Cuidado: a história pode se repetir como tragédia!
Eleição democrática
do terror
Frei Betto
Frade
dominicano, teólogo, filósofo, jornalista e escritor
Qualquer
semelhança não é mera coincidência
Ele nada entendia da
situação real do país. Nem
demonstrava interesse por ela, embora atuasse ativamente na política. Por isso não
gostava de ser questionado, irritava-se diante das perguntas como se
fossem armas apontadas em sua direção. Não queria que a sua ignorância se
tornasse explícita.
Ser estranho, ele tinha olhos
alucinados afundados nas órbitas, lábios espremidos, gestos cortantes. Todo o
seu corpo era rígido, como se moldado em armadura. Ao ficar na defensiva,
parecia uma fera acuada. Ao passar à ofensiva, a fera exibia garras afiadas e
de suas mandíbulas pingava sangue.
Sua fala exalava ódio,
rancor, preconceito. Aliás, não
falava, gritava. Não sabia sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um
gesto de cortesia ou humildade. Evitava ao máximo os repórteres. Julgava
suas perguntas invasivas. E temia que a sua verdadeira face antidemocrática
transparecesse em suas respostas.
Educado em fileiras
militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens, enquadrar quem o cercava e
ultrajar quem se opunha às suas opiniões. Jamais aceitava o contraditório ou
praticava um mínimo de tolerância. Considerava-se o senhor da razão.
A nação estava em frangalhos,
mergulhada em crise ética, política e econômica, e o horizonte da esperança
espelhado em trevas. Pelo país afora havia milhares de desempregados,
criminalidade generalizada, corrupção em todas as instâncias de poder. O
câmbio disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento era geral. O
governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais fragilizado. O povo
clamava por um salvador da pátria.
Jovens desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de
ouro. Era ele o cara, surfando na descrença generalizada na política e nos
políticos. O Executivo se debilitara por corrupção e incompetência, o
Legislativo mais parecia um ninho de ratos, o Judiciário se partidarizara
submisso a interesses escusos.
Ele se dizia cristão, e se
considerava ungido por Deus para livrar o país de todos os males. Advogava
soluções militares para problemas políticos. Movido pela ambição desmedida,
se apresentou como candidato à eleição democrática para ocupar o mais alto posto
da República, embora ostentasse a patente de simples oficial de baixo
escalão do Exército.
De sua oratória raivosa
ressoava o discurso agressivo, bélico, insano. Haveria de modificar
todas as leis para implantar uma ordem marcial que poria fim a todas as mazelas
do país. Eleito, seria ele o comandante-em-chefe, e todos os cidadãos passariam
a ser tratados como meros recrutas obrigados a cumprir estritamente as suas
ordens.
Prometia fortalecer o
aparato policial e as Forças Armadas.
Sua noção de justiça se resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil. Eleito,
excluiria da vida social um enorme contingente de pessoas consideradas por ele
sub-humanos e indesejáveis:
* mulheres,
* homossexuais,
* trabalhadores em luta por seus direitos e
* comunistas.
Todos que se opunham às suas
opiniões eram por ele apontados como bodes expiatórios da desgraça nacional.
Seu mandato presidencial
haveria de trazer a era de fartura e prosperidade. Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de
trabalho a todos. Exaltaria os privilégios do capital sobre os direitos dos
trabalhadores. Aqueles que o seguissem seriam felizes, e livres para
sobrepor a lógica das armas ao espírito das leis. Os demais, excluídos
sumariamente do convívio social.
Enfim, após uma série de
manobras políticas e forte repressão às forças adversárias, ele foi eleito
chefe de Estado. A nação entrou um júbilo. O salvador havia descido dos
céus! Ou melhor, brotado das urnas. Tudo isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na
Alemanha alquebrada pela derrota na Primeira Grande Guerra. O nome dele era Adolfo Hitler.
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