenhuma doença grave.

3. É verdade que Bento XVI tem um marcapasso?

Sim, é verdade que Bento XVI tem um marcapasso. Ele tem desde que era Cardeal-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Há algumas semanas atrás trocaram as baterias do marcapasso.

4. A encíclica sobre a fé que Bento XVI estava escrevendo vai ser publicada?

Não, não está previsto que a encíclica será publicada dado que Bento XVI não pôde concluir. Eventualmente, se for decidido torná-la pública, não entraria no ramo de "encíclica".

5. Por que Bento XVI escolheu as 20:00 horas do dia 28 de fevereiro para completar o seu ministério como Papa?

Porque é a hora que ele normalmente termina o seu dia de trabalho.

6. Para onde vai Bento XVI após sua aposentadoria como Papa?

Inicialmente, por um período de dois meses, para a residência pontifícia de Catel Gandolfo [a 50 km de Roma]. Depois, volta para o Vaticano para viver no mosteiro de clausura Mater Ecclesiae.

7. É verdade que Bento XVI decidiu demitir-se durante sua viagem apostólica ao México?

Durante sua viagem apostólica ao México e Cuba, Bento XVI amadureceu o tema de sua renúncia como uma etapa a mais no seu longo processo de reflexão e discernimento sobre este tema. Além disso, a viagem não teve qualquer relevância a este respeito.

8. Qual será o nome e o título de Bento XVI após 28 de fevereiro?

É um tema que ainda está sendo ponderando. Existe certa unanimidade de que manterá o nome de Bento XVI e o título será "Bispo emérito de Roma". No Anuário Pontifício "Bento XVI" continuará a ser o nome oficial utilizado.

9. Bento XVI vai participar do Conclave para eleger seu sucessor?

Não. Bento XVI não vai participar do Conclave para eleger o seu sucessor e nem fará parte do Colégio Cardinalício.

10. Como Bento XVI irá se vestir após 28 de Fevereiro?

Ainda não se sabe como Bento XVI se vestirá após 28 de Fevereiro.

11. A renúncia de um Papa está prevista na Igreja?

Sim. A renúncia de um Papa está prevista e regulamentada pelo Código de Direito Canônico.

12. O que vai acontecer com Dom Georg Gänswein, secretário particular de Bento XVI e prefeito da Casa Pontifícia?

Dom Georg Gänswein continua secretário particular de Bento XVI, vai acompanhá-lo em Castel Gandolfo e depois ao mosteiro Mater Ecclesia, e também permanece prefeito da Casa Pontifícia. Da mesma forma, é possível que o segundo secretário transfira-se para Castel Gandolfo e acompanhe Bento XVI por um tempo.

13. Quem vai morar com Bento XVI no mosteiro Mater Ecclesia, dentro do Vaticano, após a sua aposentadoria?

Os Memores (grupo de mulheres consagradas, membros da família pontifícia, que auxiliam o papa nas necessidades regulares de casa) e seu secretário pessoal, monsenhor Georg Gänswein.

14. A questão dos chamados "Vatileaks" (vazamento de documentos reservados) influenciou a decisão do Papa?

Não teve nenhuma relevância. Se você deseja receber informações corretas deve se limitar ao que disse o Papa sobre sua renúncia.

15. Aproximadamente, quando poderia começar o Conclave?

As datas mais convincentes indicam que iniciará entre 15 e 20 de março.

16. Bento XVI mudou as regras para a eleição de um Papa nas últimas semanas?

Não. Bento XVI não mudou recentemente as regras para a eleição de um Papa. Em 2007, ele fez uma pequena alteração para mudar o sistema de votação. Essa modificação de 2007 estabelece que é necessário uma maioria de dois terços na votação realizada no Conclave. O resto das normas vigentes continua a ser as da Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis.

17. Qual é o termo correto para descrever o que o Papa fez?

"Renúncia" seria o termo mais específico e técnico. "Demissão" não, porque pressupõe que alguém aceita a demissão para que tenha efeito e, no caso do Papa, isso não é necessário. "Abdicação" seria o termo mais adequado para um rei.

18. Existem lutas de poder no Vaticano?

Em toda instituição existe uma dinâmica que leva a opiniões diferentes, o que é sempre uma riqueza. A diferença e diversidade de opiniões são positivas se conduzem ao bem da própria instituição. Tais diferenças, no entanto, não devem ser exageradas porque não corresponderiam à realidade e às intenções das pessoas. Afirmar que há lutas de poder não corresponde à realidade do que está acontecendo na Igreja agora.

19. O jornalista Peter Seewald entrevistou Bento XVI antes de sua demissão?

O jornalista alemão Peter Seewald, que no passado se reuniu várias vezes com Joseph Ratzinger- Bento XVI, entrevistou o Papa Bento XVI faz dois meses e meio. A entrevista faz parte da biografia oficial de Bento XVI em que está trabalhando Seewald.

20. Bento XVI encontrará o novo Papa?

Não está programado que Bento XVI encontrará o novo Papa.

21. Por que Bento XVI decidiu ficar, depois de dois meses em Castel Gandolfo, num mosteiro no Vaticano e não retornar à Baviera, sua terra natal?

Bento XVI não mencionou claramente, mas a presença e oração de Bento XVI no Vaticano dá uma continuidade espiritual ao papado. Além disso, Bento XVI mora no Vaticano há mais de três décadas.

22. Quais são as razões exatas dadas por Bento XVI para a sua renúncia?

Na segunda-feira 11 de fevereiro, o Papa Bento XVI afirmou explicitamente que chegou “à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino” e também mencionou que para governar a Igreja e anunciar o Evangelho é necessário “o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado.

23. Qual é a agenda oficial de Bento XVI de 11 a 28 de fevereiro de 2013?

O calendário oficial de Bento XVI é o seguinte:
  • 23 de fevereiro: Conclusão dos exercícios espirituais
  • 24 de fevereiro: Último Angelus de Bento XVI na Praça de São Pedro
  • 25 de fevereiro: Audiência privada com alguns cardeais
  • 27 de fevereiro: Última Audiência Geral de Bento XVI
  • 28 de fevereiro: Às 11 horas saúda os cardeais na Sala Clementina do Vaticano. Às 17:00 horas se transfere para Castel Gandolfo. Às 20:00 horas começa a Sede Vacante.
Fonte: ZENIT.ORG - 20 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.zenit.org/pt/articles/perguntas-que-todos-fazem-sobre-a-renuncia-de-bento-xvi?utm_campaign=diarioportughtml&utm_medium=email&utm_source=dispatch

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REAÇÕES E ANÁLISES DIVERSAS


HANS KUNG - teólogo
Hans Küng:
"A decisão de Bento XVI merece grande respeito e é corajosa. Incrível!"

"A decisão de Bento XVI merece grande respeito, é legítima, compreensível e também corajosa. Nunca esperei que este Papa conseguisse me surpreender, algum dia, de maneira tão positiva". A afirmação é de Hans Küng, teólogo, em entrevista publicada pelo jornal italiano Il Messaggero, 12-02-2013.

Segundo Hans Küng, "Bento XVI tomou uma decisão quase revolucionária e secular. Como se fosse um simples Presidente da República ou um representante do mundo político. A renúncia ao seu cargo e a passagem para um novo pontífice. E isto para o bem da Igreja. Incrível! Nunca esperaria isto dele".

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517542-qa-decisao-de-bento-xvi-merece-grande-respeito-e-e-corajosaq-diz-hans-kueng
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Bento XVI deixa um legado cheio 
de altos e baixos


JOHN L. ALLEN JR. - jornalista americano
John L. Allen Jr.
National Catholic Reporter
11-02-2013

João Paulo II costumava ser conhecido como o papa das surpresas, sempre fazendo coisas que os pontífices romanos simplesmente não haviam feito antes. Com a eleição de Bento XVI, muitos acreditavam que a era das novidades papais havia chegado ao fim, já que Bento XVI sempre foi um homem da tradição, e as principais linhas do seu papado eram bastante previsíveis a partir das preocupações teológicas e culturais que ele havia manifestado durante uma longa vida pública.

No fim, no entanto, Bento XVI mostrou-se capaz de surpreender a todos, tornando-se o primeiro papa a renunciar voluntariamente ao seu ofício em séculos e o primeiro a fazer isso na era moderna saturada de mídia. Reconhecendo o que ele chamou de "incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado", Bento XVI anunciou que irá deixar o cargo efetivamente às 20h de Roma no dia 28 de fevereiro.

Imediatamente, a decisão de Bento XVI ganhou tantos amplos elogios como um ato responsável e humilde, quanto levantou uma montanha de perguntas. A principal delas: qual será exatamente o papel de um papa aposentado? E, naturalmente, muitos já começaram a especular quem irá captar o apoio de dois terços do Colégio dos Cardeais necessários para assumir o cargo mais alto da Igreja.

A decisão de Bento XVI também significa que o debate sobre o seu legado está oficialmente aberto agora e, assim como para todas as coisas, ele provavelmente irá esboçar vereditos muito diferentes dependendo de quem realizar a avaliação.
CONCLAVES MAIS RECENTES
Coluna 1: ano da eleição e Papa eleito
Coluna 2: número de dias para o novo Papa ser eleito
Coluna 3: rodadas de votação necessárias para a eleição

Considerado entre os teólogos católicos mais talentosos da sua geração, Bento XVI foi o que os historiadores da Igreja chamam de "papa ensinante", em oposição a um administrador. Sua paixão foi investida em seus documentos de ensino, seus discursos em viagens ao exterior, sua catequese regular no Vaticano e nos três livros sobre a vida de Cristo que ele publicou. Esse ensinamento muitas vezes chama a atenção das pessoas como profundas e surpreendentemente livres de margens ideológicas.

Mesmo alguns dos mais ferozes críticos do papa em outras frentes expressaram admiração.

Quando Bento XVI publicou a sua encíclica Deus Caritas Est, em 2005, sobre o amor humano, os aplausos também vieram do teólogo suíço Hans Küng, um antigo colega de Joseph Ratzinger e uma voz de liderança da dissidência católica liberal.

"O Papa Ratzinger, com o seu inimitável estilo teológico, aborda uma riqueza de temas do eros e do ágape, do amor e da caridade", disse Küng. Ele chamou a encíclica de "um bom sinal" e expressou a esperança de que fosse "recebida calorosamente, com respeito".

Muitos observadores acreditam que quatro discursos fundamentais proferidos por Bento XVI – em Regensburg, na Alemanha, em 2006; no Collège des Bernardins, em Paris, em 2008; no Westminster Hall, em Londres, em 2010; e no Bundestag, na Alemanha, em 2011 – serão lembrados como obras-primas que lançaram as bases para uma simbiose entre fé, razão e modernidade.

Se Bento XVI nunca foi o "queridinho da mídia" como o seu antecessor, mesmo assim ele se saiu admiravelmente bem na cena pública. Suas viagens atraíram multidões entusiasmadas, e a participação em suas audiências públicas, na realidade, ultrapassaram os números de João Paulo II. Ele ainda desenvolveu um toque popular, lançando a sua própria conta no Twitter e inspirando um livro infantil supostamente escrito por seu gato, Chico [Joseph and Chico: The Life of Pope Benedict XVI as Told by a Cat, de Jeanne Perego].

No entanto, para cada triunfo, o pontífice cerebral também correu precipitadamente rumo à crise.

Logo no início, o discurso de Bento XVI em Regensburg provocou o protesto islâmico por causa de sua citação de um imperador bizantino que ligava Maomé à violência. Igrejas foram bombardeadas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, enquanto uma irmã religiosa italiana foi morta a tiros na Somália. No aniversário de um ano do discurso, um padre missionário foi morto na Turquia.
Tradução do título:
ATAQUE A RATZINGER

Era um prenúncio do que estava por vir. Em 2011, os jornalistas italianos Andrea Tornielli e Paolo Rodari publicaram um livro de 300 páginas que documentava as crises mais notórias durante os anos de Bento XVI, incluindo:

Os grandes escândalos de abuso sexual, que explodiram nos Estados Unidos em 2002 e depois varreram a Europa em 2010. Essa segunda onda trouxe um exame crítico do histórico pessoal de Bento XVI, incluindo um caso quando ele era arcebispo de Munique no fim dos anos 1970, em que um padre pedófilo escapou pela tangente sob a supervisão vaticana enquanto a instituição se arrastava para tomar uma atitude. Como papa, havia uma crítica persistente de que as desculpas de Bento XVI e os encontros com as vítimas não eram acompanhados pela ação, incluindo a responsabilização de bispos errantes.

A decisão de Bento XVI em 2007 de tirar o pó da missa em latim, incluindo uma controversa oração da Sexta-Feira Santa pela conversão dos judeus. No fim, o Vaticano reviu a oração para satisfazer as preocupações judaicas, levantando a questão de por que alguém não pensou em fazer isso antes de a tempestade explodir.

A revogação da excomunhão de quatro bispos tradicionalistas em 2009, incluindo um que negava que os nazistas haviam usado câmaras de gás e que afirmava que as provas históricas são "extremamente contra" o fato de Adolf Hitler ser o responsável pela morte de 6 milhões de judeus. O caso trouxe consigo uma angustiada carta pessoal de Bento XVI para os bispos do mundo, pedindo desculpas pela forma como foi tratado.

Os comentários feitos por Bento XVI a bordo do avião papal para a África em 2009, no sentido de que os preservativos pioram a Aids. Dentre outras coisas, essas palavras trouxeram consigo uma primeira censura de um papa por parte do parlamento de um país europeu (Bélgica), enquanto o governo espanhol transportou um milhão de preservativos para África em protesto.

O fato de essa ser uma lista longe de estar completa é uma medida de como as coisas às vezes eram ruins.

Os autores também poderiam ter incluído a viagem de Bento XVI em 2007 para o Brasil, onde ele pareceu sugerir que os índios deviam ser gratos aos colonizadores europeus; a reação a um decreto de 2009 de aproximar da santidade o controverso Papa Pio XII, da época da Grande Guerra; e o surreal "caso Boffo", de 2010, com acusações de que altos assessores papais haviam fabricado documentos policiais falsos para difamar um jornalista católico italiano, incluindo a alegação de que ele havia assediado a namorada de um homem com quem ele ele queria continuar um caso gay.

Esse padrão atingiu um crescendo com o notório caso "Vatileaks" em 2012, envolvendo uma onda de documentos secretos do Vaticano que apareceram nos meios de comunicação italianos, em que os mais sérios apresentavam alegações de corrupção financeira e nepotismo. Uma investigação acabou com a prisão, o julgamento, a condenação e o perdão de Paolo Gabriele, um leigo italiano casado que atuava como mordomo de Bento XVI desde 2006, por ter sido a "toupeira" dos vazamentos.

Para muitos observadores, o caso capturou o Vaticano em sua postura menos edificante e fomentadora de combate, encobrimentos e desordem.

Na verdade, o histórico de Bento XVI como um administrador também incluiu alguns avanços. Em grande parte, ele nomeou pessoas de integridade pessoal para cargos de chefia; ele submeteu a Igreja a várias reformas em torno do abuso sexual; e lançou uma espécie de glasnost financeira, incluindo a abertura do Vaticano pela primeira vez à inspeção externa das suas políticas antilavagem de dinheiro. A narrativa geral de disfunção, no entanto, tornou essas histórias difíceis de contar.

Bento XVI evitou amplamente a geopolítica, raramente posicionando-se na linha de frente da história, como João Paulo II. Seu foco estava mais na vida interna da Igreja, chamando-a a um senso mais forte de identidade católica tradicional diante de uma era altamente secular. Nesse sentido, Bento XVI consolidou a direção "evangélica" mais conservadora definida por João Paulo II.

Bento XVI repetidamente denunciou o casamento homossexual, o feminismo radical e uma "ideologia do gênero", provocando a reação de grupos de mulheres, de liberais seculares e da ala mais progressista do seu próprio rebanho. Ele levou a prática litúrgica, uma paixão especial, para um sentido mais tradicional. Ao mesmo tempo, alguns aspectos do seu ensino também irritaram a direita, incluindo a sua crítica ao capitalismo e uma forte ênfase ambiental, razão pela qual foi apelidado de "papa verde".

O pontífice também trabalhou o músculo disciplinar. Uma repressão de grande porte foi lançada contra a Leadership Conference for Women Religious, o principal grupo de lideranças das ordens femininas dos Estados Unidos; teólogos liberais foram censurados, incluindo vários padres irlandeses de alto perfil e a Ir. Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia, nos Estados Unidos; e o padre norte-americano Roy Bourgeois foi excomungado devido ao seu apoio à ordenação de mulheres.

No fim, o primeiro rascunho da história talvez se resuma a isto:
  • Bento XVI era um magnífico intelectual público, 
  • uma mistura complexa como administrador, 
  • um introvertido como estadista, e 
  • um líder da Igreja cuja "política de identidade" animou alguns e horrorizou outros.
Independentemente de qualquer outra coisa que se possa dizer, ninguém contesta que Bento XVI era um afiado crítico cultural. Ele fez perguntas perspicazes tanto para a Igreja quanto para o mundo, e ofereceu suas próprias respostas provocadoras, provando assim que o catolicismo institucional ainda tem algum gás intelectual de sobra no tanque. Nesse sentido, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, pode ter oferecido o melhor epitáfio durante a despedida ao pontífice no aeroporto de Birmingham, no dia 20 de setembro de 2010, após uma viagem de quatro dias na Escócia e na Inglaterra.

"Santo Padre", disse ele, "você nos fez sentar e pensar".

Tradução de Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517535-bento-xvi-deixa-um-legado-cheio-de-altos-e-baixos
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Renúncia de pontífice abre espaço para
mudanças de rumo

JOHN L. ALLEN JR.
ESPECIAL PARA O “NATIONAL CATHOLIC REPORTER”
Papa Bento XVI
As pessoas vão refletir por algum tempo ainda sobre a surpreendente decisão do papa Bento 16 de renunciar ao pontificado. Aqui e agora, contudo, a pergunta mais premente é o que ela representa para a eleição do próximo pontífice.

Num primeiro momento, a tendência foi imaginar que realizar um conclave com o papa anterior ainda vivo reduziria a probabilidade de os cardeais votarem por mudanças. A lógica era que, enquanto o papa antigo estivesse por perto, os cardeais hesitariam em fazer qualquer coisa que pudesse ser vista como desrespeito.

À medida que a poeira vem baixando, contudo, um consenso diferente começa a emergir. A nova visão geral é que a renúncia de Bento 16 pode, na realidade, abrir espaço para um conclave mais inclinado a colocar a igreja num rumo diferente, por pelo menos três razões.

Em primeiro lugar, a decisão do papa é uma ruptura dramática com a normalidade. Serve para nos fazer lembrar que mesmo uma instituição conservadora e aferrada às tradições é capaz de surpreender.

Nesse sentido, o exemplo de Bento 16 pode inspirar alguns cardeais a abrir a cabeça, a se dispor a correr riscos, dando um passo novo.

Em segundo lugar, a renúncia carrega em si a lógica de que a igreja precisa de um reinício. Afinal, Bento 16 não está passando por nenhuma crise de saúde imediata; ao que consta, ele poderia ter prosseguido no cargo.

Entretanto, ao declarar que não possui a força necessária para enfrentar "questões de relevância profunda para a vida da fé", postuladas por um mundo em transformação acelerada, Bento 16 concretamente assinalou a necessidade de enveredar por um rumo novo.

Em terceiro lugar, sua decisão de separar o final de seu pontificado do fim de sua vida significa que o período que antecede o conclave não será dominado pelas homenagens elegíacas que sempre são feitas quando morre qualquer grande celebridade global -homenagens essas que tendem a exagerar as virtudes da pessoa e minimizar seus defeitos.

Em outras palavras, este será um conclave livre do "efeito funeral" que esteve tão presente em abril de 2005.

Naquela época, um tsunami de fieis enlutados converteu a área em torno da praça São Pedro num imenso oceano de humanidade.
Isso gerou o sentimento de que João Paulo 2º tinha sido um triunfo extraordinário, levando muitos cardeais no conclave a buscar a continuidade acima de tudo.

É claro que também haverá manifestações de afeto quando Bento 16 sair de cena. Ontem mesmo, uma multidão o saudou com gritos de "viva il papa!" e aplausos contínuos. Nada, porém, vai se aproximar do clima triunfal visto em Roma em 2005.

Sem essa dinâmica, muitos cardeais podem fazer uma avaliação mais isenta do papado que chegou ao fim, reconhecendo pontos fortes, mas também debilidades.

Assim, mesmo que todos os cardeais que vão votar em março tenham sido nomeados por João Paulo 2º ou Bento 16 e sigam posições iguais a eles em relação à maioria dos tópicos, há várias áreas em que uma mudança de rumos seria plausível.

Podemos imaginar um papa não ocidental, por exemplo, ou um papa mais sintonizado com o discurso da cultura popular, menos inclinado a ter o secularismo como ideia fixa ou, ainda, dotado de habilidade para administração de empresas, que pudesse finalmente implementar uma reforma séria do próprio Vaticano (ou, pelo menos, frear os tropeços ocasionais que tanto o prejudicam).

Todas essas possibilidades representariam mudanças reais. Quanto mais a renúncia de Bento penetra na consciência das pessoas, mais plausíveis começam a parecer alguns desses cenários.

