A história do impeachment
O mundo nos vê com assombro por manter Bolsonaro
André Cáceres
Jornalista
Entrevista com Rafael
Mafei
Jurista e professor da Universidade de São Paulo (USP)
Em “Como
Remover um Presidente”, o jurista Rafael Mafei narra a história desse
dispositivo jurídico desde seu surgimento na Inglaterra medieval até o Brasil
contemporâneo
Embora o primeiro processo bem-sucedido de impeachment do País tenha sido instaurado apenas em 1992, contra Fernando Collor de Mello, a relação brasileira com esse dispositivo jurídico é longa e conturbada. A noção de crime de responsabilidade, herdada do Brasil imperial, motivou a criação de uma lei que permitia a impugnação do presidente e que foi pivô de uma crise política já durante o primeiro mandato da República, levando à renúncia do marechal Deodoro da Fonseca.
Nosso segundo presidente, Floriano Peixoto, também viria a sofrer uma tentativa de impeachment, mas seria absolvido. Diferente dos processos de “impedimento” que afastaram os presidentes interinos Café Filho e Carlos Luz com um intervalo de 11 dias sem acusação, defesa ou um rito digno de um julgamento, durante a crise golpista de 1955 que antecedeu a posse de Juscelino Kubitschek.
Mafei passeia por esses e outros saborosos capítulos da história brasileira não com a linguagem seca do mundo jurídico, mas como em um livro de história narrado por um jurista. No entanto, o que torna Como Remover um Presidente urgente são casos mais recentes, envolvendo Fernando Collor e Dilma Rousseff. Além disso, o epílogo da obra é dedicado a analisar, do ponto de vista jurídico, a atuação de Jair Bolsonaro na Presidência da República, esmiuçando os diversos crimes de responsabilidade cometidos em sua administração e que, não fosse pelos elementos políticos que compõem o impeachment, poderiam embasar seu afastamento.
Leia trechos da entrevista concedida por Rafael Mafei ao Estadão via chamada de vídeo:
O componente “político” do processo de
impeachment vem se sobressaindo ao “jurídico” na América Latina?
Rafael Mafei: Há casos de impeachment
que andaram muito bem e casos que extrapolaram o que era esperado do ponto de
vista da capacidade do elemento jurídico de disciplinar o ímpeto político. O
jurídico é o trilho e o político é o carvão que você joga na fornalha da
locomotiva. Muitas vezes a quantidade de carvão fez com que o trilho
descarrilasse. O que a gente conseguiu fazer muito bem no Brasil é ter uma
disciplina processual do impeachment relativamente clara. Pode parecer
pouco, mas é um ganho, porque alguns casos em outros países da América Latina
foram exemplares de abuso tipicamente processual. O impeachment
do presidente do Equador, do Abdalá Bucaram, ou
do Lugo no Paraguai, ou no Brasil os
“impedimentos” do Café Filho e do Carlos Luz. A dúvida não era sobre a caracterização
ou não de um crime de responsabilidade, o que havia ali era a premência,
necessidade ou ambição de remover um presidente do cargo. No Brasil, desde a
Constituição de 1988, o aspecto procedimental do impeachment foi muito bem
delineado, a única confusão que a gente não conseguiu resolver é a história
de haver duas penas ou uma única pena, de modo a saber se o presidente,
mesmo que tenha renunciado, possa ser condenado, como o Collor foi, ou mesmo
que seja condenado, possa não perder os direitos políticos, como aconteceu com
a Dilma.
O que a gente ainda não conseguiu fazer bem no Brasil é definir a
substância dos crimes de responsabilidade.
Talvez porque o julgamento caiba a autoridades políticas, isso sempre ficou no ar e levou muitas pessoas a sustentarem uma visão equivocada, de que esse elemento político do impeachment significa que o Congresso pode dizer que é crime qualquer coisa que eles bem quiserem.
Já tivemos mais de 300 pedidos de impeachment
protocolados desde 1988 no Brasil. Do ponto de vista puramente jurídico, seria
possível ter afastado outros presidentes brasileiros?
