Importando a confusão e somando com a nossa


Washington Novaes*

Dificilmente em qualquer outra época se terão juntado tantos fatores externos e internos para dificultar o diagnóstico e a adoção de caminhos eficazes para resolver em âmbito global ou de cada país a grave crise econômico-financeira-produtiva-social-ambiental do mundo de hoje. A tal ponto que dificilmente a reunião de hoje e amanhã do G-20 chegará a consensos produtivos. Da mesma forma que, no nosso panorama interno, são enormes e evidentes as dificuldades para avançar nos ásperos caminhos da contenção da inflação sem perder o embalo do crescimento.

Não é novidade que o presidente da França, Nicolas Sarkozy, insistirá em criar uma taxação internacional sobre operações financeiras, na esperança de deter a especulação, que gira mais de US$ 600 trilhões (Estado, 28/1), num mundo onde o produto bruto anual de todas as nações juntas anda pelos US$ 60 trilhões anuais. E como a crise financeira e a ameaça de "débâcles" vivem rondando todos os países, inclusive os industrializados, parte desse dinheiro especulativo invade cada vez mais o mundo real das commodities (agropecuárias, minerais), em busca de garantias reais - e é, na visão de Sarkozy, o principal fator da alta do preço dos alimentos no mundo (Estado, 30/1).

Para a ONU (19/1), as "respostas momentâneas descoordenadas à crise cambial e ao desemprego", conjugadas com medidas de austeridade fiscal, "ameaçam a recuperação econômica do mundo", assim como dificultam avanços nas tentativas de acudir quase 1 bilhão de pessoas que passam fome e centenas de milhões à beira desse precipício.

O preço dos alimentos no mundo é hoje o mais alto de todos os tempos, diz o Earth Policy Institute, na hora em que, a cada dia, mais 219 mil pessoas se somam à população (80 milhões por ano) e a produção agrícola vem em boa parte de zonas áridas ou com problemas hídricos. Até 2070, diz Jacques Diouf, diretor-geral da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, será preciso aumentar a produção de alimentos no mundo em 70% (100% nos países mais pobres). Como se fará isso em meio à especulação financeira e aos subsídios dos países mais ricos (US$ 365 bilhões anuais só aos produtores da OCDE, segundo a Folha de S.Paulo, 6/2), que condicionam a oferta a outras razões (balanço comercial, mercado financeiro etc.)?

O preço da cesta de alimentos já é o mais alto desde 1990, segundo a FAO (Estado, 4/2). E não é novidade que no oligopolizado mercado futuro de commodities um mesmo lote de soja ou trigo chega a passar (no papel ou no computador) de mão em mão até 40 vezes, antes de se concretizarem a venda final e o consumo.

Quando se olha a questão por outro ângulo - o dos custos dos produtos agrícolas -, a perplexidade não é menor. O Brasil já é o maior importador de agrotóxicos no mundo. Consome em torno de 14 litros por hectare cultivado - além de 180 mil toneladas anuais de fertilizantes. A importação de fertilizantes cresceu mais de 200% em uma década e chegou a 80% do total (era de 20% há 30 anos). Importamos 74% do nitrogênio, 49% do fósforo e 92% do potássio. A importação total de defensivos anda pela casa dos R$ 12 bilhões anuais.

Mas os alimentos "não são o vilão da inflação", diz o ministro da Agricultura, quando se discute a alta de preços (23/12). O ex-ministro Rubens Ricupero lhe dá razão em parte, ao lembrar que os preços atuais também recuperam as graves perdas da década de 80 (Folha de S.Paulo, 6/2) - embora ele não esqueça a especulação financeira com commodities e os preços oligopolizados dos insumos químicos e agrotóxicos. Mas o fato é que o índice de commodities agropecuárias (soja, carne, trigo, açúcar) do Banco Central já acusava em outubro de 2010 alta de 46%; na energia (petróleo, gás, cana), 17%; e nos metais, 5,9%. Nouriel Roubini, um dos raros economistas que previram a crie mundial de 2008, acha que a atual situação "pode levar à instabilidade econômica e política" (27/1).

Mas a especulação não é só nas commodities. As altas taxas de juros no Brasil atraem legiões de investidores, já que elas estão em zero ou pouco acima nos países mais ricos. O governo brasileiro precisa, por isso, comprar moeda estrangeira (US$ 41,4 bilhões, quase o dobro do capital que entrou no País), aumentando as despesas com juros. Cresce a dívida pública (R$ 1,694 trilhão). Os problemas cambiais levam a um déficit da indústria em suas relações com o exterior. O governo tem de recorrer a impostos compulsórios para bancos com posições "vendidas" no câmbio. Amiúdam-se as projeções em torno de expectativas de aumentos da taxa de inflação ou alertas (como nas atas do Copom). O ministro da Fazenda chegou a falar em expurgos nos índices de inflação nos alimentos e combustíveis - mas parece haver desistido. O fato é que o IGP-M de 2010 (11,32%) é o mais alto desde 2004, com forte participação dos preços de alimentos. Os preços do boi gordo na Bolsa subiram em 2010 mais de 36%, para chegar a R$ 117,18 a arroba. Caem as expectativas dos economistas para o crescimento do PIB este ano.

Segundo os pecuaristas, a alta da carne foi para recuperar as perdas de 2004 a 2007 (15/2). O mercado só se estabilizará, segundo eles, em 2014. E, para atender às expectativas de exportação em 2011 e ao aumento do consumo per capita para 38 quilos anuais, será preciso aumentar ainda mais a produção. Onde expandir? No Cerrado, dizem alguns dirigentes do setor (Estado, 11/2). Mesmo na Amazônia não será tão problemático, dizem outros - e os dados mais recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) já apontam para certa reversão de tendência ali, com o desmatamento no segundo semestre mais alto que o de igual período de 2009.
O jeito é ir pondo a culpa de tudo no crescimento da China e da Índia. Com a distância, as contestações demoram.

* JORNALISTA

Fonte: O Estado de S. Paulo - Dia 18/02/2011 - Pg. A2 - Internet: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110218/not_imp681161,0.php

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