Fonte: Folha de S. Paulo - Mundo/Transição na Igreja - Quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013 - Pg. A12 - Internet: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/93731-renuncia-de-pontifice-abre-espaco-para-mudancas-de-rumo.shtml
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A quem Bento XVI deixa órfão


MASSIMO FAGGIOLI - historiador italiano
Massimo Faggioli *
HuffPost.it
11-02-2013

O Papa Bento XVI renunciou, e é um fato sem precedentes na história do pontificado global moderno: não está claro se essa renúncia irá inaugurar um precedente, ao contrário das poucas renúncias ocorridas na época medieval.

A Igreja não é uma ditadura em que o pontífice é um soberano que age em um "estado de exceção": o cânone 332 do Código de Direito Canônico prevê essa possibilidade. Mas há outra forma de interpretar a renúncia, sugerida pela fórmula usada por Bento XVI para explicar a decisão: ingravescentem aetatem. Essa fórmula latina não é usada apenas para explicar o peso dos anos, mas também remete palavra por palavra a um motu proprio de Paulo VI, a Ingravescentem aetatem, que em 1970 introduzia o limite de idade de 75 anos para os cardeais da Cúria Romana (e de 80 anos para entrar no conclave e eleger o novo papa), depois que um documento do Concílio Vaticano II, em 1965, havia introduzido o limite de idade para 75 anos para os bispos diocesanos.

Há uma leitura pessoal dessa renúncia: os observadores não teriam ficado surpresos com a renúncia de Bento XVI nos primeiros anos do pontificado, especialmente entre 2006 e o início de 2009, os mais difíceis, pontilhados pelos incidentes diplomáticos do discurso de Regensburg e do caso do bispo lefebvriano antissemita Williamson. Depois, em 2010 começaram as reverberações dos escândalos dos abusos sexuais nos Estados Unidos e na Europa que elevaram Bento XVI a alvo primário (em alguns casos, até mesmo nos tribunais). 

Um papa eleito há quase sete anos com uma "marca" muito precisa de conservador teve que enfrentar ventos contrários como nenhum papa da era midiática, dentro e fora da Igreja. A isso, somaram-se exemplos de grosseira mismanagement da Cúria Romana por parte do seu inner circle que complicaram uma situação produzida por um conclave que elegeu um teólogo eminente assim como divisivo.

Mas há também uma leitura funcional dessa renúncia, que em certo sentido é testemunha da experiência conciliar de Joseph Ratzinger. O Concílio Vaticano II foi o início da redefinição da job description para todos os ministros da Igreja, mas especialmente para os bispos católicos de todo o mundo: um trabalho cada vez mais complexo, que requer competências típicas de um líder, de um mediador, de um comunicador especialista nos meios de comunicação, e de um administrador delegado – mas sempre sujeito ao Vaticano e com um mandato que sempre termina aos 75 anos de idade para os bispos. 

De hoje em diante, na teologia do papado e na ciência canônica, alguém poderia afirmar, sem medo de ser desmentido, que aquela lei da Igreja sobre a renúncia dos bispos também se aplica ao papa, bispo de Roma. Mas muitíssimas questões permanecem em aberto. Ou seja, qual será o papel do papa no conclave e na sua preparação. Sobre o futuro de Joseph Ratzinger – ex-Bento XVI, primeiro papa emérito. Sobre a agenda de Ratzinger, se ela permanecer válida para o conclave e para o futuro papa.

A renúncia deixa teológica, espiritual e politicamente órfãos muitos católicos, eclesiásticos e leigos neste momento: na Cúria Romana, entre os bispos, entre os teólogos, e, last but not least, entre os neoconservadores italianos e norte-americanos (e também entre alguns ex-marxistas de marca ratzingeriana). 

Quanto à Itália, esse pontificado havia escolhido desde o início não se deixar envolver mais tanto na política italiana, beirando várias vezes o pecado da omissão. As eleições políticas italianas de 2013, que ocorrerão com a sede apostólica substancialmente vacante, são a epígrafe de um pontificado que – é preciso dizer – sempre viu na dimensão política e jurídica da Igreja e do papado dois elementos de perturbação mais do que de ajuda na missão da Igreja. 

Nesse sentido, um pontificado mais pós-conciliar do que conciliar, e, no caso de Ratzinger, essa é uma suma ironia. Precisamos nos perguntar quanto a Igreja Católica Romana mundial pode se permitir, hoje, uma visão tão espiritualista de si mesma.

* Massimo Faggioli é historiador italiano, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos Estados Unidos da América.

Tradução de Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517533-a-quem-bento-xvi-deixa-orfao-artigo-de-massimo-faggioli
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Ratzinger é brilhante como teólogo, 
mas fracassou como papa


LUIZ FELIPE PONDÉ - filósofo
Luiz Felipe Pondé *
Folha de S. Paulo
12-02-2013

Joseph Ratzinger é um dos maiores teólogos vivos do cristianismo. Como papa Bento XVI, fracassou.

Conservador, um tanto liberal no começo de sua carreira, Bento XVI iniciou seu papado com um projeto, já em curso quando era a eminência parda intelectual de João Paulo II, de pôr "medida" na herança do Concílio Vaticano II, verdadeira "revolução liberal" na Igreja Católica.

Já nos anos 80 atacava a teologia da libertação latino-americana por considerá-la certa quanto ao carisma profético bíblico de procurar justiça no mundo, mas errada quanto a assumir o marxismo como ferramenta de realização desta justiça.

Bento 16 foi um duro crítico da ideia de que a igreja deva aceitar soluções modernas para problemas modernos.

Nesse sentido, apesar de ter resistido bravamente, com a idade e a fraqueza que esta implica, acabou por ser um papa acuado pelas demandas modernas feitas à igreja e por uma incapacidade de pôr em marcha sua "infantaria", que nunca aceitou plenamente seu perfil de intelectual alemão eurocêntrico.

Sua ideia de igreja é a de um pequeno grupo coeso de crentes, fiéis ao magistério da igreja (conjunto de normas para condução moral da vida), distante das "modas moderninhas".

Quais seriam algumas dessas demandas modernas? Diálogo simétrico com outros credos (multiculturalismo), casamento gay, divórcio, sacerdócio das mulheres, fim do celibato, uso de contraceptivos, aborto, punição pública de padres pedófilos (a igreja deveria passar esses padres para a Justiça comum), aceitação de avanços da medicina pré-natal como identificação de fetos sem cérebro e consequente aborto, alinhamento político do clero com causas sociais e políticas do terceiro mundo - enfim, desafios típicos do contemporâneo.

Bento XVI esbarrou com o fato de que a maior parte dos católicos militantes hoje é de países pobres (afora o caso dos EUA, o cristianismo é uma religião de país pobre).

Os fiéis, portanto, estão mais próximos de um discurso contaminado pelas teorias políticas de esquerda, que fala de justiça social como um direito "divino" e aproxima Jesus de Che Guevara, do que da complicada discussão acerca dos excessos do iluminismo racionalista ou da crítica bíblica que tende a humanizar Cristo excessivamente em detrimento de sua divindade.

Seu próprio clero (sua "infantaria") ajudou no fracasso de seu papado, resistindo sistematicamente à "romanização da igreja", o que em jargão técnico significa centralização das decisões relativas ao cotidiano da instituição na lenta burocracia do Vaticano, com sua típica alienação europeia, distante do "caos" do mundo real do Terceiro Mundo. O Vaticano é muito europeu, inclusive em sua decadência como referência para o mundo no século XXI.

Mas há dimensões que transcendem as dificuldades específicas de seu projeto conservador e tocam dificuldades da Igreja Católica contemporânea como um todo.

A igreja hoje tem um sério problema de formação de quadros. Antes era "um bom negócio" entrar para a igreja; hoje, quem o faz, salvo casos de grande vocação mística e espiritual ou de revolta contra as ditas "injustiças sociais", é muitas vezes gente sem muita opção de vida.

Quando não, tal como é visto por parte da população secular, gente com desvios sexuais graves.

Os cursos de formação do clero, quando não totalmente contaminados pelos próprios teóricos que João Paulo II chamava em sua encíclica "Fides et Ratio" ("Fé e Razão") de "pensadores da suspeita" contra a fé e a razão (Marx, Nietzsche, Freud, Foucault), são fracos, com professores mal formados e conteúdos vazios. Claro que existem exceções, que, como sempre, em sendo exceções, confirmam a regra.

Enfim, o papado de Bento XVI fracassou, em grande parte, em razão do fogo amigo: sua própria infantaria.

A Igreja Católica agoniza diante de um mundo que cada vez é mais opaco para quem pensa, como ela, que a vida seja algo mais do que conforto, prazer e liberdade pra transar com quem quisermos e quando quisermos.

* Luiz Felipe Pondé (nascido em Recife, 1959) é um filósofo e ensaísta conservador brasileiro de origem judaica, tem uma linha de pensamento marcada pelo pessimismo e pelo conservadorismo. Fez seu doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade de Paris VIII. Participou de pós-doutorado na Universidade de Tel Aviv. Atualmente é Vice-Diretor e Coordenador de Curso da Faculdade de Comunicação da FAAP; professor de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Luiz_Felipe_Pond%C3%A9

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517536-ratzinger-e-brilhante-como-teologo-mas-fracassou-como-papa
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"É um fato tão novo que pode
mudar muito a Igreja"

Entrevista com Juan Arias

JUAN ARIAS - jornalista
Vinicius Neder
O Estado de S. Paulo
12-02-2013

"É um fato tão novo e tão revolucionário que pode mudar muita coisa na Igreja", disse o escritor e jornalista espanhol Juan Arias, sobre a renúncia de Bento XVI. Arias acompanhou o Concílio Vaticano II, na década de 1960, pelo agora extinto jornal Pueblo, de Madri, e passou 14 anos em Roma por El País. Autor de O Grande Segredo de Jesus, é correspondente de El País no Rio há 14 anos.

Eis a entrevista.

Como essa renúncia pode ser avaliada?

É um fato histórico. O primeiro papa que renuncia na normalidade do papado é este. O fato é tão novo e tão revolucionário que pode mudar muita coisa.

Que mudanças práticas poderia haver?

Em primeiro lugar, cai o tabu de que o papa tem de ser papa até o fim. Na sucessão, seguramente haverá muita influência de Bento XVI. Será a primeira vez na história que se vai nomear um papa com outro ainda vivo. Que influência ele terá no conclave? Não temos como saber, porque é inédito.

Como o sr. acha que ele vai influenciar?

Essa é a grande incógnita. Se ele fizer o que diz o comunicado, que ele vai continuar ajudando a Igreja no silêncio da oração, e não mantiver contato com os cardeais, aí terá uma influência indireta. Mas se ele for recebendo os cardeais nos 15 dias antes do conclave, falando com eles, aí é diferente.

Pelo perfil dele não é possível imaginar o que fará?

Ele é o papa mais conservador destes últimos tempos. Foi um grande inquisidor, acabou com a Teologia da Libertação e - justo ele - faz o gesto mais progressista da história da Igreja. Em primeiro lugar, ele é um grande político. Tão político que fez tudo no conclave anterior para ser eleito. Não sei até que ponto renunciou a sua face política com esse gesto.

As questões de saúde são motivo suficiente para a renúncia?

O papa João Paulo II estava muito pior e não renunciou. Pode ser alguma outra coisa. Parece que esses escândalos relacionados ao mordomo (Paolo Gabriele, mordomo de Bento XVI que foi julgado e condenado pela acusação de vazar documentos confidenciais do Vaticano) estariam relacionados à conspiração de um grupo dentro da Cúria Romana, preparando já um sucessor. Eles querem a volta de um papa italiano. Pode ser que ele quisesse desmascarar isso.

Pode ser um papa mais jovem?

Todo cardeal tem aspiração a ser papa. Um papa muito jovem, como (foi ao assumir o posto) João Paulo II, quando ele morreu parece que vários cardeais falaram: "Basta, é a última vez que colocamos uma papa jovem". Mas pode ser que não seja alguém de 80 anos.

É a hora de um papa de fora da Europa, latino-americano ou africano?

Isso não é garantia de abertura ou progressismo. Pode ser um papa latino-americano mais conservador do que todos os europeus juntos. Já conheci cardeais africanos que se envergonhavam de ser africanos e se apresentavam como europeus.

O novo papa deverá vir à Jornada da Juventude, no Rio?

Acredito que, dado que já está tudo adiantado, ele não vai renunciar a vir.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517540-e-um-fato-tao-novo-que-pode-mudar-muito-a-igreja
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Cúria está dividida por jogos de
poder e denúncias de corrupção

ENTREVISTA - GIANLUIGI NUZZI

GIANLUIGI NUZZI - jornalista italiano com o seu livro nas mãos
Graciliano Rocha
ENVIADO ESPECIAL A ROMA

Para jornalista italiano responsável por revelar documentos vazados pelo mordomo do papa, Bento 16 não teve força para empreender reforma na igreja

Um dos responsáveis pelas denúncias que deflagraram o escândalo conhecido como "Vatileaks" - o vazamento de documentos secretos da Santa Sé -, o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi, 43, disse que a renúncia de Bento 16 foi causada pela perda de poder do papa para reformar a cúpula da igreja.

Em entrevista à Folha, ele afirmou que a elite administrativa do Vaticano está rachada por intrigas e suspeitas de corrupção.

Nuzzi é autor de "Sua Santità" ("Sua Santidade", em português), livro que aponta um crescente antagonismo entre o papa e o número dois do Vaticano, o secretário de Estado Tarcisio Bertone.

Os documentos que abasteceram o livro de Nuzzi e a imprensa italiana provocaram a prisão e a condenação de Paolo Gabriele, o mordomo do papa que foi acusado de ser o autor do vazamento. Gabriele recebeu indulto do pontífice.

O escândalo jogou sobre o cardeal Bertone a suspeita de ter promovido uma campanha para afastar o arcebispo Carlo Maria Viganò, responsável pelas licitações do Vaticano, que havia denunciado casos de corrupção.

A seguir, a entrevista que Nuzzi concedeu à Folha.

Folha - Na sua opinião, o que pode ter provocado a renúncia do papa: o cansaço alegado por Bento 16 ou as divisões internas da igreja?
Gianluigi Nuzzi - Eu acredito que o papa não tem mais a força pra reformar a Cúria Romana [cúpula da igreja], que está dividida por brigas, denúncias de corrupção e jogos de poder. Acredito que Bento 16 não confie mais em seu secretário de Estado. Os dois não conseguem mais prosseguir juntos na condução da igreja no mundo.

Por que Bento 16 não prevaleceu?
Gianluigi Nuzzi - O papa se chocou com blocos de poder, que exigem uma reforma radical de cunho político. Isso não é próprio de um papa que é e continuará sendo um teólogo.

O futuro papa vai encontrar que ambiente na Santa Sé?
Gianluigi Nuzzi - O futuro dependerá muito daquilo que escolherão os cardeais não italianos - se saberão interpretar e entender esse mal-estar na Cúria e se saberão unir forças em prol de candidatos não italianos. Até porque os protagonistas das histórias contadas em meu livro são todos italianos.

O senhor acredita que o vazamento de documentos teve alguma influência nessa decisão do papa?
Gianluigi Nuzzi - A influência não é sobre sua renúncia. O problema não é que certas coisas se tornem públicas, mas quem são os protagonistas dessas histórias, os protagonistas negativos.

Os italianos vão eleger o novo Parlamento neste mês. A decisão do papa repercute de algum modo no processo?
Gianluigi Nuzzi - Ela deixa um sinal de confusão em todos.

Fonte: Folha de S. Paulo - Mundo/Transição na Igreja - Quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013 - Pg. A11 - Internet: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/93725-curia-esta-dividida-por-jogos-de-poder-e-denuncias-de-corrupcao.shtml
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"Renúncia irritou ala conservadora da Igreja"

Entrevista com Marco Politi
Vaticanista italiano


Jamil Chade e Filipe Domingues

Renúncia foi um gesto revolucionário - a única grande reforma de seu pontificado


MARCO POLITI - especialista italiano em Vaticano
A decisão de Bento XVI de renunciar foi um gesto de "realpolitik" *, pragmático. A avaliação é de um dos principais vaticanistas, o italiano Marco Politi, que acaba de publicar um livro sobre o pontificado de Bento XVI [ver foto da capa abaixo]. Em entrevista ao Estado, Politi apontou que, no fundo, a demissão de Bento XVI foi sua "única grande reforma" nos oito anos de seu pontificado. Mas uma iniciativa que ficará para a história e fará muitos pensarem sobre o futuro da Igreja.

Segundo o especialista, a ala mais conservadora da Igreja teria ficado irritadíssima com Bento XVI por conta de sua renúncia, temendo uma "desmistificação" do cargo de papa a partir de agora. Eis os principais trechos da entrevista:

Como foi a reação dentro do Vaticano diante da renúncia?

Marco Politi: Os conservadores temem a decisão. O temor é de que isso possa causar uma desmistificação do papel do papa. E que, no futuro, um papa possa ser colocado sob pressão para se demitir em determinadas situações. Mas a decisão foi muito lúcida e muito bem planificada. Foi um gesto revolucionário - a única grande reforma de seu pontificado, um exemplo e um estímulo à reflexão. Na Alemanha, há cardeais que já falam abertamente de que seria justo colocar um limite de idade para o papa. Bento XVI completou a reforma de João Paulo II, estabelecendo idades para cardeais e sua participação no conclave. Agora, mandou a mensagem de que um papa pode, sim, renunciar. Nos tempos modernos, não se pode permitir um papa doente.

Fala-se muito de que a renúncia foi um ato político. Como o sr. avalia isso?

Marco Politi: Foi um gesto de realpolitik e de reconhecimento da incapacidade sua de cuidar da Igreja, pois não basta ser um intelectual ou teólogo. Para guiar a instituição de 1 bilhão de fiéis, ele precisava de um pulso de governador.

Há o risco de que católicos no mundo não entendam essa decisão de Bento XVI?

Marco Politi: Acho que a massa dos fiéis entendeu. Muitos ficaram surpresos e, no começo, desorientados. Mas não houve uma oposição ou mau humor. Na Praça São Pedro, não vimos nenhum grupo pedindo que ele fique. Entenderam que foi justamente uma troca de governo. O papa foi muito pragmático.


Quais são as perspectivas para o conclave, diante dessa situação inédita?

Marco Politi: Dentro do conclave, todas as cartas estão embaralhadas. Será um conclave muito complicado. Em 2005, havia um grupo forte de apoio e de mobilização pela candidatura de Ratzinger. Mas ele era o único ator mais forte. O cardeal Martini seria uma opção, mas estava doente. Hoje, temos vários candidatos. Mas nenhum deles tem um pacote de votos claro. O vencedor será um candidato de centro. Não poderá ser alguém de continuidade de Ratzinger. Mas não sabemos se essa pessoa está disposta a fazer as reformas que a Igreja precisa para enfrentar seus desafios.

Quais são esses desafios?

Marco Politi: O primeiro é a crise de padres. Não há padres para todas as paróquias. Outro é o papel das mulheres dentro do Vaticano. Há ainda o tema da sensualidade no mundo moderno, o homossexualismo, o divórcio. Finalmente, há a questão do papel do papa.

Um papa do mundo em desenvolvimento estaria sendo considerado?

Marco Politi: A primeira questão é se haverá um papa italiano ou não. Os 29 cardeais italianos no conclave estão sobrerrepresentados. Mas isso não quer dizer que todos eles queiram um italiano. Há divisões. No passado, eram os estrangeiros que pediam para que o papa fosse um italiano. Mas há a impressão depois que os escândalos de corrupção foram revelados de que muitos querem que a internacionalização do papado continue. Ele poderá vir da América do Norte ou Sul. Eu dou menos chances aos africanos. Na América Latina existem vários candidatos. Mas há que ver se haverá um mais forte que concentre a atenção. Em 2005, no conclave, os latino-americanos fecharam um acordo de que apoiariam um nome da região se um cardeal começasse a se destacar. 

* Realpolitik (do alemão real "realístico", e Politik, "política") refere-se à política ou diplomacia baseada principalmente em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas. O termo foi colocado por Ludwig August von Rochau, escritor e político alemão do século XIX, seguindo a idéia de Klemens Wenzel von Metternich de achar caminhos para equilibrar as relações de poder imperialista ao nível europeu. Equlibrar tal poder para manter a pentarquia européia era o meio de manter a paz, e cuidadosos praticantes de Realpolitik tentaram evitar corridas armamentistas.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Vida/O Fim do Pontificado: Reação - Quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013 - Pg. A15 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,renuncia-irritou-ala-conservadora-da-igreja,996683,0.htm
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VatiLeaks estimulou decisão,
diz revista

ROMA - O Estado de S.Paulo


Segundo a publicação "Panorama", Bento XVI estaria enfrentando resistências na Cúria após pedir transparência


Tradução:
17 de dezembro de 2012: um relatório
secreto convence, definitivamente, Bento XVI
a demitir-se
Com um gesto revolucionário que confirma
a grandeza de seu papado.
A revista italiana Panorama diz que o papa Bento XVI renunciou na segunda-feira após ter recebido uma nova informação sobre o escândalo VatiLeaks, o vazamento de documentos oficiais do Vaticano que revelava uma "forte resistência" na Cúria Romana sobre as medidas de transparência que havia pedido.

