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 A compaixão como princípio

 Leonardo Boff

Ecoteólogo, Filósofo e escritor de mais de uma centena de livros, entre os quais, “Princípio compaixão e cuidado”, com Werner Müller (Editora Vozes) 

Ela é atestada em todos os povos e culturas: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhar de sua dor e assim aliviá-la

 

Através da Covid-19 a Mãe Terra está movendo um contra-ataque à humanidade como reação ao avassalador ataque que vem sofrendo já há séculos. Ela simplesmente está se defendendo. A Covid-19 é igualmente um sinal e uma advertência que nos envia: não podemos fazer-lhe uma guerra como temos feito até agora, pois está destruindo as bases biológicas que a sustenta e sustenta também todas as demais formas de vida, especialmente, a humana. 

Temos que mudar, caso contrário nos poderá enviar vírus ainda mais letais, quem sabe, até um indefensável contra o qual nada poderíamos. Então estaríamos seriamente ameaçados como espécie.

Não é sem razão que a Covid-19 atingiu apenas os seres humanos, como aviso e lição.

Já levou milhões à morte, deixando uma via-sacra de sofrimentos a outros milhões e uma ameaça letal que pode atingir a todos os demais. 

Os números frios escondem um mar de padecimentos por vidas perdidas, por amores destroçados e por projetos destruídos. Não há lenços suficientes para enxugar as lágrimas dos familiares queridos ou dos amigos mortos, dos quais não puderam dizer um último adeus, nem sequer celebrar o luto e acompanhá-los à sepultura. 

Como se não bastasse o sofrimento produzido para grande parte da humanidade pelo sistema capitalista e neoliberal imperante, ferozmente competitivo e nada cooperativo. Ele permitiu que:

* 1% dos mais ricos possuísse pessoalmente 45% de toda a riqueza global enquanto

* os 50% mais pobres ficasse com menos de 1%, segundo relatório recente do Crédit Suisse.

Ouçamos aquele que mais entende de capitalismo no século XXI, o francês Thomas Piketty referindo-se ao caso brasileiro. Aqui, afirma, verifica-se a maior concentração de renda do mundo; os bilionários brasileiros, entre o 1% dos mais ricos, ficam à frente dos bilionários do petróleo do Oriente Médio. Não admira os milhões de marginalizados e excluídos que esta nefasta desigualdade produz. 

Novamente os números frios não podem esconder a fome, a miséria, a alta mortandade de crianças e devastação da natureza, especialmente na Amazônia e em outros biomas, implicada nesse processo de pilhagem de riquezas naturais. 

Mas nesse momento, pela intrusão do coronavírus, a humanidade está crucificada e mal sabemos como baixá-la da cruz.

É, então, que devemos ativar em todos nós uma das mais sagradas virtudes do ser humano: a COMPAIXÃO.

Ela é atestada em todos os povos e culturas: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhar de sua dor e assim aliviá-la. 

LEONARDO BOFF - autor deste artigo

O maior teólogo cristão, Tomás de Aquino, assinala na sua Suma Teológica que a compaixão é a mais elevada de todas as virtudes, pois não somente abre a pessoa para a outra pessoa senão que a abre para a mais fraca e necessitada de ajuda. Neste sentido, concluía, é uma característica essencial de Deus. 

Referimo-nos ao princípio compaixão e não simplesmente à compaixão. O princípio, em sentido mais profundo (filosófico) significa uma disposição originária e essencial, geradora de uma atitude permanente que se traduz em atos, mas nunca se esgota neles. Sempre está aberta a novos atos. Em outras palavras, o princípio tem a ver com algo pertencente à natureza humana. Porque é assim podia dizer o economista e filósofo inglês Adam Smith (1723-1790) em seu livro sobre a Teoria dos Sentimentos Éticos:

“até a pessoa mais brutal e anticomunitária não está imune à força da compaixão”.

A reflexão moderna nos ajudou a resgatar o princípio compaixão. Foi ficando cada vez mais claro para o pensamento crítico que o ser humano não se estrutura somente sobre a razão intelectual-analítica, necessária para darmos conta da complexidade de nosso mundo. Vigora em nós, algo mais profundo e ancestral, surgido há mais de 200 milhões de anos quando irromperam na evolução os mamíferos: a razão sensível e cordial. Ela significa a capacidade de sentir, de afetar e ser afetado, de ter empatia, sensibilidade e amor. 

Somos seres racionais, mas essencialmente sensíveis. Na verdade, construímos o mundo a partir de laços afetivos. Tais laços fazem com que as pessoas e as situações sejam preciosas e portadoras de valor.

Não apenas habitamos o mundo pelo trabalho senão pela empatia, o cuidado e a amorosidade. Este é o lugar da compaixão.

Quem tratou dessa virtude melhor que nós ocidentais foi o budismo. A compaixão (Karuná) se articula em dois movimentos distintos e complementares:

* o desapego total e

* o cuidado.

Desapego significa deixar o outro ser, não enquadrá-lo, respeitar sua vida e destino. Cuidado por ele, implica nunca deixá-lo só em seu sofrimento, envolver-se afetivamente com ele para que possa viver melhor carregando mais levemente sua dor. 

O terrível do sofrimento não é tanto o sofrimento em si, mas a solidão no sofrimento.

A compaixão consiste em não deixar o outro só. É estar junto com ele, sentir seus padecimentos e angústias, dizer-lhe palavras de consolo e dar-lhe um abraço carregado de afeto.

Hoje os que sofrem, choram e se desalentam com o destino trágico da vida, precisam desta compaixão e desta profunda sensibilidade humanitária que nasce da razão sensível e cordial. As palavras ditas que parecem corriqueiras ganham outro sonido, reboam dentro do coração e trazem serenidade e suscitam um pequeno raio de esperança de que tudo vai passar. A partida foi trágica, mas a chegada em Deus é bem-aventurada. 

A tradição judaico-cristã testemunha a grandeza da compaixão. Em hebraico é “rahamim” que significa “ter entranhas”, sentir o outro com profundo sentimento. Mais que sentir é identificar-se com o outro. O Deus de Jesus e Jesus mesmo mostram-se especialmente misericordiosos como se revela nas parábolas do bom samaritano (Lc 10,30-37) e do filho pródigo (Lc 15,11-32). Curiosamente, nesta parábola, a virada se dá não no filho pródigo que volta, mas no pai que se volta para o filho pródigo. 

Mais no que nunca antes, face à devastação feita pela Covid-19 em toda a população, sem exceção, faz-se urgente viver a compaixão com os sofredores como o nosso lado mais humano, sensível e solidário. 

Fonte: A terra é redonda – Quinta-feira, 17 de junho de 2021 – Internet: clique aqui (acesso em: 21/06/2021).

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