É urgente repensar a Igreja
O que esperar depois de Papa Francisco?
Entrevista
com Vito Mancuso
Teólogo leigo
italiano, professor da Universidade de Pádua
Antonello
Caporale
Il Fatto
Quotidiano
04-09-2018
“A salvação da Igreja passa pelas
mulheres, pela energia que elas
conservam e não são postas em condição
de liberar,
e pela abolição do voto de castidade,
que já é insustentável”
VITO MANCUSO |
Vito
Mancuso é o teólogo italiano que, com mais clareza e severidade, observa e
investiga a realidade católica.
Sexo, dinheiro e sangue. Desses três elementos que
os mestres do jornalismo do século XX indicavam como fator propulsor para cada
aventura editorial, pelo menos dois – sexo
e dinheiro – são as questões que
mantêm a Igreja pregada à sua consciência periclitante, à verdade oficial
exausta e precária, à miséria parcial do seu clero, aos venenos dos seus
corvos.
Eis
a entrevista.
Pensava-se
que o Papa Francisco poderia salvar a Igreja.
Vito Mancuso: Esperava-se a palingenesia
[= retorno à vida; renascimento; regeneração], e foi grande a admiração pela
subversão também simbólica: acima de tudo, a escolha de se chamar Francisco, a recusa a vestir os
paramentos papais, a dormir no vistoso apartamento a ele destinado, a viajar
nos sedans como chefe de Estado. A expectativa se encheu de esperança. Depois,
a esperança foi mantida em vida pela sugestão. Por fim, prevaleceu o princípio de realidade.
Deixamos
Ratzinger com os corvos que circulavam por aí, encontramos Bergoglio envenenado
pelas acusações de Dom Viganò. Um escândalo eterno.
Vito Mancuso: Estávamos acostumados a um
papa que não precisava de esclarecimentos, meias admissões e meias voltas
atrás. Agora, cinco anos depois, o efeito-recuo. Francisco não mostra mais que tem a força para libertar a Igreja do seu
mal:
* uma hierarquia egocêntrica e de poder
esmagador,
* um clero que está enterrando a sua missão entre mil porcarias.
O
papa não agrada mais?
Vito Mancuso: Sua voz torna-se incerta,
seus anos passam, e até o seu rosto está menos luminoso. A missão permanece
aquela. O caminho perde atrito.
Francisco
também cairá?
Vito Mancuso: A Cúria não esquece que esse
papa exerceu seu magistério atacando o clericalismo. Se eu tivesse que apostar,
diria que sim: um anti-Francisco é
previsível no futuro próximo.
JORGE MARIO BERGOGLIO Apenas escolhido Papa, apresenta-se ao povo reunido na Praça de São Pedro, no Vaticano |
A
sua figura também permanecerá enredada por esse clima tão sombrio, tão
traiçoeiro?
Vito Mancuso: Não são um, nem dois, nem
três casos. Mas os abusos contra menores são contados às centenas ou, melhor,
aos milhares. A esse quadro feito de perversões, acrescenta-se uma realidade
não menos terrível e conhecida:
* quantos padres têm amantes
estáveis?
* Quantos deixam o
sacerdócio, depois, para uma vida de casal?
* Quantos, portanto, vivem em
pecado?
O
voto de castidade, por isso, é insustentável.
Vito Mancuso: É o princípio de realidade que impõe que a Igreja viva o novo tempo
decretando a ruptura.
Talvez
o temor de um novo cisma inquiete.
Vito Mancuso: Em 1965, quando se anunciou
o princípio da liberdade religiosa, a Igreja sofreu o abandono dos lefebvrianos.
Mas, quando se caminha juntos,
envolvendo o povo da Igreja, o preço é menos salgado do que a inércia atual.
Igreja
sem povo.
Vito Mancuso: No Ocidente já é assim. Na
minha Bolonha [cidade italiana na região de Emília-Romanha], encontramo-nos na
missa em 25 pessoas no domingo, dentro de paredes majestosas. Eu pergunto: e
daqui a 10 anos quem ainda vai pôr o pé? A fé se transmite principalmente na
família. Mas as novas famílias não
conhecem a Igreja, não a reconhecem mais.
O
bispo da Filadélfia pediu para não fazer o Sínodo sobre os jovens.
Vito Mancuso: O que dizemos a eles? Não
somos mais credíveis. A Igreja é como um
iogurte vencido. Está fora do tempo. Lembro-me das extraordinárias palavras
do cardeal Martini: a Igreja está pelo
menos 200 anos atrás. Era verdade. Continua sendo verdade.