Segundo a matéria da publicação do grupo Mondadori, propriedade da família Berlusconi, em 17 de dezembro Bento XVI recebeu os três cardeais que nomeou para investigar o vazamento de seus documentos pessoais e do Vaticano que acabaram publicados no polêmico livro Sua Santidade, do italiano Gianluigi Luzzi, e levaram à prisão e condenação do então mordomo do papa, Paolo Gabriele.

Os membros dessa comissão são os cardeais Julián Herranz, espanhol, de 82 anos; Salvatore De Giorgi, italiano, de 82 anos; e Jozef Tomko, eslovaco, de 88 anos, que interrogaram cerca de 30 pessoas no Vaticano.

Os três cardeais apresentaram um volumoso relatório com documentos, entrevistas e interrogatórios que revelava - segundo a revista - uma "grande resistência da Cúria a mudanças e muitos obstáculos contra as ações pedidas pelo papa para promover a transparência".

Segundo a revista, o papa ficou "muito impressionado" com as informações e só teve forças para conversar com seu irmão, Georg. "Admitiu, talvez pela primeira vez, ter descoberto um lado da Cúria Vaticana que jamais havia imaginado. Antes do Natal, começou a pensar seriamente em sua demissão", afirma Panorama, em um comunicado distribuído aos meios de comunicação italianos.

Bento XVI, de 85 anos, afirmou ontem aos fiéis que renunciou "em plena liberdade pelo bem da Igreja" e após constatar que lhe "faltam forças para exercer com o vigor necessário o ministério do papado".

Bento XVI também destacou a importância do testemunho de fé e vida cristã de cada um dos seguidores de Cristo para mostrar a verdadeira cara da Igreja. O papa advertiu que muitas vezes esse rosto "aparece desfigurado". "Penso em particular nos atentados contra a união da Igreja e as divisões que existem no corpo eclesial."

O Vaticano mantém a versão de que o papa renunciou por lhe faltar forças para seu trabalho.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Vida/O Fim do Pontificado: Reação - Quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013 - Pg. A15 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,vatileaks-estimulou--decisao-diz-revista-,996707,0.htm
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Disputa de poder na Igreja pode ter provocado
renúncia de Bento XVI

Jamil Chade e  Filipe Domingues

Fontes próximas ao Vaticano afirmam que exaustão declarada pelo pontífice está ligada aos confrontos internos, e não apenas à idade avançada; corrupção no Banco do Vaticano e roubo de documentos por seu ex-mordomo contribuíram para o desgaste

Cardeal Tarcisio Bertone
Cansado e sem energia, mas também isolado politicamente. O papa Bento XVI de fato renunciou ao pontificado por conta de sua fragilidade. Fontes próximas ao Vaticano, porém, afirmam que a exaustão não tem a ver apenas com a sua saúde, mas também com a disputa de poder que marcou seus últimos meses no trono. A renúncia teria sido uma reação extrema ao que muitos classificam de governo paralelo, que teria se formado à sua sombra e sob comando do cardeal Tarcisio Bertone.

Por seus aliados, Bento XVI optou por sacrificar seu próprio cargo, na esperança de recolocar a Igreja num caminho de maior coesão, forçando uma nova eleição.

Fontes nas embaixadas estrangeiras junto à Santa Sé relataram ao Estado os bastidores dos últimos meses de Bento XVI. Dizem que o papa renunciou de livre vontade, mas consciente de que já não mandava sozinho na Santa Sé e, com os poucos anos que lhe restavam, não conseguiria fazer o que havia planejado diante de resistência de seus ex-aliados.

De forma indireta, a Santa Sé confirmou que a fragilidade não vinha de sua saúde. "O papa é uma pessoa de grande realismo e conhece os problemas e as dificuldades", disse o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi. "A renúncia foi uma mensagem à Cúria, mas também a todos nós", disse. "Foi um ato de humildade, sabedoria e responsabilidade."

Segundo Lombardi, não havia um problema específico, mas sim uma visão "mais ampla da Igreja no mundo." "Não foi uma decisão improvisada. Foi algo muito lúcido." A possibilidade de renúncia era cogitada por Bento XVI desde abril de 2012, após viagem ao México e a Cuba.

O papa chegou ao trono com a promessa de que conduziria uma limpeza na Igreja. O resultado, porém, foi o oposto e o equilíbrio de poder que havia durante os anos de João Paulo II ruiu.

Suas decisões de punir cardeais simplesmente foram ignoradas ou levaram anos para serem cumpridas, em um desafio claro ao poder do papa. Foram os casos de Roger Mahony ou de Thomas Curry. Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, foi outro que acabou sendo protegido por anos, apesar das denúncias. Por mais que tenha tentado, Bento XVI jamais conseguiu implementar sua ideia "de tolerância zero" em relação à pedofilia. "Quanta sujeira na Igreja", chegou a declarar.

Bento XVI também deu indicações de que poderia rever algumas de suas posições, como a questão do preservativo. Cardeais mostraram-se irritados e se apressaram em negar o debate. Esse não seria o único caso de desobediência. Bertone tomaria medidas à sua revelia, até mesmo punindo aliados do papa. Em uma ocasião, teria chorado.

Amigo pessoal do papa, Bertone foi a pessoa que mais recebeu poder dentro da Igreja em 2005. Mas, em alianças com membros da Cúria, teria criado situações em que colocava Bento XVI contra esses cardeais. Para evitar uma disputa direta, o papa optou inicialmente por não questionar as decisões de seu ex-aliado. Mas isso teria ido longe demais.

Cardeal Carlo Maria Viganò
Um dos casos que revelou o poder de Bertone foi o do cardeal Carlo Maria Viganò, que alertou Bento XVI sobre suspeitas de corrupção nos contratos do Vaticano. O caso chegou até a imprensa italiana. Imediatamente, Bertone decidiu nomear Vigano como núncio nos Estados Unidos.

Outros fatos. Também pesaram a revelação de corrupção no Banco do Vaticano, seguido pelo descobrimento de que próprio mordomo, pessoa que o vestia e estava em sua intimidade, havia roubado documentos que expunham a corrupção na Igreja.

Para diplomatas, um indício de que Bento XVI não acreditava que o mordomo havia agido sozinho foi sua decisão de perdoá-lo, mesmo depois que um tribunal do Vaticano o condenou.

Em agosto, Bento XVI foi à casa que o Vaticano dispõe nos arredores de Roma para descanso. Fontes no Vaticano confirmaram que já naquele momento ele estava isolado. Nos últimos meses, o papa abandonou o confronto. Aos que chegavam com alguma intriga doméstica, respondia: "Eu sou um papa velho".

Fonte: O Estado de S. Paulo - Vida/O Fim do Pontificado: bastidores da decisão - Quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013 - Pg. A11 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,disputa-de-poder-na-igreja-pode-ter-provocado-renuncia-de-bento-xvi-,996374,0.htm
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Reflexões em torno da renúncia de
Bento XVI

Faustino Teixeira *


FAUSTINO TEIXEIRA
Muito complexa a situação da Igreja Católica Romana (ICAR). Lemos hoje, 13/02/2013, na Folha de S. Paulo (FSP), em reportagem de Patrícia Britto, que o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo (e que participará do próximo conclave) sublinhou que “dificilmente o papa que substituirá Bento XVI mudará a forma como a igreja lida com temas considerados polêmicos” e “que será difícil simplesmente dizer sim àquilo que é proposto pela sociedade ou pelos legisladores” . Essa é, infelizmente, a cantilena que sempre estamos a ouvir por parte de segmentos da hierarquia atual. Uma dificuldade impressionante de ousadia e profetismo

Vale ressaltar algumas notícias dos periódicos internacionais sobre a atual crise no Vaticano, em particular as reflexões de Massimo Franco no Corriere della Sera. Na sua avaliação, o que assistimos hoje é o “sintoma extremo, final, irrevogável da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”. E fala da deriva de uma igreja-instituição que em poucos anos passou da condição de “mestra de vida” para “pecadora”, de “ponto de referência moral da opinião pública ocidental, a uma espécie de "acusada global", agredida e pressionada por segmentos diversificados.

Clovis Rossi chega a falar em sua coluna na FSP de uma “guerra civil no Vaticano” . E o filósofo italiano Gianni Vattimo, em seu blog – reproduzido no jornal Il fato quotidiano (13/02/2013) – sublinha que a demissão era a única coisa que um papa poderia seriamente fazer. Ele acrescenta que se Jesus vivesse hoje entre os seus pseudo-sucessores “abandonaria imediatamente o Vaticano, e talvez retornasse à Palestina para estar junto aos perseguidos e expropriados daquele lugar, e não perderia mais seu tempo, e alma, seguindo as vicissitudes da política italiana (...)”. Para Vattimo, a renúncia papal indica um distanciamento das “funcionalidades terrenas” e a necessidade de apontar, talvez, a “face anárquica, e autenticamente sobrenatural, do Evangelho”, abrindo a possibilidade para o cristianismo de se tornar novamente “uma escolha de vida possível para as pessoas de nosso tempo”


Leonardo Boff fala também no último texto sobre a importância de retomada de um modelo dialogal para a igreja, de sintonia com o Vaticano II, Medellin e Puebla, de uma “Igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos”, de liberdade e criatividade. E Hans Küng em seu recente livro – Salviamo la Chiesa (1) -, indica a necessidade de um tratamento para a igreja, de uma “terapia ecumênica” que ajude a vencer a “osteoporose do sistema eclesiástico” . E coloca o dedo na ferida, ao falar da necessidade imperiosa de uma reforma da cúria romana à luz do Evangelho. Uma reforma que deverá contemplar: 

  • humildade evangélica (com renúncia de todos os títulos honoríficos estranhos à Bíblia), 
  • simplicidade evangélica, 
  • fraternidade evangélica e 
  • liberdade evangélica.

Nesse delicado momento de preparação do conclave que escolherá o novo papa, os analistas chamam a atenção para problemas internos da cúria romana, que também pressionaram a decisão de renúncia de Bento XVI. Em entrevista publicada hoje no O Globo, o renomado teólogo espanhol, José Ignacio González Faus faz menção a tais pressões. Ele sinaliza: "Não estranharia que a renúncia estivesse ligada a problemas com a Cúria". O papa "já arrastava problemas com a Cúria desde que afastou do sacerdócio Marcial Maciel, acusado de abusos sexuais" . Chama a atenção para aquela oração proferida pelo então cardeal Ratzinger na cerimônia da sexta feira santa em Roma, em comentário da IX estação da via sacra. Reproduzo aqui o que ele disse no ocasião:


"Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta auto-suficiência!” “Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados. E mesmo no vosso campo de trigo, vemos mais cizânia que trigo. O vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos."

Segundo González Faus, os intérpretes em avaliação feita na época, achavam que ele estivesse se referindo à pedofilia na igreja, mas em verdade, os indícios apontam que poderia ser uma alusão à Cúria romana, essa mesma cúria que terá voz ativa na eleição do próximo papa em 2013.

Nota:

1- O livro, originalmente publicado em alemão, Ist die Kirche noch zu retten? (2011), foi traduzido e publicado em português com o título "A Igreja ainda tem salvação?" pela Paulus Editora, 2012. (Nota da IHU On-Line)

Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517573-reflexoes-em-torno-da-renuncia-de-bento-xvi
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Como Vargas, Bento 16 joga sobre rivais
o peso de seu "suicídio"

MARCELO COELHO


MARCELO COELHO - jornalista
Sobre a renúncia de Bento 16, a frase mais estranha, e mais dura, veio de um cardeal. "Da Cruz não se desce", disse Stanislaw Dziwisz, antigo secretário pessoal de João Paulo 2º.

O polonês Dziwisz estava comparando a saída de Bento 16 com o sofrimento de seu antecessor. Destruído pelo mal de Parkinson, João Paulo 2º aguentou até o fim; ficou na Cruz. Bento 16, supostamente por fragilidade e cansaço, não foi capaz de sacrifício semelhante.

Fazer a comparação entre os dois papas parece, da parte de Dziwisz, quase desumano; no mínimo, é falta de compaixão pelo sofrimento alheio.

Por que tanta dureza? Dziwisz deve ter se lembrado de uma entrevista que Bento 16 deu a uma rede de TV italiana, quando ainda era o cardeal Ratzinger e quando João Paulo 2º já sofria bastante com sua doença.

O papa não deve renunciar, dizia Ratzinger. O Senhor é quem dá a alguém responsabilidade de ser papa, explicou, e "só o Senhor pode retirá-la." O sofrimento de João Paulo testemunhava sua proximidade com Cristo.

O repórter pôs, digamos assim, lenha na fogueira. Ele lembrou uma frase de João Paulo 2º: "Deus me iluminou, e só Deus me pode tirar daqui". Por que o papa teria dito isso?
"Porque assim é", respondeu Ratzinger. Não foram os cardeais que fizeram dele um papa, mas sim uma intervenção divina.

Incoerência de Bento 16, renunciando agora? Nem tanto: sempre se pode dizer que ele estava apenas justificando a coragem de João Paulo 2º, que afinal é considerado um santo, e que nem todo papa, mesmo bom, tem a obrigação de ser um mártir.


STANISLAW DZIWISZ
Mas é aí que o raciocínio de Bento 16 dá mais uma volta. Vale lembrar que três dias antes da renúncia, no dia 8 de fevereiro, o papa fez um discurso para jovens seminaristas, comentando algumas palavras de são Pedro.

São Pedro, o fundador da Igreja, foi também um "homem que caiu", que negou Jesus. Bento falava de si mesmo? Ou do Vaticano?

São Pedro decidiu sair de onde estava para ir a Roma, onde o esperava "o martírio", a Cruz. "Roma é o lugar do martírio", acrescentou o papa. Cita ainda são Pedro: Roma? É "a Babilônia". Lugar de paganismo e de pecado.

Eis que tudo se transforma, então. O sofrimento de Bento 16 não está em seus problemas físicos. O que lhe falta é a energia para enfrentar as tarefas de renovação da igreja.

Não se trata apenas de "sofrer e orar", como fez João Paulo 2º, mas também de possuir "vigor de corpo e espírito" para "conduzir a barca de são Pedro". É o que ele disse no discurso de renúncia.

Interpretando: dados os escândalos financeiros e morais de Roma, dessa "Babilônia", é necessário que seja eleito um papa mais vigoroso do que eu. Fica a imagem de um papa vencido por inimigos poderosos.

Conclusão: Bento 16 acaba saindo como mártir também. Não o mártir passivo, que apenas sofre e reza. Mas um pouco o mártir no estilo de Getúlio Vargas, que se "suicida" simbolicamente e, com isso, joga sobre os adversários, sobre as "forças ocultas", a responsabilidade pelo que aconteceu.

Se essa versão procede, parecem pequenas as chances de que a burocracia interna do Vaticano, com os cardeais italianos representados pelo secretário Tarcisio Bertone (78 anos), detenha controle da sucessão.

Fonte: Folha de S. Paulo - Mundo/Transição na Igreja - Sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013 - Pg. A10 - Internet: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1230985-analise-como-vargas-bento-16-joga-sobre-rivais-o-peso-de-seu-suicidio.shtml
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Igreja precisa de pontífice 
"mais pastor que professor"

Entrevista com Leonardo Boff

PATRÍCIA BRITTO


LEONARDO BOFF - teólogo brasileiro
Teólogo brasileiro conviveu com papa, mas acabou punido por ele

Para o teólogo e ex-frade brasileiro Leonardo Boff, 74, Bento 16 foi um papa frustrado, que tentou reduzir a igreja a um "museu".

Durante seus estudos na Universidade de Munique, na Alemanha, nos anos 1960, Boff conviveu com Joseph Ratzinger, com quem conversava sobre teologia.

Em 1985, foi surpreendido quando a Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, então presidida por Ratzinger, o puniu com um ano de silêncio obsequioso, a proibição de falar em público e de publicar suas ideias. Em 1992, desligou-se da ordem franciscana.

Expoente da Teologia da Libertação, linha que une princípios do catolicismo ao marxismo, hoje Leonardo Boff se diz aliviado com o anúncio da renúncia de Bento 16.

Dei, generosamente, uma entrevista à Folha de S. Paulo que quase não aproveitou nada do que disse e escrevi. Então publico a entrevista inteira aqui no blog para reflexão e discussão entre os interessados pelas coisas da Igreja Católica. As perguntas foram reordenadas.

1.Como o Sr. recebeu a renúncia de Bento XVI?

Resposta: Eu desde o princípio sentia muita pena dele, pois pelo que o conhecia, especialmente em sua timidez,  imaginava o esforço que devia fazer para saudar o povo, abraçar pessoas, beijar crianças. Eu tinha certeza de  que um dia ele, aproveitaria alguma ocasião sensata, como os limites físicos de sua saúde e menor vigor mental para renunciar. Embora mostrou-se um Papa autoritário, não era apegado ao cargo de Papa. Eu fiquei aliviado porque a Igreja está sem liderança espiritual que suscite esperança e ânimo. Precisamos de um outro perfil de Papa mais pastor que professor, não um homem da instituição-Igreja mas um representante de Jesus que disse: “se alguém vem a mim eu não mandarei embora” (Evangelho de João 6,37), podia ser um homoafetivo, uma prostituta, um transsexual.

2. Como é a personalidade de Bento XVI já que o Sr. privou de certa amizade com ele?

Resposta: Conheci Bento XVI nos meus anos de estudo na Alemanha entre 1965-1970. Ouvi muitas conferências dele mas não fui aluno dele. Ele leu minha tese doutoral: "O lugar da Igreja no mundo secularizado e gostou muito a ponto de achar uma editora para publicá-la, um calhamaço de mais de 500 páginas. Depois trabalhamos juntos na revista internacional Concilium, cujos diretores se reuniam todos os anos na semana de Pentecostes em algum lugar na Europa. Eu a editava em português  Isso entre 1975-1980. Enquanto os outros faziam sesta eu e ele passeávamos e conversávamos temas de teologia, sobre a fé na América Latina, especialmente sobre São Boaventura e Santo Agostinho, dos quais é especialista e eu até hoje os frequento a miúde. Depois em 1984 nos encontramos num momento conflitivo: ele como meu julgador no processo do ex-Santo Ofício, movido contra meu livro "Igreja: carisma e poder (Editora Vozes, 1981). Aí tive que sentar na cadeirinha onde Galileo Galilei e Giordano Bruno entre outros sentaram. Submeteu-me a um tempo de “silêncio obsequioso”; tive que deixar a cátedra e proibido de publicar qualquer coisa. Depois disso nunca mais nos encontramos. Como pessoa é finíssimo, tímido e extremamente inteligente.

3. Ele como cardeal foi o seu Inquisidor depois de ter sido seu amigo: como viu esta situação?

Resposta: Quando foi nomeado Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Inquisição), fiquei sumamente feliz. Pensava com meus botões: finalmente teremos um teólogo à frente de uma instituição com a pior fama que se possa imaginar. Quinze dias após sua nomeação, me respondeu agradecendo e disse: vejo que há várias pendências suas aqui na Congregação e temos que resolvê-las logo. É que, praticamente, a cada livro que publicava vinham de Roma perguntas de esclarecimento que eu demorava em responder. Nada vem de Roma sem antes ter sido enviado a Roma. Havia aqui bispos conservadores e perseguidores de teólogos da libertação que enviavam as queixas de sua ignorância teológica a Roma a pretexto de que minha teologia poderia fazer mal aos fiéis. Aí eu me dei  conta: ele já foi contaminado pelo bacilo romano que faz com que todos os que trabalham no Vaticano rapidamente encontram mil razões para serem moderados e até conservadores. Então sim fiquei mais que surpreso, verdadeiramente decepcionado.

4. Como o Sr. recebeu a punição do “silêncio obsequioso”?

Resposta: Após o interrogatório e a leitura de minha defesa escrita, que está como adendo da nova edição de Igreja: carisma e poder (Editora Record, 2008), são 13 cardeais que opinam e decidem. Ratzinger é um apenas entre eles. Depois  submetem a decisão ao Papa. Creio que ele foi voto vencido porque conhecia outros livros meus de teologia, traduzidos para alemão e me havia dito que tinha gostado deles, até, uma vez, diante do Papa numa audiência em Roma fez uma referência elogiosa. Eu recebi o “silêncio obsequioso” como um cristão ligado à Igreja o faria: calmamente o acolhi. Lembro que disse: “é melhor caminhar com a Igreja que sozinho com minha teologia”. Para mim foi relativamente fácil aceitar a imposição porque a Presidência da CNBB me havia sempre apoiado e dois Cardeais, Dom Aloysio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns, me acompanharam a Roma e depois participaram, numa segunda parte, do diálogo com o cardeal Ratzinger e comigo. Aí éramos três contra um. Colocamos algumas vezes o cardeal Ratzinger em certo constrangimento, pois os cardeais brasileiros lhe asseguravam que as críticas contra a teologia da libertação que ele fizera num documento saído recentemente eram eco dos detratores e não uma análise objetiva. E pediram um novo documento positivo; ele acolheu a ideia e realmente o fez dois anos após. E até pediram a mim e ao meu irmão, teólogo Clodovis, que estava em Roma que escrevêssemos um esquema e o entregássemos na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé.  E, num dia e numa noite, o fizemos e o entregamos.

