ANGÚSTIA SOB A BATINA [Muito interessante!]

Cinthya Leite *

Excesso de responsabilidades na vida religiosa torna padres vulneráveis a desenvolver cansaço físico e mental, relacionados à síndrome de burnout

Ouvir confidências, fazer celebrações e administrar a paróquia são só algumas das atribuições dos sacerdotes. Como qualquer outro profissional, religiosos também são alvo de estafa, termo popular que define a síndrome de burnout.

Na última audiência geral como pontífice, o alemão Joseph Ratzinger, 85 anos, justificou a decisão de renunciar ao alegar que suas forças tinham diminuído nos últimos meses. Na mesma ocasião, ele lembrou que, ao ser eleito em 2005, sentiu um peso sobre os ombros, mas pediu luz a Deus. “Aceitei e sempre tive a certeza de que Ele me acompanhou”, afirmou Bento XVI, que recordou o que pensou ao ser escolhido pela votação, há quase oito anos: “Senhor, por que me pedes isso? É um peso grande sobre os meus ombros. Aceitarei apesar de todas as minha fraquezas”, disse Bento XVI, na celebração, em 27 de fevereiro.

A renúncia diante de uma Igreja Católica rodeada por escândalos de corrupção e casos de pedofilia leva a crer que a tarefa de liderar a comunidade dos cristãos é acompanhada de uma responsabilidade imensa e de atribuições que podem deixar a vida sacerdotal mergulhada num desgaste excessivo.

Esse cenário estimula os especialistas a chamarem atenção para o fato de que os sacerdotes formam um grupo extremamente vulnerável à síndrome de burnout – o que, na linguagem popular, é equivalente à estafa. Essa situação de desgaste é entendida como um problema de saúde em que se manifestam: 
  • cansaço físico e emocional,
  • além de baixa autoestima, especialmente em quem trabalha prestando serviço a outras pessoas. 
“A síndrome de burnout é uma ameaça para os sacerdotes que lidam frequentemente com as múltiplas exigências do povo, as condições peculiares do estilo de vida que possuem e até a experiência de solidão nas paróquias”, ressalta a pesquisadora Helena López de Mézerville, que desenvolveu tese de doutorado, pela Universidade de Salamanca (Espanha), sobre o problema no âmbito religioso. Para o trabalho, ela contou com a colaboração de 881 sacerdotes de dioceses do México, da Costa Rica e de Porto Rico. Essa amostra, segundo ela, reflete a mais ampla realidade sacerdotal investigada até então. 


Eis os resultados da pesquisa: apenas 9% dos religiosos entrevistados não se encontravam esgotados. “Em síntese, três em cada cinco sacerdotes experimentavam graus médios ou avançados da síndrome do esgotamento ou burnout”, escreve Helena, que transportou as observações do seu trabalho para o livro O desgaste na vida sacerdotal – prevenir e superar a síndrome de burnout (Editora Paulus, 184 páginas, R$ 25), lançado recentemente no Brasil.

Por aqui, especialistas também se debruçam sobre a questão. Psicólogo mineiro, William Cesar Castilho Pereira dedica-se ao exercício de pesquisador em institutos de filosofia e teologia há mais de três décadas. Essa trajetória o levou a escrever o livro Sofrimento psíquico dos presbíteros – dor institucional (Editora Vozes, 544 páginas, R$ 52,90), que chegou às livrarias em 2012. “A síndrome de burnout pode atingir todos os profissionais que interagem afetivamente com as pessoas, que cuidam e solucionam problemas delas”, diz William, que é doutor e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

“No caso da vida sacerdotal, os padres costumam ter um trabalho acolhedor do sofrimento dos outros. Dessa maneira, eles podem sentir dor intensa diante dos problemas trazidos pela população que atendem.” A consequência de toda essa aflição pode vir traduzida, segundo o psicólogo, em desânimo, desilusão e descrença na vocação. “Isso
afeta, deprime, entristece e pode levar o padre a ter um alto índice de agressividade com ele e com os outros”, alerta William.

O padre Antônio Raimundo Sousa Mota, 59, sente ainda o peso da responsabilidade de ter que amenizar o sofrimento alheio. “Muita gente não tem acesso aos psicanalistas e chega aos sacerdotes também para procurar acolhimento. Como nós, religiosos, somos também pastores, acabamos tendo aproximação afetiva com as pessoas”, relata. Para ele, muitos sacerdotes entram num ciclo contínuo de desgastes por causa do acúmulo de tarefas. “Temos atribuições administrativas e acadêmicas, além da função pastoral. “Escrevemos, estudamos, ministramos aulas, pesquisamos e ainda acolhemos com bastante prazer as famílias. É preciso ter essa missão muito bem organizada para não cair na síndrome de burnout.” Com uma bagagem de 37 anos na congregação Companhia de Jesus, padre Mota relembra que já passou por períodos de estafa devido a problemas de família. O pior momento foi há quase 15 anos, quando o pai faleceu repentinamente. “Eu estava fazendo doutorado em Roma, num ritmo muito intenso de estudos, quando recebi a notícia. Foi péssimo. Vim para o Brasil às pressas e voltei para Roma com uma sensação muito ruim. Fiquei esgotado emocionalmente”, conta.