CHARLES J. CHAPUT - arcebispo da Filadélfia (EUA) |
Com
um problema a mais: nem o papa que se chama Francisco, que recusa todos os
privilégios, que fala ao povo, consegue não se sujar pelo escândalo. Lembra a
fase do declínio de Ratzinger?
Vito Mancuso: Aquele foi um papado
aristocrático. Bento XVI não buscava o aplauso popular, não se importava com
isso, absolutamente não lhe interessava. E, quando entendeu que não tinha as
forças para continuar, saiu. Francisco,
por sua vez, foi chamado para dizer a verdade, até mesmo a mais crua, seguindo
o ensinamento de Jesus. Ele não viu que a multidão ao seu redor diminuía
lentamente enquanto as suas palavras se tornavam mais duras? Ele não perguntou
aos seus apóstolos: vocês também querem ir embora? E Pedro respondeu: Senhor, a
quem iremos?
Parece
que a verdade, por outro lado, se afasta do caminho de Francisco, torna-se até
hostil.
Vito Mancuso: Digamo-lo, porque o maior
pecado é a hipocrisia. Todos nós
sabíamos das porcarias no ventre doente da Igreja. Era tão vasta e crônica
a doença que ninguém pode se isentar. As
coisas más sempre vêm à tona, e quem paga a conta são os muitos párocos bons,
trabalhadores, comprometidos com a transmissão da fé e com o desvendamento do
mistério de Deus. Porque a Igreja tem a missão da oração, da reflexão, de
avançar no mistério.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. A versão original deste artigo é encontrável aqui.
Fonte: Instituto Humanitas
Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 5 de setembro de 2018 – Internet: clique aqui.
Clericalismo?
Ghislain
Lafont
Teólogo e
monge beneditino francês da Abadia de Pierre-Qui-Vire
Professor
emérito da Pontifícia Universidade Gregoriana e do
Pontifício Ateneu «Santo
Anselmo»
Settimana
News
03-09-2018
A partir da “Carta ao Povo de Deus” do
Papa Francisco (20 de agosto de 2018), Ghislain Lafont, exorta a retomar a
reflexão pós-conciliar
sobre a identidade e o papel do sacerdote e
sobre o terreno
em que cresce a erva daninha do clericalismo
GHISLAIN LAFONT |
A
questão dos padres pedófilos assumiu uma importância mundial.
O Papa Francisco reconheceu tanto as culpas
cometidas como a carência de reações fortes por parte dos bispos, que
facilitaram a extensão desse flagelo, e a necessidade de vir seriamente em auxílio
das vítimas, para curar o dano que sofreram. Sem considerar a questão
talvez mais importante, pois diz respeito ao futuro: como evitar casos de
reincidência. E, também, não devemos esquecer a misericórdia que o Papa
Francisco colocou em exercício de todo o seu ministério apostólico.
Em sua última Carta dirigida
a todos os católicos, o Papa Francisco advertiu contra o clericalismo, que estaria na raiz dos males que
denuncia,
uma espécie de corrupção da vocação sacerdotal que se deixou desviar de seu sentido
apostólico e evangélico, para ser atraída para o que o papa chama alhures de mundanismo, para o qual já aludia na
homilia dirigida aos cardeais na eucaristia imediatamente após a sua eleição em
2013.
Eu
gostaria de refletir mais um pouco sobre esta questão do clericalismo, do
mundanismo. O Irmão Michael Davide, em seu recente livro La vérité vous rendra libres[1] [tradução livre: A
verdade vos tornará livres] reafirmou com
veemência: "por trás desses episódios desastrosos existe uma questão mais
profunda, essencial: o que é, em última
análise, o sacerdócio presbiterial?"
Para
responder à pergunta, acredito que esteja na hora de realmente levar a sério um
outro caminho, que eu tomei a liberdade de formular já há algum tempo, mas que
ainda aguarda uma resposta: em alguns
ambientes eclesiais, perguntamo-nos se não seria conveniente ordenar os viri probati, ou seja, alguns homens
que passaram por provas [homens já casados e com suas profissões bem definidas].
Inclusive, é o que se faz quando se trata de chamar um cristão para o
diaconato.
Então
aqui está a questão: podemos considerar como viri probati jovens que, na verdade, ainda não vivenciaram tais
provas:
* nem a de uma vida conjugal
séria,
* nem de uma vida
profissional sólida,
* nem de compromissos na
cidade no plano político, social e associativo?
Dito
de outra forma, eles são ordenados
apenas com base em uma formação recebida no seminário, que hoje é voltada
(mas só hoje) às dimensões humanas da personalidade.