5. O Sr. deixou a Igreja em 1992. Guardou alguma mágoa de todo o affaire no Vaticano?

Resposta: Eu nunca deixei a Igreja. Deixei uma função dentro dela que é a de padre. Continuei como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do país. Quem entende a lógica de um sistema autoritário e fechado, que pouco se abre ao mundo e não cultiva o diálogo e a troca (os sistemas vivos vivem na medida em que se abrem e trocam) sabe que, se alguém, como eu, não se alinhar totalmente a tal sistema, será vigiado, controlado e eventualmente punido. É semelhante aos regimes de segurança nacional que temos conhecido na América Latina sob os regimes militares no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Dentro desta lógica o então Presidente da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício, ex-Inquisição), o cardeal Joseph Ratzinger condenou, silenciou, depôs de cátedra ou transferiu mais de cem teólogos. Do Brasil fomos dois: a teóloga Ivone Gebara e eu. Em razão de entender a referida lógica e lamentá-la, sei que eles estão condenados  fazer o que fazem na maior das boas vontades. Mas como dizia Blaise Pascal: "Nunca se faz tão perfeitamente  o mal como quando se faz de boa vontade". Só que esta boa vontade não é boa, pois cria vítimas. Não guardo nenhuma mágoa ou  ressentimento, pois exerci compaixão e misericórdia por aqueles que se movem dentro daquela lógica que, a meu ver, está a quilômetros luz da prática de Jesus. Aliás é coisa do século passado, já passado. E evito voltar a isso.

6. Como o Sr. avalia o pontificado de Bento XVI? Soube gerenciar as crises internas e externas da Igreja?


Cardeal Angelo Sodano
Resposta: Bento XVI foi um eminente teólogo, mas um Papa frustrado. Não tinha o carisma de direção e de animação da comunidade, como  tinha João Paulo II. Infelizmente ele será estigmatizado, de forma reducionista, como o Papa onde grassaram os pedófilos, onde os homoafetivos não tiveram reconhecimento e as mulheres foram humilhadas como nos Estados Unidos, negando o direito de cidadania a uma teologia feita a partir do gênero. E também entrará na história como o Papa que censurou pesadamente a Teologia da Libertação, interpretada à luz de seus detratores, e não à luz das práticas pastorais e libertadoras de bispos, padres, teólogos, religiosos/as e leigos que fizeram uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da vida e da liberdade. Por esta causa justa e nobre foram incompreendidos por seus irmãos de fé,  e muitos deles presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança do Estado militar. Entre eles estavam bispos como Dom Angelelli da Argentina e Dom Oscar Romero de El Salvador. Dom Hélder foi o mártir que não mataram.  Mas a Igreja é maior que seus papas e ela continuará, entre sombras e luzes, a prestar um serviço à humanidade, no sentido de manter viva a memória de Jesus, de oferecer uma fonte possível de sentido de vida que vai para além desta vida. Hoje sabemos pelo Vatileaks que dentro da Cúria romana se trava uma feroz disputa de poder, especialmente entre o atual Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, e o ex-secretário Angelo Sodano já emérito. Ambos têm seus aliados. Bertone, aproveitando as limitações do Papa, construiu praticamente um governo paralelo. Os escândalos de vazamento de documentos secretos da mesa do Papa e do Banco do Vaticano, usado pelos milionários italianos, alguns da máfia, para lavar dinheiro e mandá-lo para fora, abalaram muito o Papa. Ele foi se isolando cada vez mais. Sua renúncia se deve aos limites da idade e das enfermidades, mas agravadas por estas crises internas que o enfraqueceram e que ele não soube ou não pôde atalhar a tempo.

7. O Papa João XXIII disse que a Igreja não pode virar um museu, mas uma casa com janelas e portas abertas. O Sr. acha que Bento XVI não tentou transformar a Igreja novamente em algo como um museu?

Resposta: Bento XVI é um nostálgico da síntese medieval. Ele reintroduziu o latim na missa, escolheu vestimentas de papas renascentistas e de outros tempos passados, manteve os hábitos  e os cerimoniais palacianos; para quem iria comungar, oferecia primeiro o anel papal para ser beijado e depois dava a hóstia, coisa que nunca mais se fazia. Sua visão era restauracionista e saudosista de uma síntese entre cultura e fé que existe muito visível em sua terra natal, a Baviera, coisa que ele explicitamente comentava. Quando na Universidade onde ele estudou e eu também, em Munique, viu um cartaz me anunciando como professor visitante para dar aulas sobre as novas fronteiras da teologia da libertação pediu o reitor que protelasse sine die [por prazo indeterminado],o convite já acertado. Seus ídolos teológicos são Santo Agostinho e São Boaventura que mantiveram sempre uma desconfiança de tudo o que vinha do mundo, contaminado pelo pecado e necessitado de ser resgatado pela Igreja. É uma das razões que explicam sua oposição à modernidade que vê sob a ótica do secularismo e do relativismo e fora do campo de influência do cristianismo que ajudou a formar a Europa.

8. A igreja vai mudar, em sua opinião, a doutrina sobre o uso de preservativos e, em geral, a moral sexual?

Resposta: A Igreja deverá manter as suas convicções, algumas que estima irrenunciáveis como a questão do aborto e da não manipulação da vida. Mas deveria renunciar ao status de exclusividade, como se fora a única portadora da verdade. Ela deve se entender dentro do espaço democrático, no qual sua voz se faz ouvir junto com outras vozes. E as respeita e até se dispõe a aprender delas. E quando derrotada em seus pontos de vista, deveria oferecer sua experiência e tradição para melhorar, onde puder melhorar, e tornar mais leve o peso da existência. No fundo ela precisa ser mais humana, humilde e ter mais fé, no sentido de não ter medo. O que se opõe à fé não é o ateísmo, mas o medo. O medo paralisa e isola as pessoas das outras pessoas. A Igreja precisa caminhar junto com a humanidade, porque a humanidade é o verdadeiro Povo de Deus. Ela o mostra mais conscientemente, mas não se apropria com exclusividade desta realidade.

9. O que um futuro Papa deveria fazer para evitar a emigração de tantos fiéis para outras igrejas, e especialmente pentecostais?

Resposta: Bento XVI freou a renovação da Igreja incentivada pelo Concílio Vaticano II. Ele não aceita que na Igreja haja rupturas. Assim, preferiu uma visão linear, reforçando a tradição. Ocorre que, a tradição a partir do século XVIII e XIX se opôs a todas as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos. Ele tentou reduzir a Igreja a uma fortaleza contra estas modernidades. E via no Vaticano II  o cavalo de Troia por onde elas poderiam entrar. Não negou o Vaticano II, mas o interpretou à luz do Vaticano I que é todo centrado na figura do Papa com poder monárquico, absolutista e infalível. Assim se produziu uma grande centralização de tudo em Roma sob a direção do Papa que, coitado, tem que dirigir uma população católica do tamanho da China.Tal opção trouxe grande conflito na Igreja, até entre inteiros episcopados como o alemão e francês e contaminou a atmosfera interna da Igreja com suspeitas, criação de grupos, emigração de muitos católicos da comunidade e acusações de relativismo e magistério paralelo. Em outras palavras na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos.  O perfil do próximo Papa, no meu entender:
  • não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia
  • Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política. Deveria tomar como lema a frase de Jesus  que já citei anteriormente:”Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”, pois acolhia a todos, desde uma prostituta como Madalena, até um teólogo como Nicodemos. 
  • Não deveria ser um homem do Ocidente que já é visto como um acidente na história. Mas um homem do vasto mundo globalizado sentindo a paixão dos sofredores e o grito da Terra devastada pela voracidade consumista. 
  • Não deveria ser um homem de certezas, mas alguém que estimulasse a todos a buscarem os melhores caminhos. Logicamente se orientaria pelo Evangelho, mas sem espírito proselitista, com a consciência de que o Espírito chega sempre antes do missionário e o Verbo ilumina a todos que vem a este mundo, como diz o evangelista São João. 
  • Deveria ser um homem profundamente espiritual e aberto a todos os caminhos religiosos para juntos manterem viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus. 
  • E por fim, um homem de profunda bondade, no estilo do Papa João XXIII, com ternura para com os humildes e com firmeza profética para denunciar quem promove a exploração e faz da violência e da guerra instrumentos de dominação dos outros e do mundo. 
Que nas negociações que os cardeais fazem no conclave e nas tensões das tendências, prevaleça um nome com semelhante perfil. Como age o Espírito Santo aí é mistério. Ele não tem outra voz e outra cabeça do que aquela dos cardeais.  Que o Espírito não lhes falte.

Fonte: leonardoBOFF.com - 15/02/2013 - Internet: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/15/que-papa-esperar-que-nao-seja-um-bento-xvii/
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O que deu nele?

Entrevista com Leonardo Boff

Laura Greenhalgh

Para o teólogo Leonardo Boff, ex-aluno, ex-colaborador e alvo do rigor ratzingeriano, 
papa foi lúcido ao separar a pessoa da função

JOSEPH RATZINGER - quando professor na Alemanha
"Roma tem uma enzima que transforma todo mundo." Há quase um ano, em entrevista ao Aliás, o teólogo brasileiro Leonardo Boff assim se referiu ao ambiente de maquinações da Cúria Romana e, em particular, à guinada de Joseph Ratzinger, seu ex-professor na Universidade de Munique e uma das vozes do Concílio Vaticano II - guinada rumo a um catolicismo ortodoxo, tradicional e dogmático. "Era um professor adorado pelos alunos, mas mudou radicalmente ao assumir a Congregação para a Doutrina da Fé", disse então o entrevistado. Seguramente, nos últimos dias a enzima voltou a rondar os pensamentos desse ex-aluno do mestre alemão, por quem Boff foi punido com o silêncio obsequioso (em razão de divergências teológicas), levando-o a abandonar a ordem franciscana para declarar-se leigo.

Numa semana patrocinada por tantas surpresas vindas de Bento XVI, o papa renunciante, Boff voltou a ser ouvido pelo Aliás. Encontra-se nas opiniões expressas a seguir um desafeto que demonstra grande respeito pelo sujeito de sua contenda. Boff calcula o tamanho e as implicações da renúncia do pontífice. Reconhece-lhe a grandeza do gesto. Fala das pressões a que estaria sendo submetido, da possibilidade de ter sido traído num ambiente infestado de bajuladores e, baseando-se na convivência que ambos tiveram no passado, arrisca-se a dizer que Bento XVI poderá mesmo se recolher a uma vida de silêncio e oração, enquanto espera pelo Juízo. "Esse tipo de postura piedosa tem a ver com o catolicismo bávaro, no qual ele foi formado", acrescenta. Eis como Leonardo Boff analisa a decisão histórica que deve sacudir pilares de uma instituição monolítica, fundada no sagrado, mas respaldada pelo humano:

A pessoa e a função

"A renúncia em si não chegou a causar surpresa porque Bento XVI havia acenado algumas vezes nessa direção. Seu irmão Georg, também padre e mais velho do que ele, disse há poucas semanas, como pude ler num jornal alemão: ‘Meu irmão deveria renunciar e viver tranquilo seus últimos tempos’. Esse papa soube distinguir a pessoa da função. Quando se deu conta de que, como pessoa, não poderia mais cumprir adequadamente a função, que é a de dirigir a Igreja, humildemente reconheceu a dura lei da natureza que impõe limites. E renunciou. Não é fácil um ancião adoentado governar uma China inteira de fiéis, algo como 1,2 bilhão de católicos. Louvo seu desprendimento e sua lucidez.

O nível das pressões

"Se Bento XVI estiver convencido de que a linha pastoral e política que vinha imprimindo à Igreja é a correta, seguramente vai influenciar os cardeais, ao menos os que nomeou, para que prossigam no mesmo curso. Mas suspeito que os vários escândalos, particularmente dos pedófilos e do Banco do Vaticano, tenham lhe mostrado que outro caminho para a Igreja talvez possa conter menos riscos e um futuro papa consiga gerenciar melhor as crises. Ele vinha sofrendo muita pressão, imagino até que estava com a cabeça embaralhada nos últimos tempos. Quando cardeal, fez circular um documento com sigilo pontifício determinando o rebaixamento dos envolvidos nos casos de pedofilia, mas proibindo que fossem entregues aos tribunais civis. Mais recentemente, como papa, ao tomar conhecimento de casos envolvendo não só padres, mas bispos e até um cardeal, publicamente pediu desculpas e abriu o caminho para o julgamento deles fora da Igreja. Imagine a raiva que despertou e a oposição que passou a enfrentar... E o que dizer dos documentos sigilosos que desapareceram da sua mesa de trabalho, surrupiados pelo próprio mordomo? Não tenho dúvida de que ele sentiu o golpe da traição. Tudo isso deve tê-lo feito pensar na renúncia.

Próximo ato

"Pode ser, e creio mesmo nisso, que Bento XVI vá se retirar efetivamente e viver como monge, dedicando-se à vida espiritual. Isso tem muito a ver com o catolicismo bávaro no qual ele se formou. Poderá mergulhar num silêncio piedoso, profundo, para viver de oração e esperar pelo Juízo.

Calculando o impacto


PAPA PAULO VI (Pontificado: 1963-1978)
"Seu gesto pode abrir uma brecha para mudanças na Cúria Romana. Na verdade, uma brecha que oficialmente já fora apresentada por Paulo VI, com o decreto de 23 de novembro de 1970, Ingravescentem aetatem, pelo qual aposentava todos os cardeais ao atingirem 80 anos, excluindo-os de participar do conclave para a eleição de um novo papa. Paulo VI decretou também que todos os bispos, aos 75 anos, deveriam pedir a renúncia, podendo ou não ser aceita por Roma. Tais mudanças, lá trás, irritaram enormemente os cardeais da Cúria. E mais: o decreto dava a entender que o limite de idade de 80 anos também poderia valer para o papa. Hoje se sabe que Paulo VI queria se retirar. Só não o fez porque foi advertido de que grupos conservadores poderiam não acolher o novo pontífice e continuar obedecendo a ele, mesmo tendo abdicado. Isso dividiria a Igreja, como aconteceu no passado, quando se chegou a ter até três papas que se excomungavam entre si. Não me admiraria se algo parecido acontecesse agora. Mas tudo depende da linha que o novo pontífice tomar. Se for aberto demais, cristãos fundamentalistas e conservadores podem dar obediência ao papa renunciante Bento XVI e negá-la ao outro. Espero que isso não aconteça. Seria uma tragédia ter uma Igreja com duas cabeças.

Mensagem ao clero

"Creio que a referência que ele fez ao Vaticano II, ao falar aos padres essa semana, é um recado para fora, para além da Cúria, que sempre se opôs às resoluções do Concílio. O papa hoje se dá conta de um certo fracasso seu por não ter levado adiante a agenda reformadora do Vaticano II. Mas, por outro lado, tem sido complacente com os lefebvrianos (seguidores do arcebispo francês Marcel Lefebvre) que rejeitam o Concílio in totum [por completo]. Ao retomar o tema agora, Bento XVI faz um apelo para a reforma da Igreja. Mas não qualquer reforma, somente aquela que se inscreve dentro dos parâmetros do Concílio. Isso é um bom sinal. E uma advertência à Cúria.

Colégio eleitoral

"A Cúria Romana é uma fogueira das vaidades, administrada por todos aqueles celibatários não integrados ao mundo, à realidade. Brigam até pela proximidade física ao papa, para ver quem fica mais perto dele, coisas assim. Acho tudo isso um horror. O colégio de cardeais hoje é formado majoritariamente por conservadores e o que se vê, lá dentro, é a ausência de mentes brilhantes e proféticas. Na média, são despreparados e preguiçosos. Talvez votem na linha da continuidade até para não ter o trabalho de enfrentar a mudança. Agora, a Igreja também surpreende. Depois de Pio XII, um papa conservador e controvertido, quem foi eleito? João XXIII, o reformador. Então, tudo é possível. Se de repente resolvem eleger alguém que venha de uma região mais periférica, e se esse novo pontífice chegar com ideias diferentes, ele poderá ser o agente de mudanças numa estrutura que depende sempre de uma cabeça absolutista. Seja como for, o que se precisa hoje é de um homem que una a Igreja.

Diálogo entre religiões

"Se o sucessor seguir a linha de Bento XVI, o diálogo será difícil. Porque o papa Ratzinger orientou-se pelos dogmas e pela reafirmação da exclusividade da Igreja de Roma como suprema autoridade sobre todas as demais. Enquanto não se questionar o centralismo do sistema romano, monárquico e absolutista, não haverá união das Igrejas e o diálogo se transformará numa retórica de civilidade. Em relação às religiões, Bento XVI fez uma leitura medieval, segundo a qual fora da Igreja Católica não há salvação. Isso está no documento Dominus Jesus, de 2000, quando ainda era cardeal. Como papa, manteve-se coerente. Não significou que tenha perdido a elegância ao visitar mesquitas, sinagogas e outros templos. Mas as categorias teológicas que maneja o impedem de ver densidade divina em tais manifestações. Para ele, essas categorias não passam de esforços humanos que não atingem a meta só alcançada por mediação da Igreja Católica. Uma coisa podemos dizer: Jesus jamais faria isso. E nem São Pedro, que acolheu o oficial romano mesmo antes que fosse batizado, como relatado nos Atos dos Apóstolos."

Fonte: O Estado de S. Paulo - Supl. ALIÁS - Domingo, 17 de fevereiro de 2013 - Pg. J6 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-que-deu-nele,997740,0.htm
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A infalibilidade com prazo de validade

Vito Mancuso *
La Repubblica
14-02-2013

VITO MANCUSO - teólogo italiano
Nessa quarta-feira, o porta-voz da Sala de Imprensa vaticana, o padre jesuíta Lombardi, declarou que, a partir da noite do dia 28 de fevereiro próximo, Joseph Ratzinger não será mais infalível. Ora, se já é difícil entender como um ser humano pode vir a ser infalível, talvez ainda mais difícil é compreender como ele pode, de repente, deixar de sê-lo. Porém, foi o próprio padre Lombardi que esclareceu bem a questão.

E sublinhou que a infalibilidade "está conectada ao ministério petrino, não à pessoa que renunciou ao pontificado". Isto é, o atual pontífice é infalível como Papa Bento XVI, porque, como papa, goza da graça particular ligada ao seu estado de Pontífice Romano, que a teologia chama precisamente de "graça de estado"

Não é nada infalível, ao invés, como indivíduo de nome Joseph Ratzinger, que, como homem como nós, pode se equivocar nas coisas comuns da vida, por exemplo, nos julgamentos sobre as pessoas (e eu não penso que possa haver dúvidas sobre o fato de que sobre alguns dos colaboradores ele não tenha sempre visto certo), nos julgamentos políticos e até naqueles bíblicos e teológicos. 

Ratzinger estava totalmente consciente de tudo isso, visto que escreveu no seu primeiro livro sobre Jesus que "cada um é livre para me contradizer", e o que leva um papa a dizer que cada um é livre para contradizê-lo (até quando escreve sobre Jesus!) senão precisamente a consciência da sua humana possibilidade de se equivocar? 

Mas se as coisas são assim, em que consiste precisamente a infalibilidade papal e de onde vem?

A infalibilidade que cabe ao romano pontífice é o penúltimo dos dogmas declarados pela Igreja Católica. Foi proclamado pelo Concílio Vaticano I com a constituição dogmática Pastor aeternus, de 18 de julho de 1870, em uma Europa que, no dia seguinte, veria a eclosão da Guerra Franco-Prussiana entre o Segundo Império Francês e o Reino da Prússia, e em uma Roma que quase já pressentia a chegada das tropas piemontesas prontas para atacar a capital do Estado pontifício. 

O papa reinante era Pio IX, que seis anos antes havia publicado uma verdadeira declaração de guerra ao mundo moderno, o famoso Sílabo, ou seja, coleção de erros proscritos. Quem estava sob ataque, portanto, antes mesmo da capital do Estado pontifício, era a mente católica, que assistia ao irrefreável processo que a estava privando daquele primado moral e espiritual que ela detinha há séculos. 

Assim se explica o desejo de centralização em torno da figura do papa e do seu primado do qual brotou o dogma da infalibilidade pontifícia. Ele declara que o romano pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando define uma doutrina em matéria de fé e de moral, goza de infalibilidade. E que, para a fé católica, não se trata de um simples opcional; o Vaticano I a pensou deixando claro: "Se, porém, alguém, Deus não queira!, ousar contrariar essa nossa definição: seja anátema". Anátema, para quem não o sabe, é sinônimo de excomunhão.

Hans Küng - teólogo suíço
De 1870 até hoje, o dogma da infalibilidade foi usado somente uma vez, especificamente por Pio XII, em 1950, quando proclamou o dogma da Assunção aos céus da Santa Virgem Maria em corpo e alma. Mas, apesar do uso parcimonioso, a questão da infalibilidade tornou-se ardente assim mesmo por causa do célebre teólogo suíço Hans Küng, que, precisamente por ter criticado a infalibilidade pontifícia com um livro que fez época, intitulado Infalível? Uma pergunta (1970), foi privado por João Paulo II da qualificação de teólogo católico.

É crível hoje um dogma como o da infalibilidade papal? A meu ver, ao invés, ele acaba afastando do sentimento religioso. Eu penso, de fato, que, para a consciência, é a própria noção de infalibilidade que se torna impossível hoje, quando as próprias ciências exatas se declaram conscientes de apresentar dados cada vez mais sujeitos a possíveis revisões e, como tais, declaráveis apenas "não falsificados" e nunca absolutamente verdadeiros. 