Graças ao poder da resiliência (capacidade de se adaptar a situações estressantes), ele
conseguiu superar essa fase delicada. Hoje, para viver em equilíbrio, recorre a estratégias e a atividades relaxantes, como praticar pilates, ouvir música clássica, procurar dormir bem, rir, contar piadas e cultivar boas amizades. “Diante de um período difícil e de sofrimento, a gente pode até se sentir desgastado, mas o sabor de fazer o bem e crescer com os outros é um grande incentivo”, diz. 

Essa realização pessoal, mencionada pelo padre Mota e desfrutada por outros sacerdotes em suas responsabilidades pastorais (sobretudo no trabalho paroquial), representa para muitos deles uma compensação altamente gratificante – fato que os ajuda a superar esses tempos de esgotamento psíquico. “Isso os previne de ser vítimas da síndrome de burnout”, frisa o psicólogo Gaston de Mézerville, em apresentação que faz no livro da terapeuta Helena. 

Quem tem a mesma impressão é o frei Rinaldo Pereira dos Santos, 41, da Paróquia São Paulo Apóstolo, no bairro de Jardim São Paulo. “Diante de todos os desafios da missão sacerdotal, é sempre bom os padres pensarem que vale muito a pena ser feliz naquilo em que se dispõem a fazer. Isso dá vigor em muitos momentos.” Ele concorda que a atividade presbiteral pode favorecer a síndrome de burnout, especialmente quando o religioso se esquece de que também é gente. “Quando não consideramos isso e nos lançamos de forma desenfreada no trabalho, pode vir o esgotamento.”

Na opinião de frei Rinaldo, o imaginário popular ainda alimenta a ideia de que o sacerdote é como um super-herói, que nunca se cansa


“Mas temos um leque imenso de atribuições para as quais até nem fomos totalmente preparados”, afirma. 

Com base em levantamentos atuais, ele reforça que há no mundo 1,2 bilhão de católicos para 413 mil sacerdotes e 5.110 bispos. “Somos responsáveis por um universo imenso de pessoas”, diz o frei, para mensurar como é delicado enfrentar o desafio pastoral. “Me dói saber que existem muitas pessoas às quais não consigo ter acesso. E ainda há questões administrativas difíceis que precisam ser superadas para realizarmos projetos em prol da comunidade. Graças a Deus, estamos cercados de pessoas que nos ajudam na paróquia.”

Com muita serenidade, frei Rinaldo diz que está sempre atento para não desenvolver a síndrome de burnout. “Às vezes, me sinto esgotado e cansado, como qualquer outra pessoa cheia de atribuições comuns a várias profissões. Quando isso acontece, dou uma pausa para cuidar de mim. Reconheço quando chego ao meu limite e respeito as minhas férias de 30 dias. E adoro escrever poesias para relaxar”, conta o religioso.

Assim como frei Rinaldo, o padre Valdir Manuel dos Santos Filho, 38, recorre a estratégias e orações para não entrar em desgaste. “Temos tantos afazeres, que realmente precisamos ter cuidado para não desenvolver a síndrome de burnout. Estou procurando me alimentar melhor e me exercitar mais, fazendo mais caminhadas”, conta o sacerdote. Ele ressalta que, dentro da missão sacerdotal, o que mais o sensibiliza é o sacramento da confissão. “Mas não é um momento de terapia; o confessionário não é um divã. É uma ocasião em que o padre está em nome de Deus para absolver os pecados e acolher a pessoa, que procura um conforto espiritual”, diz Valdir, que estuda, prepara e ministra aulas, abraça os trabalhos da paróquia e do tribunal eclesiástico. “E não deixo de lado as atividades de oração, que fazem muito bem.”


NÃO É DE HOJE

Os sintomas da síndrome de burnout não vêm de agora. O psicólogo William Cesar Castilho Pereira ressalta que a única novidade é a maior divulgação do problema. Ele cita que, no livro do Êxodo, Moisés já apresentava um quadro de profunda desilusão e desmotivação no exercício da liderança do povo hebreu. “O tipo de governança escolhido
por ele foi o de centralizar toda a decisão sobre os seus ombros. Além disso, Moisés sentia-se frustrado pela impossibilidade de realizar todos os desejos da população”, comenta William. Chegou o momento, conta em seu livro, em que Moisés procurou ajuda terapêutica com o sogro Jetro. “O diálogo entre os dois produziu em Moisés novas estratégias de enfrentamento.”

Procurar ajuda é o primeiro passo para os sacerdotes afastarem a síndrome de burnout. “É fundamental os padres terem amigos e pessoas com quem possam compartilhar verdadeiramente as angústias, as conquistas e os temores. E o básico é que eles peçam apoio quando perceberem que precisam. Podem recorrer a um psicólogo, a parentes e a colegas”, afirma o psicoterapeuta Ênio Brito Pinto, autor do livro Os padres em psicoterapia – esclarecendo singularidades (Editora Ideias & Letras, 184 páginas, R$ 23,50). 

