Bolsonaro, ou: “Quem lança mão da espada, pela espada perecerá” (Mt 26,52)
Eduardo César
Rodrigues Calil
Padre da
Diocese de Uberlândia (MG),
Teólogo formado
pela FAJE
Blog «Fique
Firme»
11-09-2018
O Senhor Jesus é contra toda e
qualquer violência!
O ódio e a vingança não fazem parte da
fé cristã!
PE. EDUARDO CÉSAR RODRIGUES CALIL |
A trama estava armada contra
Jesus. No
meio do complô estavam a aristocracia laical e religiosa e o colaborador
indispensável para a prisão de Jesus: o traidor, Judas. A ação da tropa deve
ter surpreendido a todos; da parte dos discípulos houve uma pequena tentativa
de resistência que culminou no decepamento da orelha de um soldado romano por
um golpe de espada. A tradição é unânime em recuperar esse dado e João é o
único evangelho que diz que o discípulo que procurou defender Jesus foi Pedro.
Mas Jesus claramente ordena que o
discípulo, seja ele quem for, guarde a espada. Por que Jesus impede a
legítima defesa?
Por
que a trama narrativa precisa continuar, diriam uns. E estão certos. Os
Evangelhos são fundamentalmente narrativas querigmáticas (= anúncio do mistério
pascal de Cristo) que desenrolam nas palavras e gestos de Jesus o que foi sua
vida e como ela se desdobrou para chegar ao suplício da cruz e à ressurreição.
Mas quero discordar de antemão de uma leitura que imagine que os Evangelhos
conduzam para o mistério pascal e que só lá, nos capítulos sobre a morte e a
ressurreição, é que finalmente a vida de Jesus faça sentido. Se os capítulos
sobre a morte e a ressurreição são o clímax da trama, isso não justifica
descartar toda a trama em nome do clímax. Tudo
o que se diz antes já revela quem Jesus de fato é. Tudo o que Jesus realiza
antes de sua morte e ressurreição já nos salva (isso é o que entendemos por encarnação,
se quisermos falar dela com decência teológica). Logo, a frase de Jesus sobre guardar a espada não está só em função de uma
trama que precisa desenvolver-se, mas tem sentido em si mesma.
Porque
Jesus tinha que morrer, é outra possível resposta. Como um vivente, por certo,
pois tudo que está vivo, um dia, morre. Mas
ele não tinha que morrer de morte matada. Porque é isto a cruz: um
assassinato. Uma trama macabra para silenciar um homem que estava perturbando a
ordem religiosa e social de sua época. A
cruz era uma condenação horrenda, e Jesus morre como um maldito entre ladrões.
Nada justifica dizer que é da vontade de Deus que seu filho amado morra, nem
tampouco dizer que Deus precisa do sangue do próprio filho para nos salvar.
Essa soteriologia vicária nos rendeu menos amor que medo por essa imagem de
Deus, que mais parece uma imagem vampiresca. Qualquer frase bíblica que permita
essa interpretação errônea e horripilante não passa de má interpretação, pois
ou está em função de um dado teológico relevante (Deus não faz nada para evitar
a morte do filho) ou em função de uma teologia propiciatória (tipicamente
paulina). Ou seja: à primeira leitura, confusões podem se dar mesmo e, embora
esses temas exigissem outros artigos, o que convém ressaltar é: Deus não precisa da morte do filho, mas a
recebe. Jesus, então, não manda
guardar a espada, porque queira morrer ou porque esteja seguindo algum script que ordena a sua morte; ele não é
nenhuma espécie de masoquista ansioso por sofrer.
Cena em que Pedro corta a orelha de Malcus no momento da prisão de Jesus |
Jesus
via sua morte como entrega, dirão outros. De novo, o Evangelho de João é o que
mais ressalta esta característica: Jesus é quem dá a sua vida, ninguém a tira.
Mas, em todos os outros Evangelhos, é possível perceber que Jesus não volta
atrás em sua palavra. É fiel àquele anúncio que norteou a sua vida. Jesus crê que é possível que o matem, mas
não serão capazes de arrancar o sentido que encheu sua existência: e isso
ele oferece (porque o tem) – vida em abundância. Sua confiança naquele que
chamava de Pai e seu Reinado, que acontecia por meio do amor ao próximo que ele
ensinava e vivia, eram mais fortes do que o medo da morte. Deveria ele, por medo da morte, desmentir tudo o que havia dito e fugir
dos compromissos e das consequências que sua vida havia provocado? Ele
poderia tê-lo feito, mas que tipo de existência ele viveria depois de negar o
segredo de seu próprio espírito? Então, se
Jesus pede para guardar a espada, é porque ele precisa ser coerente com seu
anúncio de amor e de paz, apesar da violência que o cerca.