Vivemos em uma época em que a própria noção teórica de verdade é pouco crível, ainda mais quando se trata de verdade absoluta, dogmática, indiscutível. Ratzinger sabe bem disso e não por acaso, há muito tempo, acusa esta época de "relativismo", mas não é culpa de ninguém se as coisas são assim, é o espírito dos tempos que se move e se manifesta nas mentes depois de um século como foi o XX, e é preciso reconhecer isso se quisermos continuar falando ao mundo de hoje.

Também à luz do fato de que um papa, Honório I, foi declarado herege pelo Concílio Ecumênico Constantinopolitano III, Küng propunha que se substituísse a infalibilidade pelo conceito de indefectibilidade, querendo dizer com isso que a questão subjacente à infalibilidade não se refere à razão teórica, mas sim à vontade, "ao coração", como diria Pascal, ou seja, que a Igreja nunca abrirá mão da tarefa belíssima de ser fiel ao seu Senhor e ao primado do bem e do amor que dele se segue. 

Parece-me uma proposta mais atual, mais humilde, mais evangélica.

* Vito Mancuso é teólogo italiano, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão.

Tradução do italiano por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sábado, 16 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517641-a-infalibilidade-com-prazo-de-validade-artigo-de-vito-mancuso
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No vácuo do poder

Entrevista com Paolo Flores D'Arcais*

CHRISTIAN CARVALHO CRUZ


Ratzinger trabalhou e continuará trabalhando para fazer seu sucessor,
avalia filósofo italiano


PAOLO FLORES D'ARCAIS - filósofo italiano
No dia 21 de setembro de 2001, a revista MicroMega, prestigiosa trincheira da intelectualidade de esquerda na Itália, resolveu lançar seu Almanaque de Filosofia, dedicado ao confronto da fé com a razão, com um debate de tema bem cristalino: "Deus existe?". No palco do histórico teatro Il Quirino, em Roma, por duas horas inteiras, apenas dois homens responderam à pergunta. Do lado do "é claro que não" estava o filósofo e diretor da MicroMega, Paolo Flores D’Arcais, um dos expoentes do Maio de 1968 em seu país, professor da Universidade de Roma La Sapienza. Do lado do "é claro que sim", o cardeal Joseph Alois Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

Admirado com a prontidão com que Ratzinger aceitou o embate com um marxista ateu como ele, D’Arcais guarda até hoje a carta que o futuro papa lhe enviou topando o convite. "É difícil reconstruir o clima apaixonado daquela tarde, a participação atenta e entusiasmada com que fomos acompanhados não só pela plateia do teatro como pelas quase 2 mil pessoas que ficaram do lado de fora, seguindo nossas palavras por um sistema de som", conta. De Ratzinger, ele ficou com a imagem de um homem cordial que não fugia da raia - "embora nossa disputa no palco não tenha sido nada diplomática, e sim repleta de críticas mútuas e muito explícitas".


CARDEAL MARC OUELLET - canadense
Quatro anos depois, Ratzinger se tornou o papa Bento XVI. O mesmo que, por razões inicialmente não muito claras, mas que aos poucos apontam para a briga de poder na Cúria Romana, renunciou ao trono de Pedro essa semana. Um gesto de "extraordinária honestidade intelectual", segundo D’Arcais, ainda diretor da revista e observador atento das coisas terrenas da Praça São Pedro e arredores. Para o filósofo, Ratzinger já trabalhou e continuará trabalhando para fazer seu sucessor, no mínimo elaborando uma lista de nomes. E ele até arrisca um palpite sobre o primeiro nome dessa lista: o canadense Marc Ouellet, de 68 anos, prefeito da Congregação dos Bispos e presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina. A seguir, trechos da entrevista que D’Arcais concedeu ao Aliás.

Qual será o legado do papado de Bento XVI? Seus oito anos à frente da Igreja Católica serão considerados um fracasso ou um sucesso?

Paolo Flores D’Arcais - O legado mais importante, pelo qual Ratzinger passará à história, é a própria renúncia, que criou um precedente cuja importância ainda não foi suficientemente dimensionada. No futuro, outros papas o imitarão, porque os avanços da medicina tornarão cada vez mais normal a existência de pessoas extremamente velhas, acima dos 90 anos, em relativa boa saúde, mas incapazes de tocar um trabalho massacrante como o governo de 1,2 bilhão de fiéis e uma máquina administrativa ciclópica [sobre-humana] como a Igreja Católica.

A renúncia expõe uma divisão interna no Vaticano, entre uma Igreja do testemunho, calcada na doutrina e no dogma, e uma Igreja do diálogo, herdeira do Concílio Vaticano II?

Paolo Flores D’Arcais - Não, ao contrário. Essa divisão não existe mais, a meu ver. E o maior sucesso de Bento XVI, do ponto de vista dele, obviamente, consiste exatamente em ter padronizado e uniformizado todos os vários episcopados continentais e nacionais. Em nenhum deles existe hoje uma corrente progressista que possa configurar uma Igreja do diálogo. O diálogo com o mundo é agora solidamente enraizado na doutrina e no dogma, sem concessões. A última voz dissonante foi a do cardeal Martini (Carlo Maria Martini, o liberal arcebispo emérito de Milão, que chegou a ser uma alternativa a Ratzinger no Conclave de 2005 e morreu em 2012). Hoje a alta hierarquia da Igreja é unanimemente ratzingeriana. Outra coisa, é claro, é a Igreja dos níveis mais básicos.

Foi dito que a renúncia foi um gesto humano, que contrasta com a ideia de santidade e infalibilidade do papa. Poderíamos interpretar esse "gesto humano" como um sinal de modernização e abertura, de uma Igreja mais disposta a reavaliar suas posições sobre temas como aborto, divórcio, métodos contraceptivos e casamento gay?

Paolo Flores D’Arcais - A renúncia certamente dessacraliza a figura do papa. O sumo pontífice não era só o último dos soberanos absolutos, porque, conforme mostra esse caso, também um soberano absoluto pode abdicar. Aos olhos de seu rebanho, Bento XVI foi um soberano com uma aura carismática sem igual, a de ser o vigário de Cristo na Terra, ou seja, o substituto da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que reina no além - resumindo, um vice-Deus. Mas um vice-Deus que pode se demitir e se tornar um ex-vice-Deus destrói o caráter de sacralidade que, até então, acompanhou a figura papal. Em poucos dias, no Vaticano, haverá um papa emérito e um papa papa. A figura do sumo pontífice se tornará então igual à de qualquer arcebispo de Westminster, embora com muito mais fiéis. Essa dessacralização não implica, contudo, uma atitude de maior secularismo sobre o aborto, o casamento gay e a pílula. Não automaticamente, pelo menos. Mas é possível que a longo prazo a onda da decisão de Ratzinger corroa a inoxidável doutrina conservadora atual.

Nos dias de hoje, qual a real necessidade para a sociedade de que a Igreja seja mais tolerante? Conheço católicos que se mantêm crentes, frequentam a missa, mas não dão importância às determinações do Vaticano, sobretudo nas questões de comportamento. É como se sua fé e o Vaticano fossem coisas distintas, até antagônicas.

Paolo Flores D’Arcais - Um filósofo ateu como eu não é a melhor pessoa para dizer à Igreja o que seria melhor para seu futuro. Obviamente, do meu ponto de vista, o melhor seria que todas as religiões, que considero superstições, se extinguissem. Mas isso é irrealista. O fato é que até mesmo os católicos praticantes, no nível da massa, têm um senso de obediência esquizofrênico: aceitam a doutrina da fé mais ou menos (e eu me pergunto quantos realmente acreditam na imortalidade da alma e, especialmente, na ressurreição do corpo; se acreditassem firmemente nisso não temeriam a morte, e levariam ao pé da letra as palavras de Jesus de que os ricos não entram no paraíso), mas não dão nenhuma importância às indicações de seus bispos sobre fatos da vida sexual e política. A esse respeito, o comportamento deles hoje não difere do dos secularizados.
BENTO XVI - No dia de sua aclamação a Papa (Vaticano, 19/04/2005)
Ratzinger, um cardeal voltado ao estudo e à preservação da doutrina e dos valores tradicionais da Igreja, não terá sucumbido ao peso do trabalho político e administrativo?

Paolo Flores D’Arcais - Acredito que a incapacidade administrativa seja o verdadeiro motivo da renúncia de Bento XVI, até porque ele declarou isso de modo suficientemente transparente. Mas seu governo teria sido inadequado de outras formas? No plano doutrinal, penso que ele uniu a Igreja mais do que nunca. No plano cultural, seduziu pela linha sicut Deus daretur ("como se Deus existisse"), uma parte importante da cultura laica que ele propôs a todo o mundo, inclusive aos não crentes, como uma receita para evitar a catástrofe do niilismo. O único setor em que fracassou foi na condução da máquina da Cúria, agora presa em lutas fratricidas e intrigas dignas da corte papal renascentista - talvez falte o veneno, mas há abundância do veneno pós-moderno, e não menos mortal, que são os dossiês com os quais diversos cardeais estão fazendo a guerra.

Na carta de renúncia, Bento XVI fala em falta de vigor do corpo e da mente...

Paolo Flores D’Arcais - Esse é o ponto crucial. Ratzinger, de fato, não dá a impressão de ter uma doença grave ou de estar fisicamente debilitado de forma mais séria. Mais do que da falta de força da alma, a renúncia vem da incapacidade de limpar o topo da Cúria, pôr fim às lutas de facções e purificar a Igreja da podridão. Ele sente que não tem energia psicológica ("l’animo") para uma tarefa duríssima, que levaria à ruptura até mesmo pessoal com alguns de seus mais próximos colaboradores. O secretário de Estado Tarcisio Bertone, em primeiro lugar. Por outro lado, não bastaria escolher a facção anti-Bertone para dar credibilidade à Cúria.


PE. MARCIAL MACIEL DEGOLLADO
Por que não?

Paolo Flores D’Arcais - Porque o arqui-inimigo de Bertone, o cardeal Angelo Sodano, foi o mais forte patrocinador do mexicano Marcial Maciel Degollado, o monstruoso chefe carismático dos poderosíssimos Legionários de Cristo que Ratzinger quis condenar ainda sob o papado de Karol Wojtyla (Degollado foi acusado pela imprensa europeia de levar um vida dupla, com filhos em vários países, e de abusar sexualmente de noviços). Ratzinger não sabe como resolver os dois problemas cruciais para a imagem da Igreja no mundo, o escândalo dos padres pedófilos e o das finanças do Banco do Vaticano, por onde transitaram, e provavelmente ainda transitam, cifras ligadas à corrupção internacional entrelaçada à lavagem de dinheiro da máfia. Embora sobre a pedofilia ele tenha escolhido a via da cautelosa e gradual transparência, mas sem conseguir vencer toda a resistência, sobre o Banco do Vaticano não soube que peixe pescar, terminando por sucumbir às manobras de Bertone, porém sem compartilhá-las. Por isso, Ratzinger confessou com extraordinária honestidade intelectual não ser mais capaz de ser papa.

À primeira vista, a disputa pela sucessão se concentra na Europa, sobretudo nos cardeais italianos. Ao mesmo tempo, o catolicismo é uma religião ainda forte no mundo emergente, como América Latina e África. A Ásia parece ser um rebanho que desperta o interesse também. Qual sua avaliação da geopolítica do papado de Bento XVI?

Paolo Flores D’Arcais - Quando nomeou Angelo Scola arcebispo de Milão, Ratzinger escreveu que era uma indicação explícita para sua sucessão. Scola já era patriarca de Veneza, local de prestígio que deu três papas no século 20 (Pio X, João XXIII e João Paulo I) e de onde não sai ninguém senão para Roma. Na esteira dos escândalos que abalaram a Cúria e inevitavelmente o mundo dos cardeais italianos, que são predominantes, a ascensão de Scola ao trono me parece menos segura, e Ratzinger deu posições de grande poder a cardeais estrangeiros, como o canadense Marc Ouellet (atual presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina). O último consistório, no qual todos os novos cardeais eram estrangeiros, mostra que Ratzinger não tem uma visão italocêntrica, nem mesmo eurocêntrica, da Igreja do futuro.

E quanto ao diálogo com as outras religiões?

Paolo Flores D’Arcais - O coração do pontificado de Ratzinger foi a proposta de uma verdadeira Santa Aliança de todas elas - e em primeiro lugar das três monoteístas - contra a modernidade nascida do Iluminismo. Para o papa alemão a mais profunda "estrutura de pecado" consiste na enorme reivindicação do homem de ser autônomo, dar a si mesmo a própria lei, em vez de obedecer à lei de Deus. Sua intenção foi a de propor uma frente comum contra o ateísmo, o agnosticismo e o laicismo. O projeto funcionou em grande parte com o judaísmo, mas falhou com o islamismo e com os protestantes, pelo menos com os grandes movimentos de tele-pastores e as tendências neopentecostais e milagreiras que tiram milhões de fiéis da Igreja Católica na América Latina.

O que podemos esperar do próximo conclave? Mudança ou continuidade? Ratzinger terá influência na escolha de seu sucessor?

Paolo Flores D’Arcais - A escolha não será entre progressistas e conservadores, pelo menos no plano doutrinal e cultural, porque, repito, todos hoje são ratzingerianos. A diferença pode estar apenas na energia e no radicalismo com que o próximo papa vá atacar a corrupção na Igreja, a cobertura que a Cúria garantiu até aqui aos pedófilos e aos vilões das finanças. Mas uma limpeza completa é difícil de imaginar, porque são muitos - e muito destacados - os cardeais e bispos que deveriam ser removidos numa tacada só. Ratzinger já trabalhou e vai continuar trabalhando até o final para orientar a sua sucessão, no mínimo com uma lista de nomes.


CARDEAL ANGELO SCOLA - arcebispo de Milão (Itália)
Em quem o sr. apostaria para ser o sucessor de Bento VXI?

Paolo Flores D’Arcais - Até poucos meses atrás, eu não tinha dúvida: Angelo Scola. Hoje eu coloco Marc Ouellet em primeiro lugar. Mas a situação ficou mais incerta. Também porque Bento XVI eliminou a regra instituída por João Paulo II, segundo a qual a partir da 34ª votação no conclave não eram mais necessários os dois terços dos sufrágios, bastava a maioria. Agora, com a volta da regra dos dois terços, para ser eleito papa será preciso não só um consenso muito forte como também não ter uma hostilidade consistente da minoria. Desse ponto de vista, Scola corre algum risco. Ele vem do movimento Comunhão e Libertação, que, com a Opus Dei, é o mais citado quando se fala de uma "Igreja dos negócios" (em maio de 2012, o presidente do Banco do Vaticano, Ettore Gotti Tedeschi, membro da Opus Dei, foi demitido pelo secretário de Estado Bertone, sob acusação de "má gestão"). Recentemente, Scola tem se distanciado das escolhas políticas do movimento, mas não o suficiente. A força desses movimentos conservadores dentro do Vaticano é enorme. Não só a da Opus Dei e da Comunhão e Libertação, mas também da Comunidade di Santo Egidio, os Focolares e tantas outras. Entre eles nem sempre há homogeneidade. Santo Egidio e Focolares, por exemplo, têm fama de serem mais "abertas". Opus Dei e Comunhão e Libertação tiveram uma importância crucial na eleição de Ratzinger, e certamente continuarão a desempenhar um papel protagonista. Porém, é verdade que em alguns episcopados esses movimentos venham sendo vistos com certo tédio crescente por causa do seu caráter de "poder separado" da hierarquia das dioceses.

Depois de deixar o trono, Bento XVI continuará em Roma. O sr. acha que ele vai se retirar completamente da estrutura de poder do Vaticano ou continuará influenciando?

Paolo Flores D’Arcais - Estou convencido de que Joseph Ratzinger tenha verdadeiramente intenção de "desaparecer", dedicando-se às orações e aos estudos. Mas muito dependerá de quem será seu sucessor e de como ele conseguirá se impor. Até porque "desaparecer" significa, para um ex-pontífice, não publicar nada. E eu não sei se Ratzinger, que é também um ex-professor, será capaz de resistir às tentações acadêmicas.

* PAOLO FLORES D'ARCAIS é filósofo, ex-professor da Universidade de Roma (Itália) "La Sapienza". Autor dos livros Etica senza fede e L'individuo libertario.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Supl. ALIÁS - Domingo, 17 de fevereiro de 2013 - Pgs. J4 e J5 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,no-vacuo-do-poder,997735,0.htm
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A esquecida profecia de Ratzinger
sobre o futuro da Igreja

Marco Bardazzi
Vatican Insider
18-02-2013


Uma Igreja redimensionada, com menos seguidores, obrigada inclusive a abandonar boa parte dos lugares de culto que construiu ao longo dos séculos. Uma Igreja católica de minoria, pouco influente nas decisões políticas, socialmente irrelevante, humilhada e obrigada a “voltar às suas origens”.


PAPA BENTO XVI
Entretanto, também uma Igreja que, por meio desta enorme sacudida, reencontrará a si mesma e renascerá “simplificada e mais espiritual”. É a profecia sobre o futuro do cristianismo que, há 40 anos, um jovem teólogo bávaro, Joseph Ratzinger, pronunciou. Neste momento, redescobri-la talvez ajude a oferecer outra chave de interpretação para decifrar a renúncia de Bento XVI, pois insere o surpreendente gesto de Ratzinger em sua leitura da história. 

A profecia encerrou um ciclo de lições radiofônicas que o então professor de teologia pronunciou, em 1969, num momento decisivo de sua vida e da vida da Igreja. Eram os anos turbulentos da contestação estudantil, da conquista da Lua, mas também das disputas após o Concílio Vaticano II. Ratzinger, um dos protagonistas do Concílio, acabava de deixar a turbulenta Universidade de Tübingen e havia se refugiado na de Regensburg, um pouco mais calma.

Como teólogo, estava isolado, após ter se distanciado das interpretações do Concílio feita por seus amigos progressistas: Küng, Schillebeeckx e Rahner. Nesse período, foram se consolidando novas amizades com os teólogos Hans Urs von Balthasar e Henri de Lubac, com quem fundaria a revista Communio, a mesma que se converteu no espaço para alguns jovens sacerdotes “ratzingerianos”, que atualmente são cardeais (todos apontados como possíveis sucessores de Bento XVI: Angelo Scola, Christoph Schönborn e Marc Ouellet).


Era o complexo 1969, e o futuro Papa, em cinco discursos radiofônicos, pouco conhecidos (e que a Ignatius Press publicou há tempo no volume Faith and the Future), expôs sua visão sobre o futuro do homem e da Igreja. A última lição, que foi lida no dia do Natal, nos microfones da “Hessian Rundfunk”, tinha todo o teor de uma profecia.

Ratzinger disse que estava convencido de que a Igreja estava vivendo uma época parecida a que viveu após a Ilustração e Revolução Francesa. “Encontramo-nos num enorme ponto de mudança – explicava – na evolução do gênero humano. Um momento diante do qual a passagem da Idade Média para os tempos modernos parece ser quase insignificante”. O professor Ratzinger comparava a época atual com a do papa Pio VI, raptado pelas tropas da República francesa e morto na prisão em 1799. Nessa época, a Igreja ficou frente a frente com uma força que pretendia anulá-la para sempre.

Uma situação parecida, explicava, poderia viver a Igreja de hoje, golpeada, segundo Ratzinger, pela tentação de reduzir os sacerdotes a meros “assistentes sociais” e a própria obra a uma mera presença política. “Da crise atual – afirmava – surgirá uma Igreja que terá perdido muito. Será menor e terá que recomeçar mais ou menos do início. Já não será capaz de habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. Com a diminuição de seus fiéis, também perderá grande parte dos privilégios sociais”. Recomeçará com pequenos grupos, com movimentos, e isto graças a uma minoria que terá a fé como centro da experiência. “Será uma Igreja mais espiritual, que não subscreverá um mandato político cortejando seja a Esquerda, seja a Direita. Será pobre e se converterá na Igreja dos indigentes”.

O que Ratzinger expunha era um “longo processo, mas, quando passar todo o trabalho, surgirá um grande poder de uma Igreja mais espiritual e simplificada”. Então, os homens descobrirão que vivem num mundo de “indescritível solidão”, e quando perceberem que perderam a Deus de vista, “lembrarão o horror de sua pobreza”. Então, e apenas então, concluía Ratzinger, verão “a esse pequeno rebanho de crentes como algo completamente novo: o descobrirão como uma esperança para eles próprios, a resposta que sempre haviam buscado em segredo”.

Tradução do Cepat.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 19 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517696-a-esquecida-profecia-de-ratzinger-sobre-o-futuro-da-igreja
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Para onde vai, Pedro?

José González Faus
Religión Digital
16-02-2013

“As intrigas, ímpetos e labutas por fazer carreira; os envelopes com dinheiro, repartidos por Maciel, que ele [Bento XVI] sempre se negou a aceitar; a obsessão do Vaticano em encobrir os escândalos de pedofilia... foram abrindo seus olhos”. 