Mas uma formação não torna
um homem formado: é somente o tempo que permitirá saber se o homem está
realmente formado. Existem excelentes percursos de formação que, por diferentes razões,
falharam e esse ou aquele homem não correspondem, em última análise, às
esperanças ligadas à qualidade da formação.
Por
que deveria ser diferente para o presbiterado? Não seria melhor atrasar a ordenação até o momento em que o vir (não mais o juvenis) tenha se revelado probatus?
Se
não, o que acontece? Felizmente, em muitos casos existem bons sacerdotes; não é
necessário descrevê-los aqui: cada um de nós conhece muitos deles. Mas também
há casos menos afortunados, que se encaixam no que o papa Francisco chama de
clericalismo, que pode conhecer desvios mais ou menos fortes, estes últimos
felizmente raros.
Eu
já tive no passado a oportunidade de ensinar em duas universidades romanas, e percebi que, em alguns casos, o «clericalismo»
já estava presente e se manifestava nos homens:
* menos ligados aos seus
estudos,
* menos desejosos de
santidade ... muito simplesmente, talvez,
* porque seu futuro estava garantido: a menos que houvesse falhas graves ou
contraindicações evidentes, eles se
tornariam padres, teriam sua paróquia, seus ganhos [côngrua] ... então, uma segurança básica.
As mulheres, ao contrário, não tinham um
futuro em alguma da missão da Igreja caso não apresentassem um bom nível e,
portanto, era necessário que se colocassem à prova (mulieres probatae!).
Todas
essas considerações me fazem pensar que está
na hora de a Igreja levar a sério o que a Carta a Tito expressa sobre o
candidato ao episcopê [ao
episcopado, ser bispo].[2]
A
honestidade obriga-me também a dizer que a
Santa Sé parece-me em parte responsável por esse desvio, uma vez que nunca
favoreceu uma reforma profunda do que é chamado de sacerdócio
católico.
O
Concílio tinha, não sem dificuldades, estabelecido algumas bases nesse sentido.
Alguns teólogos do pós-concílio, em vários países, engajaram-se nessa abertura
e gradualmente delinearam uma figura de padre coerente com as outras grandes
intuições do Concílio Vaticano II sobre a Igreja em si e sua missão de
evangelização. Uma imensa bibliografia poderia aqui ser referida.
Mas
as tomadas de posição oficiais não
seguiram essa linha.
No
capítulo dedicado à Presbyterorum ordinis
e Optatam totius na obra L'Église catholique a-t-elle donné sa chance
au Concile Vatican II? [tradução livre: A
Igreja Católica deu chances ao Concílio Vaticano II?], Gilles Routhier conclui assim sua reconstrução do que aconteceu:
«A reflexão (conduzida
sob os papas João Paulo II e Bento XVI) insiste cada vez mais sobre a
identidade do padre e sobre a sua espiritualidade. Além disso, o presbiterado resulta concebido como um estado
de vida e não como um ministério. Através de pequenos desvios
sucessivos, volta-se a considerar o presbiterado, que é cada vez mais desenhado
a partir da categoria sacerdotal, como um estado
de perfeição. Em quase cinquenta anos, a perspectiva
posta em prática pelo Vaticano II foi praticamente invertida».[3]
Então,
o que levava a ver o sacerdócio como um estado
de vida? Talvez dois elementos que pareciam exigir a mais alta
santidade:
1)
a hierarquia
e
2) o
poder
sagrado, ambos principalmente orientados não para a Igreja, mas para as
celebrações sacramentais.
A ideia hierárquica,
em seu sentido mais elevado, remonta a pseudo-Dionísio,
um teólogo místico que tentou pensar o Mistério cristão com a ajuda das categorias
elaboradas na Teologia Platônica
escrita pelo gênio da escola de Atenas, Proclo:
da plenitude inexprimível do Uno inominável, acima de tudo, emanam por graus as
inteligências que, por sua vez, estão na origem do grau inferior a elas, e são
animadas por um desejo de retorno à Fonte que as supera. Essa figura diz
respeito, ao mesmo tempo, à hierarquia dos Nomes divinos e, no plano cristão, à
ordem das hierarquias dos coros angelicais e, na Igreja, das diferentes
pessoas. O bispo na terra é a mais pura
emanação da santidade, da qual o texto descreve a atividade simbólica e a inspiração
contemplativa. No Ocidente, depois do
Concílio de Trento, foi essa visão hierárquica que principalmente caracterizou
o padre.
O poder sagrado:
é o que permite que aqueles que pertencem à ordem hierárquica possam executar
atos propriamente divinos - aqueles que,
nos sacramentos, fazem o que nenhuma criatura pode fazer: operar a conversão
eucarística do pão no Corpo e do vinho no Sangue de Cristo (Eucaristia), deixar
entrar um homem no Corpo de Cristo, com o Batismo e a Penitência. Aqui, o instrumento que permite pensar tal
mistério não é mais a teologia platônica, mas a metafísica de Aristóteles.