Mafei: É difícil dar uma resposta categórica, porque seria preciso que denúncias que foram feitas tivessem recebido uma investigação, um aprofundamento que ajudasse a gente a caracterizar melhor os delitos. Seguramente, se o elemento político não estivesse tão a favor de alguns presidentes do passado, eles poderiam ser investigados por denúncias que tinham, sim, gravidade suficiente para levar a um afastamento do cargo. Fernando Henrique Cardoso teve um pedido de impeachment por uma denúncia grave, que foi a compra de votos pela reeleição. O Lula, o caso do mensalão foi seguramente um caso sério e se conseguisse provar responsabilidade do presidente por aquele ato através de uma investigação, isso poderia ter levado a um desfecho de um impeachment. Acontece que tanto Fernando Henrique quanto Lula tinham escudos legislativos muito sólidos na Câmara dos Deputados. Você tinha germes, sementinhas de acusações que poderiam levar a casos com magnitude para um impeachment, mas nunca vamos saber qual teria sido o desfecho porque elas não tiveram condições políticas de ser aprofundadas a ponto de saber se um crime de responsabilidade estaria caracterizado.
A atual onda de impeachments na América
Latina é um indício de que essas jovens democracias estão se fortalecendo ou de
que estão se fragilizando?
Mafei: O impeachment por si só não
é sinal nem de força nem de fraqueza de uma democracia. Porque quando é caso
de ele ser posto em prática, ele precisa ser posto. Isso não é nada que orgulhe
um país, porque é sinal de uma crise política grave. A gente encarou nossos
impeachments com o clima de uma micareta cívica, mas o impeachment tem
um aspecto traumático. Ele não é um sinal de estabilidade política, de
um país em que a rotina do trabalho dos políticos está consumida pela
implementação de políticas públicas, reformas ou debates legislativos que fazem
o país avançar, ela está consumida por um conflito político que levou à
destituição da maior autoridade política do país.
Mas quando ele tem que ser aplicado, não aplicá-lo tem um custo
muito alto.
Por outro lado, quando não é a hipótese de ele ser aplicado –
isso pode significar que o presidente não cometeu nenhum ato ilícito e está
meramente sendo removido do cargo ou que cometeu um ato ilícito, mas esse ato
pode ser enfrentado por maneiras menos drásticas —, ele também não deve ser
acionado. A América Latina, embora tenha ao longo do século 20 registro de
muita instabilidade política, tem padrões de instabilidade diferentes de tempos
em tempos. O padrão na década de 1960 e 70 era golpe militar; dos anos 90 até
agora passa pelo impeachment. Manifestações pelo impedimento de Fernando Collor de Mello - 1992
Quais são as principais diferenças entre os
processos de impeachment de Collor e Dilma?
Mafei: O processo do Collor foi muito mais sumário, rápido e conduzido em
meio a uma incerteza procedimental. Embora a Lei do Impeachment fosse
antiga, ela nunca tinha sido posta em prática. Muito do aprendizado
sobre o rito do impeachment aconteceu com o caminhão em movimento. O episódio
da indefinição do Senado sobre o momento do afastamento do Collor é muito
ilustrativo. A coisa mais elementar do processo, que era quando o presidente
sai e o vice toma posse, ninguém sabia. Tanto que os jornais do dia
seguinte à votação deram informações erradas, estamparam na capa que o Collor
estava afastado quando juridicamente não estava. Ninguém tinha muita dúvida de
que a conduta do Collor implicava crime de responsabilidade, porque o caso
do Collor era um caso de abuso de poder e indignidade presidencial quase
caricato. No caso da Dilma, o debate não
foi processual, houve debate sobre os fundamentos substantivos do impeachment. Houve
um descompasso entre as razões que levaram ao impeachment e as razões
que levavam o governo dela a ser objeto de tantos protestos. Todas as
medições sobre a opinião das pessoas indicam que a Dilma deveria ser afastada
por corrupção ou por interferir na Lava Jato, o que nunca esteve entre as
acusações que ela sofreu e ironicamente talvez tenha sido uma das razões pelas
quais ela politicamente acabou abatida, porque interferir na Lava Jato era
tudo que a ala do PMDB que a abandonou queria que ela fizesse. Isso é uma
particularidade digna de nota.
A outra é uma dúvida jurídica que foi mal explorada, se o
fato de ela ter violado a Lei de Responsabilidade Fiscal necessariamente
implica que essa violação constitua crime de responsabilidade.