JOSÉ GONZÁLEZ FAUS - teólogo espanhol
Honesto, íntegro e encantador no tratamento pessoal; tímido, fugidio e com dificuldades para dirigir. Capaz também de uma encantadora ironia sutil, que precisou reprimir quando começou a usar as vestimentas. A timidez o fez agir de forma muito dura quando precisou se fazer de “inquisidor”; sua sensibilidade o tornou mais afável quando passou a ser pastor. De sua história pessoal, seria preciso se questionar mais a respeito de sua evolução para posturas conservadoras. De seu pontificado, receio que o ponto mais ambíguo não seja o “Vatileaks”, nem a pedofilia, mas a sombra de Marcial Maciel que provou ser mais encompridada do que a do cipreste.

Numa outra ocasião, contei a respeito do que ouvi numa aula, em Tübingen, em fins de 1966. Falando de duas grandes escolas teológicas antigas (Alexandria mais espiritualista e mais conservadora, Antioquia mais humanista e mais aberta), continuou com a pergunta: “e em Roma?” Detém-se um momento, abotoa o casaco e fica nos olhando. “Em Roma, vocês já sabem, não se faz boa teologia”. A sonora ovação dos alunos ainda ressoa em meus ouvidos. Dizem que Wojtyla o nomeou para a Congregação da Fé, após ler sua “Introdução ao cristianismo”, pois viu nele um teólogo “aberto e seguro”.

Por que posteriormente foi sacrificando a abertura em prol da segurança? Fala-se de susto diante dos excessos de 1968 (que na Alemanha foi pior do que na França, e evocou a muitos intelectuais os momentos prévios a Hitler). Também da prepotência de Hans Küng seu companheiro de cátedra em Tübingen; e da influência de seu irmão mais velho. Não sei. É tarefa para os historiadores.

Em Roma, talvez tenha iniciado uma evolução inversa, como se, após a decepção do progressismo, tropeçasse na decepção do conservadorismo; mas já era muito tarde para findá-la. Quando na sexta-feira santa de 2005, sendo ainda cardeal, pronunciou aquelas palavras: “quanta sujeira na Igreja... a traição dos discípulos fere mais a Jesus”, muitos acreditaram que se referia aos casos de pedofilia. Sem excluir isto, outros acreditam que fazia alusão, indiretamente, a coisas que estavam acontecendo na Cúria.

MARCIAL MACIEL DEGOLLADO
Fundador dos "Legionários de Cristo"
As intrigas, ímpetos e labutas por fazer carreira; os envelopes com dinheiro, repartidos por Maciel, que ele sempre se negou a aceitar; a obsessão do Vaticano em encobrir os escândalos de pedofilia... foram abrindo seus olhos. Por isso, ao ser eleito Papa, parecia que, por sua honestidade e porque conhecia o bastidor, talvez fosse capaz de reformar a Cúria (convém recordar a maneira como o Vaticano II havia exigido essa reforma e como a Cúria sempre se negou a fazê-la).

Talvez esta tenha sido a desilusão de seu pontificado e uma das razões que fragilizaram suas forças. Deu passos significativos: ordenou que Maciel desaparecesse da vida pública. Fez sonoros e sentidos pedidos de perdão pelos casos de pedofilia, que ainda parecem insuficientes para alguns, mas que foram de uma coragem inaudita diante do modo de proceder encobridor, típico do Vaticano. Desapareceram outros nomes, que prefiro não citar, e que parecem ser os que estão por trás dos famosos papéis do mordomo (pois em todas aquelas correspondências não há nada de sensacional, nem de interesse, salvo as críticas constantes a Bertone, como se fossem uma vingança ou manobra daqueles a quem Bertone substituiu).

Quando viajou para Valência [Espanha], decepcionou o episcopado espanhol que almejava uma condenação verbal ao governo socialista. Em sua primeira encíclica, quis nos dizer que Deus é Amor antes do que qualquer outra coisa. Contou com o infeliz episódio de Regensburg, mas logo o concertou relativamente bem.

De todo este panorama, sairia um balanço de empate. Contudo, há outro espinho que pode não ter lhe deixado em paz, chama-se Marcial Maciel. A história deste pequeno monstro ou doente é das mais incríveis e escandalosas dos vinte séculos do cristianismo. E o problema é que Ratzinger sabia. Quando estava na Congregação da Fé lhe fizeram chegar, por procedimentos complicados, provas irrebatíveis. E quando, em seguida, os remetentes pediram a sua ajuda, contam que ele disse: “sinto muito, mas não posso fazer nada, pois João Paulo II possui grande apreço por este homem”.

Assim dizem os autores, num livro intitulado La voluntad de no saber [A vontade de não saber], editado por Mondadori, com a condição de que apenas tivesse circulação no México. Faltou coragem para Ratzinger enfrentar Wojtyla ou ele teve medo de escandalizar o mundo? Deixem-me dizer que são coisas que dizem respeito apenas ao juízo de Deus. Todavia, isto explica a rápida decisão com que afastou Maciel para nada mais chegar à sede de Pedro. Apesar de ser mais difícil entender a morna política que o Vaticano parece conduzir em relação aos Legionários [de Cristo].

De minha parte, prefiro ficar com a recomendação feita por Bento XVI: a de que todos os papas deveriam ler e meditar a célebre carta que São Bernardo escreveu para o papa Eugenio III. Nela está a seguinte frase: “você não parece sucessor de Pedro, mas de Constantino”. Agradeço este conselho do renunciado papa e me permito recomendar, efusivamente, esta carta ao seu sucessor. Embora, devo reconhecer que, diante do que constitui um futuro imediato da Igreja, não sou precisamente otimista.

Tradução do Cepat.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 19 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517695-para-onde-vai-pedro
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Embora excepcional, renúncia do papa
não era imprevisível

MARIO VARGAS LLOSA*


MARIO VARGAS LLOSA - escritor peruano
Não sei por que razão a abdicação de Bento XVI causou tanta surpresa; embora excepcional, não era algo imprevisível. Bastava vê-lo, fragilizado e como perdido no meio das multidões nas quais sua função obrigava que ele submergisse, fazendo esforços sobre-humanos para parecer o protagonista destes espetáculos obviamente estranhos ao seu temperamento e vocação. Diferentemente do seu predecessor, João Paulo II, que se movia como um peixe n'água entre essas massas de fiéis e curiosos que o papa congrega em todas as suas aparições, Bento XVI parecia totalmente alheio a esses faustos gregários que constituem tarefas imprescindíveis do pontífice na atualidade. Desse modo compreende-se melhor sua resistência a aceitar a cadeira de São Pedro que lhe foi imposta pelo conclave, há oito anos, e à qual, como ficamos sabendo agora, nunca aspirou. Só abandonam o poder absoluto com a facilidade com que ele acaba de fazê-lo aqueles raros indivíduos que, em vez de cobiçá-lo, depreciam-no.

Não era um homem carismático nem um comunicador, como Karol Wojtyla, o papa polonês. Era um homem de biblioteca e de cátedra, de reflexão e de estudo, seguramente um dos pontífices mais inteligentes e cultos que a Igreja Católica teve em toda a sua história. Numa época em que as ideias e as razões importam muito menos que as imagens e os gestos, Joseph Ratzinger já era um anacronismo, pois pertencia ao grupo mais seleto de uma espécie em extinção: o dos intelectuais. Refletia com profundidade e originalidade, respaldado por uma enorme informação teológica, filosófica, histórica e literária, adquirida na dezena de línguas clássicas e modernas que dominava, entre elas latim, grego e hebraico. Embora concebidos sempre dentro da ortodoxia cristã, mas com um critério muito amplo, seus livros e encíclicas ultrapassavam com frequência o estritamente dogmático e continham reflexões inovadoras e ousadas sobre os problemas morais, culturais e existenciais do nosso tempo que leitores ateus podiam ler com proveito e, muitas vezes - como aconteceu comigo - com profunda perturbação. Seus três volumes dedicados a Jesus de Nazaré, sua pequena autobiografia e suas três encíclicas - sobretudo a segunda, Spe Salvi, de 2007, dedicada à análise da natureza bifronte da ciência que pode enriquecer de maneira extraordinária a vida humana, mas também destruí-la e degradá-la - têm um vigor dialético e uma elegância expositiva que as destacam nitidamente entre os textos convencionais e redundantes, escritos para os convictos, que, há muito tempo, o Vaticano costuma produzir.

Período de crise 
Bento XVI viveu num dos períodos mais difíceis enfrentados pelo Cristianismo em seus mais de 2 mil anos de história. A secularização da sociedade avança a largos passos, principalmente no Ocidente, cidadela da Igreja até poucas décadas atrás. Esse processo se agravou com os grandes escândalos de pedofilia nos quais estão envolvidas centenas de sacerdotes católicos, que parte da hierarquia protegeu ou tratou de ocultar e continuam se revelando em toda parte, ao lado das acusações de lavagem de dinheiro e de corrupção que atingem o Banco do Vaticano. O furto de documentos perpetrado por Paolo Gabriele, o próprio mordomo e homem de confiança do papa, trouxe à luz as lutas ferozes, as intrigas e os obscuros enredos de facções e dignitários da Cúria Romana que o poder tornou inimigos.

Ninguém pode negar que Bento XVI respondeu a esses desafios descomunais com valentia e determinação, embora sem sucesso. Ele fracassou em todas as suas tentativas, porque a cultura e a inteligência não bastam para se orientar no labirinto da política terrena e para enfrentar o maquiavelismo dos interesses criados e os poderes fáticos no seio da Igreja, outro ensinamento trazidos à luz nesses oito anos de pontificado de Bento XVI, que foi descrito, com toda justiça, pelo jornal L'Osservatore Romano como "um pastor rodeado por lobos".

Mas é preciso reconhecer que, graças a ele, o reverendo Marcial Maciel Degollado, o mexicano de antecedentes satânicos, recebeu por fim um castigo oficial na Igreja e a congregação fundada por ele, a Legião de Cristo, que até então havia recebido apoios vergonhosos na mais alta hierarquia vaticana, está sendo reformulada. Bento XVI foi o primeiro papa a pedir perdão pelos abusos sexuais em colégios e seminários católicos, a se reunir com associações de vítimas e a convocar a primeira conferência eclesiástica com a finalidade de colher o testemunho das próprias vítimas e de estabelecer normas e regulamentos com o propósito de evitar a repetição no futuro de semelhantes iniquidades. Mas também é certo que nada disso bastou para apagar o desprestígio trazido para a instituição, pois constantemente continuam aparecendo inquietantes sinais de que, apesar das diretivas dadas por ele, em muitos lugares, os esforços das autoridades da Igreja ainda são orientados a proteger ou dissimular os crimes de pedofilia que são cometidos, mais que a denunciá-los e puni-los.

Tampouco tiveram aparentemente muito sucesso os esforços de Bento XVI para pôr fim às acusações de lavagem de dinheiro e de transações criminosas do Banco do Vaticano. A expulsão do presidente da instituição, Ettore Gotti Tedeschi, próximo da Opus Dei e protegido do cardeal Tarcisio Bertone, por "irregularidades de sua gestão", decidida pelo papa, bem como sua substituição pelo barão Ernst von Freyberg, ocorrem tarde demais para impedir os processos judiciais e as investigações policiais já em andamento. Relacionadas, aparentemente, a operações comerciais ilícitas e transações que alcançariam cifras astronômicas, só contribuirão para corroer a imagem pública da Igreja e confirmar que, no seu interior, o terreno predomina às vezes sobre o espiritual, e no sentido mais ignóbil do termo.

Conservador
Joseph Ratzinger pertencia ao setor mais progressista da Igreja durante o Concílio Vaticano 2.º, no qual foi assessor do cardeal Frings e onde defendeu a necessidade de um "debate aberto" sobre todos os temas, mas logo foi se alinhando com a ala conservadora. Posteriormente, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), foi um adversário decidido da Teologia da Libertação e de toda forma de concessão em temas como a ordenação de mulheres, o aborto, o casamento homossexual e até mesmo o uso de preservativos que, em algum momento do seu passado, havia chegado a considerar admissível.

Evidentemente, isso fazia dele um anacronismo dentro do anacronismo que a Igreja se tornou. Mas suas razões não eram tolas nem superficiais e os que a rechaçam devem procurar entendê-las, por mais extemporâneas que nos pareçam. Estava convencido de que, se a Igreja Católica começasse a se abrir para as reformas da modernidade, sua desintegração seria irreversível e, em vez de abraçar a sua época, entraria em um processo de anarquia e deslocamentos internos. Tudo isso acabaria transformando-a em um arquipélago de seitas em luta entre si, algo semelhante às igrejas evangélicas, algumas circenses, com as quais o catolicismo compete cada vez mais - e sem muito sucesso - nos setores mais deprimidos e marginais do Terceiro Mundo. A única maneira de impedir, na sua opinião, que o rico patrimônio intelectual, teológico e artístico fecundado pelo Cristianismo se dilapidasse em uma barafunda revisionista e em uma feira de disputas ideológicas seria preservando o denominador comum da tradição e do dogma, embora significasse que a família católica foi se reduzindo e marginalizando cada vez mais em um mundo devastado pelo materialismo, pela cobiça e pelo relativismo moral.

Veredito
Julgar até que ponto Bento XVI agiu de maneira acertada ou não a esse respeito é algo que, evidentemente, cabe apenas aos católicos. Mas nós, não crentes, não deveríamos festejar como uma vitória do progresso e da liberdade o fracasso de Joseph Ratzinger no trono de São Pedro. Ele não só representou a tradição conservadora da Igreja como também sua melhor herança: a da ilustre e revolucionária cultura clássica e renascentista que, não podemos esquecer, a Igreja preservou e difundiu, por meio de seus conventos, bibliotecas e seminários, a cultura que impregnou o mundo com ideias, formas e costumes que acabaram com a escravidão e, distanciando-se de Roma, tornaram possíveis as noções de igualdade, solidariedade, direitos humanos, liberdade e democracia, impulsionando decisivamente o desenvolvimento do pensamento, da arte, das letras e contribuindo para acabar com a barbárie e para promover a civilização.

A decadência e a vulgarização intelectual da Igreja evidenciadas pela solidão de Bento XVI e a sensação de impotência que aparentemente o rodearam nesses últimos anos são sem dúvida fatores primordiais de sua renúncia e um vislumbre inquietante de quão incompatível nossa época seja com tudo o que representa vida espiritual, preocupação pelos valores éticos e vocação pela cultura e pelas ideias.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA.

* MARIO VARGAS LLOSA, ESCRITOR PERUANO,  RECEBEU O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA EM 2010.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Vida - Domingo, 24 de fevereiro de 2013 - Pg. A20 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,embora-excepcional-renuncia-do-papa-nao-era-imprevisivel-,1000742,0.htm
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O pastor de lobos

Francisco Carlos Teixeira*


A história de Bento XVI só pode ser compreendida quando se analisam os papéis desempenhados pelos personagens que estiveram ao lado dele, como o arcebispo alemão Georg Gänswein, o “bello Georg”, prefeito da Casa Pontifícia, o mordomo Paolleto Gabriele, o monsenhor Carlo Maria Viganò, ex-governador do Vaticano, e o cardeal Tarcísio Bertone, secretário de Estado do Vaticano. O pastor de Cristo alimentou com as próprias mãos os lobos que o cercavam e viu-se, ao final, devorado por seus próprios lobos.


FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA - UFRJ
O mundo foi pego de surpresa com o anúncio, em latim, da renúncia de Joseph Ratzinger, Bento XVI, ao pontificado, no último dia 11/02/2013. Alguns ditos especialistas, logo chamados de “vaticanólogos”, apoiados por bispos e cardeais – inclusive aqui no Brasil – correram a declarar que “sinais” – uma expressão bem apocalíptica – já vinham sido dados por Bento XVI. Tratava-se de salvar a face ante um fato de arbítrio absoluto e sem consulta ao corpo da Igreja, inédito desde o final da Idade Média. Ocorre que o “L'Osservatore Romano” – o órgão oficial da Igreja Católica –, na sua edição dedicada à renúncia papal, declarou-se “surpreendido” e o ato papal foi considerado pelo jornal oficial como “desconcertante”. Pouco antes o mesmo jornal declarara – em razão dos escândalos oriundos do Vaticano –, de forma compungida, que o Papa estava cercado de lobos. Quem eram os lobos?

Um passado ardente
A eleição de Bento XVI em 2005 criou, desde logo, uma grande polêmica, em especial pela veiculação mundial das fotos de Ratzinger em uniforme da Juventude Hitlerista (Hitlerjugen/HJ), durante o Terceiro Reich. A própria Igreja, e sua ala conservadora, apressaram-se em justificar a “adesão nazista” do Papa através de dois argumentos de peso. Em primeiro lugar, Ratzinger tinha, então, 14 anos de idade. Acusar alguém, 60 anos depois, de uma escolha feita aos quatorze anos é ilógico e, no limite, cruel. Muitos homens de direita, mesmo fascistas, arrependeram-se e foram, daí em diante, homens dignos. No Brasil mesmo, o vanguardista Dom Helder Câmara foi um militante integralista em sua juventude, antes de assumir, de coração fraterno, a Teologia da Libertação. Logo, condenar o adolescente “Joseph” para atingir o Papa Ratzinger não seria justo. Outro argumento reside na obrigatoriedade de todos os jovens, entre 14 e 18 anos, de pertencerem a Juventude Hitlerista – “Hitlerjugend”. 


Joseph Ratzinger quando jovem
membro da "Juventude Nazista"
De fato, em 1936, Hitler ordenou a integração de todas as organizações juvenis, incluindo as “juventudes” católicas e evangélicas, ao “Hitlerjugendbund”. Houve reação e muitos jovens se recusaram, com grande risco pessoal. Daí a publicação de um novo decreto – o “Jugenddienstpflicht” ou Serviço Obrigatório dos Jovens, em 1939 –, já em clima de pré-guerra. Ratzinger pertenceu a “Hitlerjugend” desde 1941, passando para a Wehrmacht, as forças armadas, em 1943. Havia opção? A resposta não é absoluta. Isso depende, é pessoal e julgar é difícil e pode ocorrer grave injustiça. Cerca de 10% dos jovens alemães recusaram aderir a HJ, apresentando razões morais, religiosas ou mesmo físicas. Na Baviera, onde Ratzinger vivia, este número chegou a 20% dos jovens – muitos católicos não aceitaram o “catolicismo Ariano” ( ou Positivo) proposto por Hitler. 

Em especial na Baviera, profundamente católica, a oposição passiva de católicos foi bastante grande. A ordem de assassinato de doentes mentais – considerados um “peso morto” para a raça ariana – provocou, em especial, protestos explícitos do clero católico. A “Aktion T4”, como era chamada o programa de eliminação de doentes mentais e de deficientes físicos, chegou até a família Ratzinger quando um primo de Joseph, portador da Síndrome de Down – um entre as 70 mil vítimas -, foi morto por ordem do Estado nazista. Mesmo assim a família Ratzinger calou-se. O bispo de Munster, Clemens Von Galen, no entanto, protestou corajosamente contra os assassinatos, inclusive lendo homilias que denunciavam o horror do regime nazista (Von Galen foi, significativamente, beatificado por Bento XVI em 2006). A partir de 1941 vários mosteiros foram atacados e destruídos por nazistas. Era a ação “Klosterstum”, ordenada por Heinrich Himmler, líder das SS – foi o mesmo ano que Joseph ingressou na Juventude Hitlerista. Foi nesta mesma Baviera que jovens, muitos jovens, organizaram uma ampla rede de resistência denominada “A Rosa Branca” - Die Weisse Rose” - , que culminaria na decapitação Sophie (1921-1943) e Hans Scholl (1918-1943), irmãos, cristãos e resistentes por ordem de um tribunal nazista.

Muitos outros mantiveram uma postura discreta, mas sempre que possível sabotavam, descumpriam ou ignoravam as ordens do regime, inclusive acolhendo e protegendo judeus e outras vítimas do regime. Mas, estas são opções de fórum íntimo, pertencem a cada um. A maioria dos jovens aceitava a convocação para a Wehrmacht, posto que a recusa fosse crime de deserção, mas recusaram a HJ e a SS, buscando na Wehrmacht uma saída “nacional” e não partidária. A Wehrmacht, que também cometeu terríveis atrocidades, era a força militar nacional; já a HJ e as SS ( e antes as SA) representavam o regime e seu terror. Ratzinger aceitou a ordem de adesão a HJ. Aqueles que recusam perdiam o direito a estudar, frequentar clubes ou associações esportivas ou culturais e eram, frequentemente, hostilizados na escola. Ratzinger conseguiu sua matrícula e prosseguiu em seus estudos, mesmo num tempo de martirização da Igreja. Que Hitler era incompatível com a fraternidade cristã é obvio. 


PADRE BERNHARD LICHTENBERG
Cristãos como Martin Niemöller, e centenas de padres franceses e holandeses foram exterminados em KZ por protegerem judeus e até comunistas. Outros pagaram com a vida e a liberdade a denúncia do nazismo como inumano como o Padre Bernhard Lichtenberg, preso em 1941 e morto em Dachau neste mesmo ano de 1943. Mas, “Joseph” tinha, então, 14 anos! Estamos frente uma questão difícil e não creio que possamos, aqui, fazer juízos de valor sem viver sob as mesmas condições que informaram as decisões de Joseph. Nós, no Brasil, vivemos uma ditadura recente. Como vivemos então? Quantos fizeram serviço militar? Quantos fingiram não ver o que se passava... Quantos aplaudiram o “Milagre Econômico”? Quantos políticos e ministros da Ditadura – que não eram adolescentes de 14 anos! - estão hoje no Congresso Nacional? 