Na publicação, ele traz uma análise sobre singularidades do atendimento a religiosos católicos. “Eles precisam ter a coragem de se tratar. Quem chega ao esgotamento provocado pela síndrome de burnout precisa, ao menos no início, de uma ajuda interprofissional, como também da diocese ou da congregação e da família. Os religiosos também devem ter o apoio dos fiéis com quem têm mais contato”, frisa Ênio, que participa de grupo de pesquisa no Núcleo de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Ele ainda chama atenção para o fato de os padres serem bastante exigidos


“Espera-se deles mais do que se deveria esperar; são tratados quase como sobre-humanos. O problema maior disso é que alguns sacerdotes também se veem dessa maneira e tentam viver como se não tivessem limites, dúvidas e angústias”, enfatiza Ênio. 

Ele diz que, nesse ciclo vicioso, há religiosos que acabam mecanizados, trabalham em excesso e praticamente nem rezam mais. “Chega uma hora em que adoecem e têm a oportunidade de repensar esse jeito de ser, reavaliar a vida e os valores que a conduzem, chegando a mudanças existenciais importantes e, dessa maneira, humanizando-se mais”, complementa o psicoterapeuta.

Para aliviar um possível desgaste, os especialistas recomendam que os presbíteros procurem auxílio psicoterapêutico e, em alguns casos, tratamentos medicamentosos. “Mas só isso não resolve o problema. É preciso fazer uma análise institucional. Ou seja, recomenda-se também observar cuidadosamente como está toda a diocese e a paróquia para que o sofrimento dos padres seja realmente diminuído”, finaliza William.

* Cinthya Leite - Jornalista e mestranda em saúde da comunicação humana (UFPE). Repórter do Jornal do Commercio (Recife - PE).

Fonte: Jornal do Commercio - Revista Arrecifes - Ano 3 - Nº 102 - Recife (PE), 24 de março de 2013 - Internet: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/arrecifes/noticia/2013/03/23/a-cruz-do-sacerdocio-77408.php (síntese da matéria impressa).

Comentários

  1. “ANGÚSTIA SOB BATINA”

    Vejo aqui a primeira situação paradoxa: Os padres hoje não usam batina.
    Essa é uma das razões do desgaste....O padre embrenha-se no meio do povo, sem identificação, com responsabilidades diferentes....

    “Excesso de responsabilidades na vida religiosa torna padres vulneráveis a desenvolver cansaço físico e mental, relacionados à síndrome de burnout”

    Quero responder a esse item com outro item que segue mais adiante:

    “Mas temos um leque imenso de atribuições para as quais até nem fomos totalmente preparados”(frei Rinaldo Pereira dos Santos, 41, da Paróquia São Paulo Apóstolo, no bairro de Jardim São Paulo.)

    Quando entrei ao seminario redentorista Santo Afonso, em Aparecida, há 56 anos passados, encontrei um padre redentorista, de batina, rosário à cintura e colarinho branco para o lado de fora, que seria por duas temporadas meu diretor e o primeiro propósito que dele ouvi foi: “Vocês aqui estão para tornarem-se PADRES, MISSIONÁRIOS, REDENTORISTAS E SANTOS!” (Padre José Oscar Brandão CSsR) Tinha 13 anos de idade e teria, sob a orientação apenas de sacerdotes, a formação cultural e religiosa já a partir do ginásio, ciclo básico de agora. Houve muito cuidado, esmero, competência e religiosidade nessa preparação. Isso tudo era muito consistente tanto no plano sagrado como no cultural. No seminário, isolados dos assuntos de fora, preparávamo-nos para a missão importante do apostolado, considerando em primeiro plano o sagrado objetivo da outra vida, a vida eterna. Assim, notávamos grandes exemplos positivos de nossos orientadores que, como nós, um dia percorreram este mesmo caminho e naquele momento nos indicavam o rumo correto pelas suas lições de palavras e bons exemplos.

    “Espera-se deles (sacerdotes) mais do que se deveria esperar; são tratados quase como sobre-humanos. O problema maior disso é que alguns sacerdotes também se veem dessa maneira e tentam viver como se não tivessem limites, dúvidas e angústias”(Ênio Brito Pinto, psicoterapêuta e escritor)

    Tenho, pois, opinião muito diferente, quando considero que o sacerdote, com a missão de garantir minha eternidade, deva ser respeitado e tratado acima de qualquer outro ser, poderia até dizer “sobre-humano”. Afinal, em sua formação, deverá ter prevalecido a religiosa, missão única de sua vocação sacerdotal. Ainda considero a qualificação mencionada quando, pelas mãos desse sacerdote, o Cristo vem fisicamente para nós todos os dias, pela consagração do pão e do vinho. Por isso que é importante que se beijem sempre essas mãos ungidas.

    Assim, a título de boa reflexão, sem polêmicas desgastantes, podemos continuar nessa linha, que nos aparenta levar a um termo salutar....

    Antônio Ierárdi Neto
    Precisamos deixar-nos conduzir pelo Espírito e não tentar conduzir o Espírito para onde queremos.(Pe. Hélio Libardi CSsR)

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