Você só recorre ao impeachment quando a conduta que você quer impedir que o presidente continue praticando não possa ser freada de nenhuma maneira. No caso do Collor, como eu vou impedir que ele se reúna na surdina com gente que pratica tráfico de influência no seu governo? As condutas da Dilma que foram apontadas como ilegais pelo TCU se valiam de atos institucionais claros e observáveis à luz do dia no orçamento, nos decretos. Havia maneiras alternativas, mudando a forma de consideração das pedaladas na contabilidade pública, para que elas não servissem mais para maquiar o orçamento, ou então ajuizando ações que impedissem os efeitos de decretos que podem ser considerados ilegais. Esse debate sobre o crime de responsabilidade como sendo uma conduta que não pode ser eficazmente respondida de outra maneira merecia ter sido feito com mais alento.
O epílogo do seu livro deixa evidentes
transgressões e crimes de responsabilidade cometidos pelo atual governo. Como
você vê um impeachment hoje?
Mafei: Não existe um debate jurídico sério
sobre o presidente ter ou não praticado crimes de responsabilidade,
especificamente no contexto da pandemia. A lei 1079/50 diz que é crime de responsabilidade
atentar contra a saúde pública dos brasileiros.
Eu não consigo imaginar uma maneira como um presidente da República
possa mais explicitamente atentar contra a saúde pública dos brasileiros do que
fazer o que o Bolsonaro fez no contexto da pandemia.
Qualquer presidente sabe que o espirro de um presidente é
notícia na primeira página dos jornais. Todo presidente sabe que palavra,
imagem, comportamento de presidente é poder por ele ser o presidente.
Quando a Lei do Impeachment diz que o presidente precisa se comportar de
acordo com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, é principalmente esse
freio, essa liturgia que um deputado não precisa ter no mesmo nível que um
presidente tem. Que presidente usa sua visibilidade para desacreditar máscara e
para, o tempo todo, minar a possibilidade de cooperação federativa ao embarcar
numa guerra contra os governadores por pura estratégia política?
No fundo, Bolsonaro sabia que os ônus principais da pandemia,
que eram mortes, seriam possíveis de ser empurrados para prefeitos e
governadores, porque quando a pessoa morre sem leito, ela vai morrer na
porta de um hospital estadual ou municipal.
O ônus de fechar o comércio cabe aos prefeitos e
governadores, porque é uma medida que em muitos casos vai ter variações locais,
mas que foi transformado pelo Bolsonaro em um atentado político contra a
liberdade das pessoas, de modo que o custo de tomar essa medida como um
gestor público passou a ser muito alto. Tudo isso faz parte de uma estratégia
política para tentar minimizar o impacto da pandemia na economia, que é a única
coisa que normalmente seria atribuível à responsabilidade do presidente.
A verdade é que o mundo hoje olha para a gente com assombro por
mantermos o Bolsonaro presidente.
O comportamento do Bolsonaro do ponto de vista jurídico
caracteriza muito facilmente crime de responsabilidade, principalmente
na sua gestão da pandemia. O elemento que falta é o político, porque
esse é um jogo que o Bolsonaro sabe jogar muito bem e porque um impeachment
precisa que todas as pessoas que não pertencem àquela base mais rígida do
presidente se convençam não só que o impeachment é cabível, mas também
que é a melhor alternativa estratégica à disposição. E esse consenso não
existe.
Alto risco:
O
que a gente vai saber é se essa estratégia não dá de barato que as eleições
do ano que vem vão ser limpas, regulares e jogadas na bola, quando está a
cada dia mais claro que o Bolsonaro não só não tem muito apreço pela
condução de uma eleição em que ele se anteveja como perdedor, como também
está reunindo condições materiais de jogar sujo na eleição se essa estratégia
for boa para ele.
L I V R O
Título: Como remover um
presidente
Subtítulo: Teoria, história e
prática do impeachment no Brasil
Editora: Zahar
Publicação: Junho de 2021
Páginas: 450
Preço: R$ 64,90 (impresso), R$ 39,90 (e-book)
Fonte: O Estado de S. Paulo – Cultura/Literatura – Sábado, 12 de junho de 2021 – Pág. H7 – Internet: clique aqui (acesso em: 13/06/2021).
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