E
se quisermos buscar nas fontes bíblicas
textos que desenvolvam o que Jesus propõe, poderíamos recuperar não poucas
palavras:
* “evitai que ninguém
retribua o mal com o mal, mas encorajai que todos sejam bondosos uns com os
outros” (1Ts, 5, 15);
* “não retribuindo mal com
mal, tampouco ofensa com ofensa; ao contrário, abençoai; porquanto, foi
justamente para esse propósito que fostes convocados, a fim de também
receberdes bênção como herança” (1Pd 3,9).
E
se quisermos ficar apenas com as palavras de Jesus, veremos que ele é bastante
contundente:
“Vocês ouviram
o que foi dito aos seus antepassados: ‘não matarás’, e ‘quem matar estará
sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer um que se irar contra seu
irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5,21ss).
Ou
ainda mais:
“Ouvistes o
que foi dito: olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não
resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também
a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica; larga-lhe
também a capa…” (Mt 5,38ss).
Sendo
assim, no “guarda a espada” de Jesus
ecoa todo um projeto de superação da violência e de investimento na paz e no amor.
Aliás, não faltaram discípulos decepcionados com Jesus, inclusive Pedro, porque
o projeto do Senhor não era o de vencer pela força; não era o de implantar seu
reinado à fórceps, ou de obrigá-lo boca abaixo pela força de seus anjos; não
era exigir a conversão e a mudança fazendo cair uma tempestade do céu. Sua mensagem era uma proposta de liberdade e fraternidade que admite ser rejeitada.
É
evidente que sendo fiel ao seu projeto, não o negando e não voltando atrás nas
consequências de sua mensagem, Jesus não está proibindo a legítima defesa. É um
instinto natural e uma atitude de bom senso defender a própria vida e a
daqueles que amamos quando essas se veem ameaçadas. Isso está longe,
entretanto, da violência pela violência, ou da desmesura em que o ódio nos
coloca. A vingança, o ódio, a frustração
de nossos desejos, os medos, as angústias mal resolvidas podem nos lançar na
violência com muita facilidade. Legítima defesa é outra coisa.
JAIR BOLSONARO (PSL) Candidato a Presidente da República do Brasil |
Aí
entra o Bolsonaro e sua pauta polêmica do armamento da população.
O descrédito com a justiça no nosso país,
com a segurança e com a educação, estão nos fazendo
trocar aquilo que é fundamental pelo incerto e perverso. Permitir o porte de
arma não resolve os problemas mais cruciais. Alguns poderiam argumentar que
resolve o problema do ataque dos bandidos, instaurando neles o medo e o receio
de praticarem a violência já que as vítimas potenciais agora poderiam se
defender. O medo, entretanto, não impede
nenhum ato de violência, muito pelo contrário, o incita. O problema da
violência não será resolvido combatendo seus efeitos (que é quando o bandido
chega a arma na cabeça de alguém, por exemplo). Isso, porque as causas
continuarão em funcionamento. Do mesmo modo, apenas prender os bandidos, sem
rever o sistema penitenciário é algo que já comprovamos que não funciona. Também não funciona armar a população: ou
vamos eliminar bandido produzindo assassinos? Corre-se o sério risco de não se olhar, assim, para as causas mais
profundas dos problemas, propondo resolver as questões não em sua raiz, mas
de modo superficial.
O mais fundamental é gerar educação, promover justiça,
cuidar da saúde pública. Essas pautas mais concretas não
aparecem nas discussões em torno do candidato Jair Bolsonaro. Em contrapartida,
suas falas estão permeadas de
preconceitos em relação à mulher, aos homossexuais, aos quilombolas, aos
sem-teto, aos sem-terra, aos usuários de drogas, aos pobres em geral.
A desconfiança do
presidenciável Jair Bolsonaro aos direitos humanos é
aplaudida por muitos. É possível compreender que a população esteja completamente
desacreditada das estruturas que deveriam garantir os direitos, mas negar os direitos humanos, isso já é
demais, é retroceder muito. Para fazer os direitos valerem, o caminho não é
desacreditá-los, mas promover uma transformação profunda das instituições que
comece por ouvir a população. Isso, sem deixar de mencionar a tão necessária reforma política, sem a qual não pode
haver uma transformação social honesta.