Julgando ações e palavras
Podemos, contudo, fazer um juízo, claro e inequívoco, sobre o Papa Ratzinger, suas ações e suas palavras. Claro que é um conservador, contrário a adoção, por exemplo, de medidas singularmente importantes, como o uso da chamada “camisinha” em áreas devastadas pela aids da África. Mas Dom Eugênio Salles, ou Winston Churchill, também eram conservadores e foram grandes democratas. A questão central sobre o Papa, mais uma vez, é outra: quais suas simpatias políticas e como encarou o Regime Hitlerista? Do jovem Joseph não temos material, cartas ou testemunhos, para afirmar com certeza suas simpatias ou antipatias. Contudo, quando o Papa Ratzinger visitou o Campo de Extermínio de Auschwitz, em 2006, insistiu, de público, numa tese amplamente desacredita pela moderna historiografia sobre o nazismo. Na ocasião, o Papa proclamou, em face de sobreviventes, que o Holocausto “... foi resultado da ação de um grupo de criminosos que abusaram do povo alemão para se servir dele...”.

Essa versão da História é inaceitável, em especial para um homem com a formação intelectual de Ratzinger. Os alemães apoiaram, votaram, participaram, foram para as ruas e delataram em massa seus concidadãos judeus ou não, oponentes políticos, ciganos, gays e cristãos, como as Testemunhas de Jeová (que se recusaram a dizer “Heil, Hitler!” – “heil”, salve em alemão, só poderia ser usado para com Deus). Igualar os alemães como suas vítimas é uma ofensa e talvez encubra o próprio desejo de se autodesculpar. Ratzinger foi além: declarou que os alemães foram, eles também, vítimas de Hitler. Assim, tornava-se fácil lançar toda a culpa num pequeno punhado de homens e desculpar as multidões que apoiaram e lucraram com o nazismo e a perseguição dos judeus.


EDITH STEIN - freira judia alemã
Em especial Ratzinger ofendeu milhões de vítimas do Holocausto ao afirmar que a freira Edith Stein foi uma vítima cristã e alemã dos nazistas. Ora, Edith Stein era uma judia, nascida na Alemanha, convertida ao cristianismo e que, entretanto, mesmo sendo freira, foi morta pelos nazistas. Posto está que a “irmã” Edith não foi morta por ter nascido na Alemanha ou por ser uma religiosa cristã: ela foi morta, em 1942, no campo de Auschwitz, por ser judia! Ao enfatizar sua escolha “cristã”. 

A irrelevância do Holocausto para Bento XVI tornar-se-ia obvia três anos mais tarde, em 2009, quando, por decisão pessoal, o papa alemão suspendeu a excomunhão do bispo inglês Richard Williamson, que defendeu publicamente a inexistência da matança em massa de judeus e oponentes do Terceiro Reich. João Paulo II – um polonês que sofreu a ocupação alemã –, em face do escândalo mundial da negação do Holocausto e das afirmações do bispo sobre a veracidade dos chamados “Protocolos dos Sábios de Sião”, excomungou o bispo, impedindo sua pregação, mas Bento XVI o perdoou e reintegrou-o à Santa Madre Igreja. É sobre este Ratzinger, e não sobre o menino “Joseph”, que cabe julgamentos morais. Neste caso, Ratzinger trouxe os lobos para o seu convívio.

De teólogo a senhor dos dogmas
Joseph Ratzinger foi, ou é (não se sabe bem se ele continuará a usar o titulo papal ou apenas o tratamento de bispo emérito), o sétimo papa de origem alemã (há alguma controvérsia aqui) e o primeiro Papa, depois de séculos, a ter sua origem na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé – a antiga “Santa Inquisição” –, o organismo da Igreja Católica responsável pela manutenção da ortodoxia dos dogmas do catolicismo e, nos séculos XVI e XVII, por milhares de condenações cruéis de dissidentes cristãos e de judeus, mortos em milhares de fogueiras. 

A função central da Congregação é a defesa intransigente dos dogmas da Igreja. A maior parte destes tem sua origem na luta contra o Protestantismo – considerado como heresia – conforme o Concílio de Trento (entre 1545 e 1563). Mais tarde, no século XIX, quando a Igreja foi confrontada com a ascensão do Liberalismo e dos Socialismos, e mais importante de tudo, com a luta contra a emergência do Estado Nacional Italiano (que expropriou as terras da Igreja e reduziu os territórios do papa à cidade-estado do vaticano), em 1870. 

A resposta do Vaticano foi, então, cabal, com a proclamação, durante o Concílio Vaticano I, em 1870, da Constituição Papal “Pastor Aeternus”, o dogma da “Infalibilidade” papal. Tratava-se de colocar, em questões de fé e de moral, a palavra do papa como verdade absoluta, inquestionável. Da mesma forma, como as palavras sacramentais se realizam pela força de sua verdade mística.

Ratzinger, na direção da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, foi um defensor ferrenho de tais dogmas, em especial do conceito de verdade como a própria natureza dos sacramentos, como o batismo, que realiza por si só, o que as palavras pronunciadas pelo sacerdote prometem. Vários teólogos, como Leonardo Boff, por sua vez, asseguram que todas as palavras ditas com amor e fraternidade – inclusive “eu te amo” – possuem o mesmo valor sacramental daquelas pronunciadas por ofício sacerdotal. Neste caso, o amor e a fraternidade possuiriam a força do sacramento. Leonardo Boff, ex-aluno de Ratzinger, foi condenado, então, pelo seu ex-professor ao silêncio “obsequioso” – um basta ao debate no seio da Igreja! 

A carreira como guardião do conservadorismo
Desde 1981 até sua eleição, em 2005, Ratzinger exerceu com vigor, e grande conservadorismo, a direção da Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé, de onde desenvolveu, por exemplo, uma ação constante e consistente contra os representantes da Teologia da Libertação e o clero progressista, ou simplesmente humanista e preocupado com as condições imperiosas de homens e mulheres “viverem também no mundo”. 
Temas como: 
  • a “fuga” de sacerdotes e de fiéis, 
  • o papel dos leigos e das mulheres na condução da Igreja, 
  • o celibato dos sacerdotes, 
  • as relações com os avanços da ciência e, em especial, 
  • o surto de pedofilia que abalou os católicos foram tratados com menor atenção ou, mesmo, desprezo.

PADRE ERNESTO CARDENAL - Nicarágua
Na sua ação como condutor da Congregação Para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger voltou-se contra nomes renomados do “aggiornamento” da Igreja, teólogos que buscavam – ante os desafios que afligem a Igreja pós-conciliar (Concílio Vaticano II, 1962-65) – como o Padre Ernesto Cardenal (1925), da Nicarágua, Hans Küng (1928), teólogo alemão que criticava duramente o dogma da Infalibilidade Papal e o monopólio da Cúria Romana sobre o conjunto da Igreja Católica e, ainda, Leonardo Boff (1938), teólogo brasileiro, defensor de uma intensa abertura da Igreja para que fiéis, laicos ou consagrados assumam maiores responsabilidades na condução da Igreja. Em todos estes casos, coube a Ratzinger – mesmo a duríssima e pública advertência de João Paulo II contra o Padre Cardenal na Nicarágua – a condução dos dossiês de condenação.

Cabe destacar que uma das acusações básicas da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé contra os teólogos progressistas era imiscuir-se com a política, com a gestão do Reino deste mundo, abandonando ou prejudicando a Igreja e sua dimensão mística. Ora, Ratzinger, impelindo João Paulo II, condenava de forma acerba a ação política de religiosos, como do Padre Cardenal em 1983 (suspenso “Ad Divinis” em 1985). Mas Ratzinger e Woityla calaram-se, agindo no silêncio e colaborando com o governo de Ronald Reagan nas suas ações clandestinas destinadas a desestabilizar os regimes comunistas na Europa Oriental, em especial na Polônia. Ou, ainda, paralisar o apoio das comunidades eclesiais de base aos movimentos antiditatoriais na América Latina, onde milhares de pessoas eram presas e torturadas, inclusive religiosos.

A cegueira em face dos direitos humanos
CARDEAL JORGE MEDINA - chileno
Na verdade, a Igreja de Ratzinger calou-se sobre a brutal ditadura argentina, sobre a tortura, os sequestros de bebês e os voos da morte – o que explica o desprezo de Cristina Kirchner para com o clero de seu país. O mesmo Vaticano não só calou-se no massacre de opositores durante a ditadura Pinochet, como ainda – em 05/04/1999 – o Cardeal Jorge Medina (1926), chileno, amigo de Ratzinger, pediu, em sigilo, ao governo britânico, em nome do Vaticano, a libertação, por “motivos humanitários”, de Augusto Pinochet, então preso em Londres. Coube a Medina, Prefeito da Congregação do Culto Divino no Vaticano, anunciar em 2005 o “Habemus Papa” que entronizava Ratzinger como Bento XVI. Medina foi, ainda, o reitor da PUC de Santiago por pedido pessoal de Pinochet, que o considerava mais adequado para controlar o movimento estudantil chileno. Tratava-se de substituir no cargo, de forma excêntrica, o cardeal Raul Silva Henriquez, considerado pelo almirante Jorge Sweet Madge como defensor dos Direitos Humanos. Desta forma, Medina ascendeu na hierarquia chilena, tornou-se amigo de Ratzinger e foi seu principal eleitor em 2005. 

Em suma, a Sagrada Congregação para Doutrina da Fé mostrou-se, sob o domínio de Ratzinger, cega do “olho esquerdo”, participando e dirigindo ativamente toda ação contra a Teologia Progressista e mesmo contra os movimentos sociais no mundo. Outro amigo e correligionário de Ratzinger, e que faz rápida carreira no Vaticano, é o cardeal de Lima, Juan Luis Cipriani (1943), figura chave na eleição do papa alemão. Cipriani, bispo de Ayacucho no Peru, foi acusado, por inúmeras organizações de direitos humanos, de negar auxílio às vítimas da guerra contra o Sendero Luminoso. Mesmo figuras moderadas, como Mario Vargas Llosa, acusaram Cipriani, duramente, de ocultar os crimes da Era Fujimori e de acusar os parentes das vítimas do Massacre de La Cantuta de “traição à fraternidade” por exigirem a punição dos militares responsáveis pela morte de um professor e nove estudantes universitários em 1992.


CARDEAL JUAN LUIS CIPRIANI
Cipriani, que jamais falou sobre os escândalos de pedofilia na Igreja, impediu a organização de um grupo de estudantes gays da Universidade Pontifícia Católica e, por fim, declarou as organizações de luta pelos direitos humanos como “esa cojudez”, numa linguagem muito pouco canônica. Foi neste ambiente, povoado de lobos em hábitos negros, no interior da burocracia do Vaticano, que Ratzinger construiu seu caminho para o papado.

Um papa traído?
A mídia internacional, principalmente aquela informada pela hierarquia católica, buscou, após a perplexidade inicial, atribuir ao estado de saúde debilitado de Ratzinger as razões da renúncia. Ora, tal motivação deu origem, de imediato, a dois questionamentos: de um lado, Ratzinger sempre se declarou contrário ao instituto da renúncia de membros da hierarquia. Assim, aconselhou João Paulo II a não aceitar a renúncia do chamado Papa Negro, Peter Hans Kolvenbach, superior da Ordem dos Jesuítas, reafirmando, mesmo no severo e doloroso estado de saúde do jesuíta, que o cargo era uma “prova divina” (Kolvenbach ficou no cargo até sua inaptidão em 2008). Da mesma forma, Ratzinger se opôs a incorporação do instituto da renúncia nas Ordenações Jesuíticas (datada de 1540). Ele mesmo insistiu que João Paulo II, dolorosamente enfermo, se mantivesse no cargo. Tudo isso gerou o comentário ácido – “você não desce jamais da Cruz” – do cardeal Stanisław Dziwisz,  secretário de João Paulo II. 

Por outro lado, constatou-se, em especial depois da última missa do Papa, celebrada em 14/02/2013, que Ratzinger não aludiu a sua saúde como causa básica da renúncia. Bem ao contrário, fez um sermão político, inédito e duro: criticou os “hipócritas” na Igreja, as cisões internas e “aqueles que desfiguram o rosto da Igreja”. Frente tantos desafios, o papa mostrou-se incapaz de controlar e varrer, nas suas próprias palavras, “o lixo” que se acumula na Sede Santa. Ora, quem são os “hipócritas” e qual é o lixo?

Como Ratzinger (até o momento, final de fevereiro de 2013) não nomeou os seus traidores, o clero externo aos meandros e nichos recônditos do Vaticano, bem como os milhões de fiéis, ficaram sem saber a quem o papa condenava. Claro, a mídia, ainda uma vez, voltou para o amplo escândalo, que em 2012 abalou o Vaticano.

O VatiLeaks
GIANLUIGI NUZZI e a capa de seu livro: SUA SANTIDADE, AS CARTAS SECRETAS DE BENTO XVI
O escândalo, iniciado pela publicação do livro do jornalista Gianluigi Nuzzi - Sua Santidade, as cartas secretas, 2012 - mostrava, à luz do dia, uma intensa e mortal luta pelo poder no interior do Vaticano. O Papa, considerado um “intelectual”, absorto em seus estudos e em sua música (é um amante apaixonado de Mozart), conservador e antimodernista, deveria ficar isolado, longe da administração e da política cotidiana da Igreja. Estas “atribuições” ficariam centralizadas nas mãos do poderoso cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, um produto típico da burocracia romana. As grandes questões, como as nomeações para a hierarquia, as finanças e a previsível e próxima sucessão deveriam estar longe do gabinete do Papa. É neste contexto que surgem duas questões: de um lado, Nuzzi utilizou-se de documentos verdadeiros, autênticos e, sem dúvida, sigilosos. Como tais documentos chegaram ao jornalista? De outro lado, qual a razão do vazamento? 


ARCEBISPO GEORG GÄNSWEIN
Desde logo o gabinete do Papa, a sua falada “Família Pontificial”, estava no centro do vazamento. Havia traição. Esta “família” reunia, e ainda reúne, uma gama heterogênea e estranha de pessoas. Estranha até para a tradição do Vaticano. Dois homens eram o núcleo central das relações do Papa com o mundo: de um lado, Paolo Gabriele, mordomo do Papa, com acesso direto a todos os aposentos e documentos do Papa. Paolo, ou “Paoletto”, mesmo depois de preso (a partir de maio de 2012) sempre protestou lealdade e amizade, e mesmo carinho filial, ao Papa. O outro homem forte, desde os tempos que Ratzinger era cardeal de Munique, era o alemão Georg Gänswein, ordenado padre em 1984, depois de ser cozinheiro e professor de ski nos Alpes, com uma vida amorosa pré-hábito conhecida. Gänswein tornou-se, entretanto, o braço direito do Papa. Jovem (nascido em 1956) entre anciões, é chamado, na Cúria, de “Il bello George” e foi a inspiração de Donattela Versace para sua coleção de moda de 2007.

A estes se uniam quatro irmãs e leigas, consagradas, que cuidam dos serviços pessoais do Papa. Gabriele e Gänswein eram amigos e conviviam diariamente com o Papa. Gänswein vivia – e acompanhará o Papa para seu retiro depois de 28/02/2013 – no Vaticano, enquanto Gabriele residia na Via Porta Angelica, no próprio Vaticano, a uma caminhada dos aposentos do Papa. 

Um "palheiro insondável de escândalos"
Ora, por que Gabriele traiu? E, o que é fundamental, o que foi a traição? Durante o julgamento do mordomo papal, este insistiu, e de forma desconcertante, de que não traiu. De fato copiou cartas e relatórios secretos desde 2010, mas o fez para proteger o próprio Papa. Na verdade, em acordo com Gänswein, teriam entendido que o papa estava isolado das decisões e do “lixo” que inundava o Vaticano. A burocracia comandada por Tarcisio Bertone, o cardeal secretario de Estado do Vaticano, conseguira criar uma muralha burocrática capaz de esconder uma gestão, desde há muito tempo, absolutamente corrupta.

Os pontos principais, o conteúdo dos documentos, não foram questionados no tribunal, e nem o próprio Gabriele quis falar. O julgamento centrou-se no conceito de “roubo” e “invasão de privacidade”, e o conteúdo dos documentos, por isso mesmo, não seria revelado. Contudo, na casa da Via Porta Angelica foram encontradas 82 caixas de documentos pessoais do Papa – além de uma pepita de ouro, uma edição histórica e valiosa da “Eneida”, de 1581, e um cheque de 100 mil euros dados ao Papa pela Universidad Catolica de Santo Antonio de Murcia (Espanha), em Cuba. Não só Paolo Gabriele roubou os documentos, como também quis garantias de ter meios financeiros para sobreviver a uma crise no Vaticano.

Gabriele foi o único acusado; a “Família Pontificial”, e em especial o “bello Georg Gänswein”, com suas quatro leigas consagradas, foi poupado. O mordomo manteve-se em silêncio, pediu perdão e reafirmou a lealdade ao Papa. Enquanto isso, Tarcisio Bertone, numa declaração insólita, declarou-se atento para que o réu, a promotoria e o próprio tribunal não “criassem condições lesivas ao Vaticano” (El País, 09/06/2012). Soava como uma ameaça. Era uma ameaça negociada – logo após a condenação Paolo Gabriele foi perdoado pelo Papa e colocado em liberdade. Manteve o seu silêncio. No início de janeiro de 2013, já tomada a decisão da renúncia, o Papa nomeou Georg Gänswein arcebispo e Secretário Prefeito da Casa Pontifícia. Tratava-se, agora, de blindar o “bello Georg” contra qualquer vingança da Cúria, em especial após a sua renúncia.

O “lixo” do Vaticano
Paolleto Gabriele, o mordomo, um leigo – sem a proteção dos títulos eclesiásticos e o único condenado – causou lágrimas ao Papa. Ambos eram verdadeiramente amigos. Por que então traiu o Papa? Ou não foi traição... O vazamento, feito através do livro de Nuzzi, teria sido a última cartada da “Família Pontificial” para romper o bloqueio em torno do Papa e criar dificuldades contra o todo poderoso Tarcisio Bertone e os demais cardeais da Cúria. O papa, com certeza, não sabia da conspiração elaborada ao seu favor, que provocaria a ira dos cardeais da Cúria e a exigência de punição da “Família”. Ratzinger pôde salvar Gänswein, mas entregou Paolleto, como antes entregara um outro amigo: o chamado “banqueiro do Papa”. 


EMANUELA ORLANDI
Qual o conteúdo, tão terrível, dos arquivos de Paolo Gabriele e que poderiam abalar o poder da burocracia da Cúria? Os dossiês, que o próprio Papa chamou de “lixo do Vaticano”, derramava-se sobre temas obscuros e, mesmo, assustadores. Em primeiro lugar uma terrível história, velha de 30 anos: o desaparecimento da menina Emanuela Orlandi, de 15 anos, em 1983. Emanuela, uma bela adolescente, era filha de um funcionário da Casa Pontifícia. A menina desapareceu no próprio Vaticano e seu pai teria tido acesso, pouco antes, a documentos que comprovavam que o chefe da máfia, Enrico de Pedis, possuía contas e fazia lavagem de dinheiro através do Banco Ambrosiano, que cuidava das finanças do Vaticano. Contudo, há outras versões, ainda mais apavorantes. Uma grande “coincidência”, além de Gänswein ter assumido a Casa Pontifícia, com acesso aos seus arquivos, é o fato de que o mordomo Gabriele residia, até sua prisão, na mesma casa da Via Porta Angelica onde residira a família de Emanuela Orlandi. O mafioso De Pedis foi enterrado, com missa solene, na Basílica de Santo Ambrosio, ao lado de papas e cardeais.

As finanças do Vaticano
Em 2012, monsenhor Carlo Maria Viganò, nomeado em 2009 como Governador do Vaticano, por decisão pessoal de Bento XVI foi encarregado de fazer uma “limpeza” nas finanças do Papado. Tratava-se de moralizar licitações, compras, o destino de alugueis e de rendas devidas à Igreja. Aos poucos Viganò viu-se num emaranhado de interesses e de ocultamentos que invariavelmente levavam a Tarcisio Bertone e alguns dos cardiais controladores da Cúria, que acusaram Viganò de incompetência e, mesmo, de corrupção. O Papa acabou por ceder às pressões da Cúria e, em 2011, “exila” Vinganò, nomeando-o núncio apostólico em Washington, o que o priva de qualquer ingerência nos negócios papais. Duas cartas do Monsenhor são publicadas, confirmando as acusações de corrupção.