Agora,
ambos os componentes da interpretação do sacerdócio parecem conferir uma
dignidade na medida de sua transcendência, e constituem, ao mesmo tempo, uma imensa exigência de santidade sacerdotal
- algo que pode explicar, aliás, a reticência oposta em outras épocas por
muitos santos em receber a ordem, julgada completamente fora de suas
capacidades.
Parece-me que essa
mentalidade geral da santidade do padre governou as tomadas de posição
assumidas pelo magistério católico, mesmo depois do Concílio. É sobre essa base
inalterada (em que o celibato encontra seu lugar, ligado à catharsis grega), que foram enxertadas uma série de considerações
mais modernas de cunho psicológico e intelectual.
Mas,
no final das contas, a ideia do padre
continua extremamente elevada. Elevada demais?
Percebe-se
isso lendo a Ratio fondamentalis institutionis
sacerdotalis, publicada recentemente pela Santa Sé com o título: O dom de vocação sacerdotal. É difícil imaginar uma vocação cristã mais
elevada daquela descrita nesse texto.
A
questão que pode surgir é então: a qual
realidade de padre corresponde esse admirável programa?[4]
É
disso que decorre a dupla questão que apresento: se for verdade que o platonismo articulado por Proclo e a
metafísica de Aristóteles forneceram, em algum momento, os instrumentos
para a construção teológica do sacramento da ordem, quais seriam os
instrumentos a serem usados hoje que - sem renegar este passado e assumindo-o
na medida do possível - permitiriam construí-lo de uma outra forma?
Se, por outro lado, for verdade que a concepção subjacente ao dom da vocação
sacerdotal é, por um lado, muito alta e, pelo outro, inadequada
talvez para a conjuntura cultural da atualidade, não estaria se arriscando
talvez todo tipo de desvio?
Quando o seminarista sairá
de seu seminário, muito (demasiado?) ciente da situação transcendente da sua
vocação, e
se deparará com o fato de ter que se confrontar, por um lado, com a realidade
deste mundo difícil e, pelo outro, com a sua própria fragilidade humana, não correrá o risco de vacilar e não saber
como administrar a própria existência?
A
graça de Deus e a ajuda dos homens certamente permitem que a maioria combata a
boa batalha. Mas não se deveria refletir
mais seriamente sobre os fracassos?
Não só a pedofilia, mas o
abandono relativamente frequente do sacerdócio em poucos anos ou o fato,
menos grave e mais frequente, do autoritarismo
dos padres e sua forma rígida de comportar-se com o outros, ou de gerenciar
questões de dinheiro? Não é exatamente este o clericalismo que condena o
Papa Francisco?
Isso
não se deveria ao fato de que a formação, como está sendo colocada em prática,
acaba por revelar o impasse em que na realidade colocou os jovens?
A
verdadeira questão é: o que é um padre? E
não penso estar sendo presunçoso, quando sugiro
de procurar a resposta nos teólogos que trabalharam nisso depois do Concílio,
e cujas aberturas, tão calculadas quanto belas, ainda não arranharam a
segurança da instituição.
Em 1971, houve
um Sínodo sobre os sacerdotes. E se em 2021 pudesse acontecer outro, a partir
da ideia dos viri probati?
É o
pedido que eu gostaria de endereçar humildemente ao Papa Francisco.
Referências:
[1]
Paris, 2018. Infelizmente, o editor francês não conservou o título provocativo,
mas fundamentado do original italiano: Preti
senza battesimo [Padres sem batismo]. Eu fiz uma recensão da tradução
francesa em Collectanea OCR, que será
publicada em seu próximo número.
[2] Esbocei
algumas reflexões sobre esse ponto em meu último livro Petit essai sur le temps du pape François (Pequeno ensaio sobre o
tempo do Papa Francisco), Paris, 2017, p. 201-222.
[3] Cahiers de la Revue
Théologique de Louvain n. 41, Leuven,
Peeters 2016, p. 157-158.
[4] Lembro
aqui o que me dizia há muito tempo o saudoso Philippe Delhaye, professor na
Universidade de Louvain: “Na Idade Média, todos os padres foram transformados
em religiosos, e todos os religiosos em padres”. O Concílio poderia ter feito
evoluir tudo isso.
Traduzido do italiano por Luisa Rabolini – versão italiana, clique aqui.
O original francês foi publicado no blog do autor «Des moines et des hommes», clique aqui.
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