Armar a população não é
solução para nada, mas pode produzir efeitos contrários drásticos. Num país cujas taxas de feminicídio são altas, onde os
crimes de homofobia e transfobia só
crescem, em que os crimes passionais
são cada vez mais comuns, em que a violência
por causa de discussões triviais é banalizada, o porte de armas de fogo só pode piorar a situação. Lembrem-se que
o medo da ameaça não abaixa a adrenalina, só a aumenta… Depois, seria bom perguntar quem lucra com o
armamento da população; a indústria armamentista certamente
fará a festa. Em contrapartida, o mais acertado é proteger melhor as
fronteiras para evitar o tráfico de armas, endurecer mais a compra e venda das
mesmas e se colocar para solucionar na raiz os problemas mais profundos de
nossa sociedade, dentre os quais estão:
* a falta de justiça,
* o profundo abismo entre poucos ricos e uma imensidão de empobrecidos,
que é uma das raízes da violência.
Alguns
poderiam argumentar que Bolsonaro é boa
opção porque é contra:
* o comunismo,
* a cartilha gay,
* a favor da família nuclear, ou
* contra o aborto.
Que
sua política de armamento é só um erro em meio aos acertos. Podemos apresentar
algumas intuições em relação a essas pautas.
Ganhou relevância dizer que
tudo aquilo que toca as causas sociais, o direito de todos, o desmonte da
meritocracia a favor da distribuição de oportunidades seja:
* petismo,
* lulismo,
* comunismo,
* socialismo.
Há
muitas controvérsias sobre o uso das palavras socialismo e comunismo. Ao citá-las, nem todo mundo entende a mesma
coisa, mas grande parte da população brasileira as entende como uma grande
ameaça ao país, como se aqui fosse instaurar-se um governo como o de Maduro
ou Chávez. Sabemos que o socialismo real foi uma catástrofe, mas o socialismo utópico e o real são a mesma
coisa?
Citam Marx, mas o próprio
socialismo marxista evoluiu e não fala mais de luta de classes, ao menos não
como antes.
Enfim, as categorias “comunismo”,
“socialismo” e até mesmo “petismo”, “esquerdismo” se tornaram omniabrangentes:
são palavras em que cabe tudo, estão superinfladas e, talvez por isso, não
digam mais nada de sério. Problema sério
é o capitalismo também. Mas desse ninguém fala.
O direito à propriedade privada é um ganho, mas esse sistema produz ainda hoje
injustiças gritantes, camadas de pobres cada vez mais miseráveis, fome, mais e
mais desempregados, uma globalização assimétrica. Ora, sistemas econômicos são problemáticos, não devem ser idolatrados, têm
de ser constantemente revistos.
UM SLOGAN ELEITORAL BEM AOS MOLDES FASCISTAS: PÁTRIA & DEUS... |
Mas
o problema mais grave ainda não está
posto. O problema mais grave é o fascismo:
* a tendência ao
autoritarismo,
* nacionalismo fechado,
* desprezo pelos direitos
humanos,
* supremacia militar,
* sexismo desenfreado,
* controle das mídias de massa,
* obsessão com segurança
nacional,
* nepotismo desenfreado,
* desprezo pelas artes e por
intelectuais,
* poder de corporações em
alta,
* poder de trabalhadores
suprimido.
Um discurso de ódio (ou radical) em que se vê potencialmente
tudo isso, é assustador.
A
escola é uma das instituições brasileiras que precisa de socorro. Mas uma educação em que não se possa ler os
clássicos nem sequer discuti-los não promoverá um ensino consistente. Também
uma educação que não possa falar de sexualidade, fica engessada e embaraçada em
preconceitos e tabus. O moralismo
crescente, a dificuldade de aceitar o diferente e de compreender as diferenças
nascem justamente de uma educação enquadrada. A sexualidade é uma das
dimensões humanas mais ricas, é amplamente experimentada durante a vida, tendo
em vista que não se pode reduzi-la ao sexo. O lugar de seu aprendizado é a
família. Mas é também a escola, a Igreja, porque não há como falar do humano
ignorando suas constituições mais elementares, e a sexualidade certamente é uma
delas. A Igreja não raras vezes toca neste assunto, procura orientar os seus
adeptos, apresenta suas normativas, não é mesmo? Por que a escola não poderia
falar sobre sexualidade e sexo? Falar
sobre sexualidade não cria pervertidos. Nem tampouco falar sobre as diferenças
sexuais. A própria experiência falsifica essa crença.