ETTORE GOTTI TEDESCHI
O caso Viganò abre caminho para um escândalo ainda mais grave, agora envolvendo Ettore Gotti Tedeschi, um ex-presidente do Santander Comsumer Bank e católico praticante, membro da ultraconservadora Opus Dei, nomeado, como homem de confiança do papa, como presidente do IOR/Instituto para Obras de Religião, o nome do banco do Vaticano. No esforço de colocar em dia as finanças do Vaticano – pressionado pela Lei 231/2007, da Itália, obrigando à observação das regras da União Europeia contra lavagem de dinheiro – faz com que o banqueiro exija das autoridades da Cúria a revelação dos titulares de centenas de contas secretas, numeradas, que se serviam do banco do Vaticano para entrar no sistema bancário internacional. A descoberta de Tedeschi é assustadora: um número relevante de contas pertencia a Máfia italiana, incluindo aí Matteo Messina Denara, o chefe da Cosa Nostra na Sicília. Outras contas eram de políticos italianos – cujos nomes não foram revelados – e de celebridades que buscavam fugir aos impostos. Algumas eram de religiosos, que não podiam, com certeza, explicar a origem dos recursos postos em suas contas.

Mais uma vez Tarcisio Bertone estava por trás da oposição ao “banqueiro do Papa”. Com um passivo pesado, envolvendo mortes e prisões em torno das finanças papais (como no Caso Ambrosiano), Tedeschi procurou garantir sua segurança. Coletou dezenas de documentos, cartas e e-mails envolvendo políticos italianos, empresários e mafiosos com as finanças da Cúria Romana, num total de 47 detalhados arquivos. Os documentos de Tedeschi comprovaram uma ampla e longeva operação de lavagem de dinheiro no interior do Vaticano

Oficialmente o Vaticano reagiu com “perplexidade e assombro”, negando conhecer quaisquer contas secretas. Em seguida, no seu melhor estilo, o cardeal Bertone declarou as acusações de Tedeschi produto de uma conspiração “judaico-maçônica”, como se ainda vivêssemos no regime de Salazar ou Franco. Bertone, em seguida, abriu uma ampla frente de ataque contra Tedeschi, indo de um diagnóstico de desequilíbrio mental até ser, o próprio Tedeschi, o mentor de toda a corrupção. O banqueiro do Papa foi, então, demitido por “incompetência”.

Somente em 15/02/2013 o Papa, em um dos seus últimos atos, nomearia o financista alemão Ernst Von Freyberg, um administrador de um estaleiro que produz navios de guerra, para substituir Tedeschi. As autoridades italianas, envolvidas através de contas secretas de financiamento dos partidos políticos e dos próprios políticos calaram-se. Bertone continuou falando pelo Papa, que qualificou, em entrevista, como ”(...) um homem manso que não se deixa intimidar”. Por ironia, será o cardeal Bertone, nascido em 1934, um salesiano com uma carreira típica da Cúria Romana, nomeado secretário de Estado do Vaticano por Bento XVI, em 2006, e o atual cardeal Camerlengo, que responderá pelo Vaticano a partir de 28/02/2013.

Enfim, este pastor de Cristo que alimentou com as próprias mãos os lobos que o cercavam viu-se, ao final, devorado pelos seus próprios lobos.

* Francisco Carlos Teixeira é historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: Carta Maior - Internacional - 17/02/2013 - Internet: 
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21624
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Reflexões sobre o poder a partir de
alguns temas eclesiais

Pe. Eduardo de la Serna*
jornal Página/12
25-02-2013


“Um medroso com poder é perigosíssimo (e pior ainda se, além disso, é tonto). E muito pior ainda, se não existe nenhuma instância de revisão dessas decisões. E o pior, em grau elevado, é quando se afirma que essas decisões tem origem no próprio Deus. Aí, o beco parece sem saída”.


PADRE EDUARDO DE LA SERNA - argentino
A renúncia do Papa “mexeu num vespeiro”. Para o bem e para o mal. Centenas de notas e artigos, em grande parte desnecessários, inúteis ou insuportáveis; muitos que mais parecem “lobby” do que informação, muitos que vendem “peixe podre”, muitos que revelam mais a ignorância do autor ou uma visão que, de tão parcial, é supérflua. Outros são de mera informação sem análise (às vezes é preferível isso); outros possuindo boa informação, com análises pobres; outros parecem sensatos e sérios, mas não temos condições de ficar seguros. A grande capacidade que nós, seres humanos, temos de acreditar em conspirações, convida-nos a aceitar (ou querer escrever) muitas notas que “se non è vero è bem trovato” [se não é verdade, foi muito bem contado].

Vêm à luz supostas máfias, fraudes econômicas, jogos (sujos) de poder, chantagens homossexuais e dezenas de coisas do estilo. E que muito – ou tudo – disto foi desencadeador da renúncia do Papa. Lamentavelmente, para muitos de nós não causa o mínimo estranhamento o fato destas coisas existirem na última monarquia absoluta que resta no mundo. Pessoalmente, para mim torna-se mais incrível que o Papa tenha renunciado porque se sente sem forças para conduzir a nave de Pedro, que navega tranquila num mar tempestuoso, e que na Igreja, “casa de todos” com alegria e paz, o Papa tenha desejado deixar lugar a outros, para seguir harmonicamente – agora a partir da clausura – a mansa vida eclesial. Para mim, esse conto de fadas é mais incrível do que o conto policial anterior.

Sem dúvidas que a democracia não é uma panaceia, e já vivemos o fracasso daquele que disse que “com a democracia se come, se educa e se trabalha”. Pessoalmente, acredito que a democracia é ruim, mas é de longe, de muito longe, o menos pior de todos os sistemas conhecidos. Sim, acredito que há diferentes formas de exercer a democracia, e há democracias participativas, populares, liberais, etc... Porém, mesmo a pior delas é ainda melhor do que a melhor das outras.

Por isso, não acredito que a democracia cure todas as feridas no corpo eclesial, mas, sem dúvida, ajudaria muito. A transparência costuma ser um grande inimigo daqueles que escolhem as sombras para lidar com algumas (ou todas) gestões turvas que foram destacadas. Se a eleição dos bispos ficasse nas mãos das conferências episcopais e não dos núncios e, depois, de secretos escritórios vaticanos, em troca de favores de algum tipo, econômico, sexual ou político, as nomeações seriam bem diferentes. É verdade que com conferências como as da Argentina, Colômbia e México não há muitas esperanças, mas não é menos verdadeiro que mais de um arcebispo ou bispo argentino, atualmente, não estariam nomeados, caso a transparência fosse o critério de base.

A monarquia absolutista não apenas permite nomeações turvas (que acabam atribuindo ao Espírito Santo, o que, além de ser incontestável, é uma boa fonte de impunidade e arbitrariedade), como também permite autoritarismos que não podem se defender. Se alguém tem a soma do poder público, como poderíamos nos defender de seus excessos, por exemplo? Os casos das centenas de teólogos censurados pela moderna inquisição são um bom exemplo disto. Se é o Papa (ou seus “ministros”) quem censura alguém, e é apenas diante do Papa (ou de seus ministros) que se pode apelar, que futuro tem tal recurso? Sem mencionar a pedofilia, escândalo que clama ao céu. Há liberdade de imprensa no L’Osservatore Romano? Há pluralidade de vozes? Lei dos Meios de Comunicação no Estado Vaticano, já!

Para piorar, o seio da Igreja está rodeado de argumentos, supostamente teológicos, que ajudam a proteger ainda mais o sistema que a sustenta: “aquele que obedece não erra”, “prefiro errar com meus superiores, a acertar sem eles”, “fora da Igreja não há salvação”, “infabilidade...”. Assim, qualquer indício de rebeldia fica apagado ou – pelo menos – não é acompanhado por outros mais temerosos, que “temem ser infiéis a Deus”. Poderíamos destacar que a infabilidade da Igreja não se refere a negócios turvos, nem a nomeações episcopais (ou do entorno papal), o que quer dizer “Igreja” é outra coisa muito diferente, mas não é este o espaço para isso. O certo é que ditos como esses (que escutamos) parecem ser mais para “cuidar da retaguarda”, do que a um sadio e fraterno povo de Deus, que caminha conduzido pelo Espírito Santo. A realidade se ocupa de desmenti-los a cada momento.

O que acontecerá com o futuro papa? Nem imagino! Poderia dizer o que sonho que aconteça, mas não é importante. E – de qualquer forma – acredito que muito mais urgente é pensar o que acontecerá com o papado, que é outra coisa. Que na Igreja católica romana exista “Pedro” é razoável, o que não parece sensato é que Pedro se pareça mais com Constantino do que ao pescador da Galileia, impulsivo, entregue, simples, capaz de se retratar depois de suas múltiplas “tolices”...

Contudo, isto que é a Igreja universal também se replica nas igrejas locais. Novamente o poder absoluto e a falta de transparência fazem com que a Igreja se pareça mais com um feudo, um castelo blindado, do que com uma comunidade fraterna. Aqui também há muita informação jornalística que “vende fruta”, mas há centenas de casos, de ontem e de hoje, que são graves e escandalizadores, mas “a soma do poder público” consagram-lhes na impunidade. 

Para não falar dos escândalos já antigos, poderia se falar:
  • do escândalo do bispo de Chiapas (México) não poder ordenar diáconos indígenas (a “mama” Roma não autoriza), 
  • do bispo de Lima (Peru) – da Opus Deiquerer se apoderar da Universidade Católica (com o apoio da Cúria Romana, claro), 
  • do pedófilo Karadima (Santiago, Chile) conseguir nomeações episcopais de membros de seu séquito, 
  • de um bispo colombiano manifestar publicamente sua proximidade (e apoio econômico, claro) dos paramilitares
Província de Santiago del Estero (em vermelho)
Argentina
Entretanto, deter-me-ei num caso pontual: diferente de certas dioceses – como La Plata, por exemplo -, que parecem eternamente castigadas e condenadas por Roma em suas nomeações, [a diocese de] Santiago del Estero era privilegiada: Girao, Sueldo, Maccarone [bispos que passaram por esta diocese argentina]. Isso era intolerável para a involução eclesial iniciada por João Paulo II e, então, diante da digna renúncia de Maccarone, elegeu-se como sucessor Francisco Polti (Opus Dei). Como é coerente com o grupo ao que pertence, Polti (Opus Dei) se relacionou com a gente do poder, pelo qual, obviamente, supõe o abandono dos frágeis, pobres, camponeses... 

Enfrentar os poderosos é perigoso (Maccarone, Piña ou Bargalló que o diga). E ser amigo deles é benéfico, sem dúvidas. O certo é que Polti (Opus Dei) – e depois seu auxiliar, Torrado – abandonaram à sua sorte as comunidades camponesas, indígenas, os pobres de Santiago del Estero. E – claro – fazer uma “opção preferencial pelos ricos” supõe ser sua voz. Não porque fica bem, é claro, mas por estar em comunhão e de acordo com eles. Afinal, para isso o nomearam (ou isso também não aconteceu no Iguazú?). Isto é a coisa mais lógica dentro desta perversão, daí Polti (Opus Dei) sair defendendo a ditadura militar (não é a mesma coisa o que aconteceu com Delgado, também da Opus Dei, e com seu irmão e cunhada desaparecidos, e a possibilidade de ter um sobrinho apropriado?). Porém, é claro, se algum padre da diocese questiona a ditadura, alguém cai encima e pronto. Para que serve ter o poder absoluto se não for para exercê-lo? E se é um padre emprestado, melhor ainda, porque o Código de Direito Canônico me autoriza a retirá-lo sem problemas... Afinal, quem fez o Código a não ser o mesmo poder? (além da grande quantidade de gente da Opus Dei que ali passou, é claro).

Alguém pode dizer que o Evangelho diz outra coisa, que Jesus procedia de outra maneira, que o anúncio de Jesus, de “outro mundo possível”, convida para que “entre vocês não seja assim”, mas no fim alguém irá julgá-lo e até condená-lo por não atuar conforme o Direito Canônico, mas nunca por atuar de modo contrário ao Evangelho, não é? Novamente, “a soma do poder público” a serviço do poder.

Pode-se falar de covardia (e muita neste caso!), de atitudes contrárias a tudo o que acredita, pode-se enviar mil cartas, os padres da diocese podem pedir reuniões, as freiras da diocese, os camponeses da diocese, mas a um medroso que tem poder nada disso importa. “Faz-se o que eu digo!” Um medroso com poder é perigosíssimo (e pior ainda se, além disso, é tonto). E muito pior ainda, se não existe nenhuma instância de revisão dessas decisões. E o pior, em grau elevado, é quando se afirma que essas decisões tem origem no próprio Deus. Aí, o beco parece sem saída.

Será que chegou a hora de repensar todo o manejo do poder no seio da Igreja? Sem dúvida que sim. Sem dúvida que não se fará. Mesmo que, também, sem dúvida que os Polti, Torrado e tantos de Roma ficarão condenados à insignificância histórica. Ou – quando muito – passarão aos livros como aqueles que souberam renunciar por não saber, não poder ou não querer enfrentar o que eles mesmos e seus “amados predecessores” engendraram.

* Pe. Eduardo de la Serna,  argentino, coordenador do Movimento dos Sacerdotes em Opção pelos Pobres.

Tradução do Cepat.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 26 de fevereiro de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517902-reflexoes-sobre-o-poder-a-partir-de-alguns-temas-eclesiasticos
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A sucessão de Bento XVI ou a
quadratura do círculo

Jornal "Le Monde" - Paris
Editorial
Quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
PALÁCIO DE CASTEL GANDOLFO - ao fundo
BENTO XVI no balcão saúda a multidão presente (28/02/2013)
Última audiência pública, no dia 27 de fevereiro, na Praça de São Pedro, em Roma, diante de 150 mil fiéis que vieram ouvi-lo uma última vez. Último encontro com os cardeais presentes no Vaticano, na prestigiosa Sala Clementina, onde, há apenas cerca de 20 dias, ele anunciara a sua renúncia. Quinta-feira, 28 de fevereiro, às 20 horas, Bento XVI terminou o seu pontificado.

Tudo já foi dito sobre a grandeza, sobre a humildade e sobre a modernidade desse anúncio. Mas esse gesto não oferece nenhuma solução para os desafios que esperam pelo próximo papa. Ao contrário, realça-os com uma luz viva, para não dizer crua. Bento XVI repetiu, na quarta-feira, que tomou a sua decisão "pelo bem da Igreja". Agora, a Igreja Católica, embora mantendo-se, com 1,2 bilhão de praticantes, como a primeira religião do planeta, está definitivamente em maus lençóis.

O sucessor de Bento XVI, designado pelo conclave que se reunirá a partir de meados de março, deverá sobretudo superar "as rivalidades e as divisões" que atravessam e enfraquecem o governo da Igreja. É o coração mesmo do sistema, a cúria, que deverá ser reorganizada e modernizada em primeiro lugar, se a Igreja Católica não quiser ver a sua imagem e a sua credibilidade – já afundadas pelos incessantes rumores de escândalos – serem ainda mais e profundamente arruinadas.

Além do saneamento das finanças vaticanas opacas e, ao que parece, dos costumes de algumas pessoas, sobre o pano de fundo dos escândalos da pedofilia, isso pressupõe muito mais flexibilidade, descentralização, colegialidade, transparência, em suma, democracia. A tarefa é difícil, e a revolução, improvável nesse campo: não somente essa modernização foi negligenciada depois de nada menos do que quatro décadas, por João Paulo II e por Bento XVI, mas também a maior parte dos cardeais foram nomeados por eles.

Esse é o segundo desafio que espera pelo próximo papa. Enquanto a descristianização continua progredindo nos países ocidentais, enquanto nos países do Sul o catolicismo é batido pelo islamismo e pelo protestantismo evangélico, o sucessor de Bento XVI deverá tentar convencer, além do coração dos fiéis, os crentes que se afastaram da Igreja. Em outras palavras, saber se colocar em sintonia com as sociedades contemporâneas, responder ao desejo crescente de autonomia e de individualização, enfrentar a secularização, encontrar respostas mais atentas à evolução da moral familiar e sexual.

Enfim, pastor mundializado, o próximo papa deverá se esforçar para levar em conta a geopolítica de uma Igreja que se enfraquece no Norte e continua dinâmica no Sul: dois em cada três católicos eram europeus há um século; hoje é apenas um em cada quatro. Escolher um papa africano, sul-americano ou asiático, nesse sentido, seria um sinal de coerência e de vitalidade. Mas está bem longe de ser provável, porque o conclave continua dominado, em mais da metade dos seus membros, por cardeais europeus – e porque Roma continua em Roma. 

Além disso, não seria nem forçosamente uma garantia de modernidade, já que os bispos dos países "emergentes" se mostram, em geral, muito conservadores

Essas contradições sublinham a dificuldade da tarefa do próximo conclave.

Tradução do francês por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sexta-feira, 1º de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518019-a-sucessao-de-bento-xvi-ou-a-quadratura-do-circulo
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Assim Bento XVI revelou o seu coração

Enzo Bianchi*
Jornal LA STAMPA
28.02.2013
ENZO BIANCHI - monge e teólogo italiano
Havia a necessidade desse testamento. Se o coração de muitos católicos havia sido profundamente abalado pela repentina renúncia de Bento XVI ao ministério petrino, as suas palavras na última audiência pública na Praça de São Pedro iluminaram ainda mais aquela decisão.

Foi significativa a escolha do trecho da Carta aos cristãos de Colossos, em que o apóstolo Paulo dá graças a Deus pelo testemunho oferecido por aquela comunidade: uma escolha feita pelo papa para poder expressar, na linha das palavras apostólicas, o seu agradecimento ao Senhor e à Igreja pela sua fé e pela sua caridade.

Esse discurso revela bem o coração de Bento XVI: há oito anos, ele aceitou com verdadeira obediência se tornar papa, fazendo ao Senhor uma pergunta: "Por que me pedes isto?". Aos 78 anos, ele estava consciente da sua própria velhice, de não ter feito nada para ser eleito, de ter que "fazer um trabalho" duro e cansativo. Foi chamado a guiar um navio em mar agitado – um mar às vezes também em tempestade – e voltado para uma meta com os ventos contrários. Hoje, com a sua fé, ele confessa que nunca se sentiu sozinho, nem mesmo quando o Senhor parecia dormir, e alguns barqueiros não ajudavam a manter a rota, mas faziam confusão.

A fé sólida que ele sempre teve o faz dizer que ele não se sentiu sozinho, e ele havia dito isso em um momento crítico vivido na sua cúria, embora na realidade a solidão faça parte de quem preside uma Igreja com uma responsabilidade própria e única como a do bispo de Roma. Durante o seu pontificado, porém, ele sempre insistiu no fato de que os católicos devem crer e creem que a Igreja é de Cristo, não é nem do papa, nem dos cardeais, nem dos bispos, nem de qualquer "personagem católico". 

Essa distinção entre pessoa e serviço levaram o papa à renúncia, evento novo e grave – segundo as palavras do papa –, mas ditado pelo seu amor à Igreja. Aquilo que ele dizia sobre o descentramento necessário a toda autoridade na Igreja com relação ao Senhor Jesus Cristo, o papa também o realizou e o mostrou concretamente.

E aqui nos é dada uma demonstração do que significa obedecer à voz de Deus presente na consciência de cada pessoa: Bento XVI rezou, pediu a luz divina, depois tentou julgar se a escolha vinha por amor à Igreja ou por amor a si mesmo, avaliou se estava realmente na lógica do bem comum, do bem máximo da Igreja, a comunhão, e portanto, com decisão, firmeza, parrésia, isto é, franqueza, manifestou o que lhe havia sido pedido a partir do santuário da sua consciência.

Nestes dias, depois do ato da sua renúncia, sucedem-se muitas interpretações sobre o porquê dessa decisão. Acredito que é bom aceitá-la nos termos afirmados e reiterados por ele mesmo. É um papa que nunca usou a mentira, sempre considerada por ele como um das três interditos fundamentais da ética humana e cristã. 

Com o discurso na última audiência, Bento XVI nos deixa um testamento, cheio de fé e de esperança, oferecido sem uma liturgia de triunfo, sem nenhuma autocelebração, sem uma despedida cenográfica e de "grande evento" espetacular. Um testemunho que nos lembra que só "a palavra de verdade do Evangelho é a força da Igreja, é a sua vida".


Eu conheci o teólogo Ratzinger, depois o cardeal e, pouco após a sua eleição, tive uma longa audiência em que pude ouvi-lo e ler junto com ele alguns temas eclesiais urgentes: o ecumenismo e a vida religiosa. Depois, encontrei-o outras vezes, encontrando nele sempre afeto e atenção, além da benevolência com a qual quis me nomear como especialista em dois sínodos gerais dos bispos. 

A última vez me surpreendei, cumprimentando-me quando eu ainda estava distante: "Ah, eis um velho conhecido, o prior de Bose!". Ele também me expressou um desejo que eu espero que possa satisfazer, embora ele não seja mais o papa, mas permanecerá sempre um como um testemunho do senhorio de Cristo e de ninguém mais.

Não sou um adulador, mas expresso a Bento XVI um "obrigado" convicto pela sua fé e pela sua humildade, por aquilo que ele foi em toda a sua vida de cristão, de teólogo, de bispo e de cardeal, por aqueles que foram os seus oito anos como papa e pelo seu gesto de renúncia que ajudará todos também a ter uma visão do primado petrino mais aderente ao Evangelho, que quer que o papa seja "humilde sucessor do Pescador da Galileia" e "servo dos servos do Senhor".

* Enzo Bianchi, monge e teólogo italiano, prior e fundador da Comunidade de Bose, norte da Itália.

Tradução do italiano por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sexta-feira, 1º de março de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518018-assim-bento-xvi-revelou-o-seu-coracao-artigo-de-enzo-bianchi-

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