Vejamos a ambiguidade
que há na compreensão do papel da educação:
para esses grupos radicais, ela não é capaz de salvar as
pessoas do mundo do crime, das drogas e do banditismo
(daí que bandido bom é bandido morto), mas
é capaz de produzir gays e perversos sexuais, como se essas orientações fossem
efeitos de doutrinação (e assim pudessem ser desdoutrinadas).
Além
disso, Bolsonaro apontou uma cartilha que, segundo ele, era adotada pelo MEC. O livro nunca foi adotado pelo MEC, segundo
o próprio Ministério da Educação e a própria autora. A crítica sobre o que
é ideologia de gênero, por sua vez, passa por
um desentendimento radical sobre o que
significa propriamente gênero, tipificação de gênero, orientação sexual e
afins. Quando nem sequer as terminologias e conceitos são dominados e
entendidos, a que tipo de críticas estamos assistindo, senão a críticas também
ideológicas? Mais uma controvérsia, enfim: ao
falar tanto contra a sexualidade, o presidenciável põe em relevo sua obsessão
pelo assunto. Todo excesso pode indicar uma falta. Do que será que
Bolsonaro realmente está se queixando?
A família nuclear é uma invenção
burguesa. Ao dizer que família é apenas aquela formada por pai, mãe e filhos,
nega-se todo um espectro de possibilidades familiares. Uma série de pessoas que
defendem esse modelo familiar fazem parte de famílias recompostas ou
monoparentais. Lembremo-nos que Jesus
vem de uma família em que seu pai é adotivo, se quisermos ser fiéis à tradição.
Agora, se o problema for assumir que há famílias homoparentais, sugerimos
lembrar que os homossexuais querem seus direitos civis garantidos e esses não
lhes podem ser negados já que são cidadãos como quaisquer outros. O Estado é laico e as misturas entre
religião e Estado até aqui vistas na história não redundaram em benefícios para
nenhum dos dois. A religião deve permanecer crítica em relação à política e
não se diluir nela.
Não sou a favor do aborto, mas se quisemos ser pró-vida, devemos falar de uma vida que seja defendida de seu início até seu fim digno. Não é suficiente
defender apenas o feto e depois defender pautas como o armamento, ou a morte de
gays, ou fuzilar pessoas com opiniões contrárias. Depois, será preciso
reconhecer que há casos muito específicos discutidos, inclusive, pela bioética
e pela teologia em ambientes católicos, universidades, centros de teologia.
Seja como for, a proibição não vai acabar com os abortos clandestinos. Que políticas públicas vão ser
desenvolvidas para salvaguardar a saúde das mulheres? Além disso, a
discussão mais uma vez fica enviesada, pois é justo defender o direito à vida
de um nascituro, mas não se pode falar de sexualidade consciente. Deve-se defender a vida, mas não se pode
olhar para a figura do feminino com o devido respeito, reconhecendo-a em
sua dignidade e seu importante papel, relegando-a aos papéis sociais que a
cultura machista lhe incumbe. A discussão vai de novo para os efeitos, não para
as causas.
Bolsonaro é um candidato, contudo, muito inteligente.
Sabe fazer o discurso que muitos querem ouvir, que promete combater os sintomas que todos queremos curar logo,
embora o faça apelando para radicalismos, com narrativas potencialmente
fascistas.
O
símbolo de seu possível governo tem sido os dedos em forma de arma. Mas o gesto
é apenas uma expressão do que não cansamos de ver em sua boca: um discurso de ódio. Um dos
recentes episódios acontecidos ao presidenciável foi ser esfaqueado. Não é
karma, não é para dizer que “aqui se faz, aqui se paga”, que ele “está colhendo
o que plantou”, pois sabemos que muitas pessoas sofrem todo tipo de violência
sem terem culpa, sendo pobres vítimas; são gente inocente morrendo por causa da
violência estrutural e social. Mas não
dá para negar algo que Jesus também sabia: a violência, que a gente pode
estimular, cria cadeia, faz ciranda, roda-roda-roda e, uma hora, às vítimas ou
aos culpados, pode nos acertar.
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