A praça é do povo. Entrevista com Emilio Platti, frade dominicano
As pedras cruzavam os ares da Praça Tahrir, no centro do Cairo e, em São Paulo, o frade dominicano Emilio Platti (foto acima) comentava: "Os egípcios são um povo doce...". Isso, no início da semana passada, no auge da quebradeira. Quando finalmente o presidente Hosni Mubarak entregou o poder, na sexta, o religioso voltou a falar de sua esperança com o país onde vive parte do ano: "Foram 300 mortes nos últimos dias, mas não houve massacres... O desfecho me faz otimista". De origem italiana, Platti é um renomado pesquisador do islamismo e integra no Cairo o Instituto Dominicano de Estudos Orientais (Ideo). Nesse centro, a ordem da qual faz parte mantém uma biblioteca com 130 mil volumes, especializada em teologia, filosofia e cultura árabe. Até o grande imã do Egito, nos seus férteis anos de juventude, fez trabalhos acadêmicos na instituição, já adotada no país como patrimônio egípcio.
A reportagem e a entrevista é de Laura Greenhalgh e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 13-02-2011.
Pois Platti havia assumido o compromisso de vir a São Paulo nesta época do ano para dar um curso na Escola Dominicana de Teologia justamente em torno do diálogo cristão-islâmico - algo que se viu nos longos dias e noites de sublevação na Praça Tahrir, como se fosse a parte prática de suas aulas. Daqui, acompanhou os acontecimentos - sempre otimista. Acredita na face nova de um islamismo moderado, sente que a lufada liberalizante que varreu as ditaduras da Tunísia e do Egito também já está soprando no Irã e imagina que a Turquia possa servir de modelo para a consolidação de regimes democráticos na região. Autor, entre outros livros, de Islã - Inimigo Natural? (Éditions du Cerf, Paris, 2006), Emilio Platti é também professor da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
A seguir, ele apresenta um minucioso diagnóstico do Egito, relacionando a situação atual com a trajetória do país ao longo do século XX.
Um pouco do contexto religioso
"O Egito é um país profundamente religioso. Essa ambiência se expressa no cotidiano dos sunitas, coptas, que são cristãos de uma vertente antiga, fiéis das pequenas igrejas protestantes ou ainda da diminuta comunidade católica. Se você liga o rádio em casa, no carro ou num táxi há sempre a oportunidade de ouvir preces ou cantos religiosos, ou mesmo a pregação do imã. O país tem em torno de 80% de muçulmanos sunitas, 10% de coptas ortodoxos e uma minoria de 10% que inclui protestantes e católicos. Há momentos em que a maioria muçulmana se atrita com a minoria copta, só que essas diferenças ganham uma divulgação exagerada, a meu ver. Às vezes um mero conflito entre vizinhos pode ser atribuído à diferença de credo. Por outro lado, é bem verdade que os coptas reclamam de discriminação, sentem-se cidadãos de segunda classe. Formalmente são tão cidadãos quanto os muçulmanos, mas, na prática, há alguma diferença, sim. Nota-se nos momentos de seleção para um posto de trabalho, quando um cristão vai disputar a vaga de professor com um muçulmano, por exemplo. Pode ser preterido. Por isso é que os cristãos se refugiam nas profissões liberais: são médicos, farmacêuticos, comerciantes.
2011 começou violento - lembram?
"O atentado deste ano contra uma igreja católica na cidade egípcia de Alexandria, no ano-novo cristão, matou 21 fiéis e chamou atenção para esse cenário religioso. Mas o ataque foi fabricado fora do Egito. Tem a ver com muçulmanos radicais do Iraque, sob inspiração de grupos ligados a Bin Laden. Também resulta de uma ideologia exclusivista, muito ativa entre os sauditas, um arabismo que não admite os sufis, os xiitas, os coptas, nenhuma outra denominação religiosa que tenha seus ícones e suas devoções.
Repudiando tudo isso, os extremistas acreditam que é possível purificar o mundo através da violência. Daí a existência de uma guerra civil no Iraque. E dos atentados em mesquitas no Paquistão, justamente no túmulo de santos venerados pelos sufistas. O massacre em Alexandria, em janeiro deste ano, é um dado importante nesse contexto, mas mal compreendido. Inclusive o papa Bento XVI, ao recriminar publicamente o governo egípcio, de maioria muçulmana, dizendo que ele tinha o dever de proteger os cristãos no país, gerou ressentimento. Agora veja, o clima de desconfiança religiosa parece ter sido superado na Praça Tahrir, onde todos se juntaram para exigir a saída de Mubarak. Na praça, muçulmanos fizeram suas rezas diárias, mas havia padres celebrando missas. É a prova cabal de que não é o elemento religioso que junta as pessoas nesse momento.
Nacionalismo de farda
"É uma aberração comparar milhões de muçulmanos ao movimento de radicalização do Taleban ou da Al-Qaeda. As autoridades muçulmanas no Cairo são legítimas representantes do Islã moderado. Para entender isso é preciso retroceder no tempo. O século XX começou com um forte movimento de colonização. E aqui falo da instalação das colônias britânicas, francesas, as indochinesas, o império russo... Já naquele momento os muçulmanos refletiam sobre as causas de terem sido tão fortemente dominados pelo Ocidente. Nascem dessas reflexões correntes reformistas, correntes que pregavam a volta às origens do islamismo. De outra parte, formaram-se os movimentos nacionalistas, de perfil militarista, laicizantes e igualmente anticolonialistas. O problema é que esses movimentos não souberam integrar aquele islamismo reformista que havia se constituído. Esse foi um erro. E gerou uma confusão tal que comumente se atribui aos muçulmanos a inspiração primeira do nacionalismo quando, na verdade, ele foi protagonizado por militares. Nasser, Kadafi, Arafat, quantos militares se destacaram na região. No caso do Egito, o nacionalismo levou a uma ditadura sustentada por um Estado policial. Entretanto, hoje os egípcios mais jovens, muçulmanos ou cristãos, não aceitam o regime que se instalou no país há 50 anos, com a justificativa de combater o colonialismo. A juventude quer a democracia.
Um modelo para os jovens
"A Turquia pode ser o modelo deles. Porque aquele país está fazendo sua transição rumo à democracia calmamente, sem colidir com valores religiosos. Claro, a perspectiva de integração europeia marca a transição turca, mas, se estamos falando de modelo, falamos então de um regime que respeita os direitos humanos e a liberdade de expressão, deixando emergir um novo secularismo. Os jovens da Praça Tahrir já estão impregnados desses valores. Não querem o modelo militar, como não querem o modelo islâmico nos moldes do Irã. Cansaram-se de ser abordados pela polícia nas ruas e detidos para interrogatórios, prática tão comum no Egito. No seio das famílias muçulmanas, e tenho contato com várias, mudanças vão se processando. Filhos questionam pais sobre as regras do casamento, defendem os homossexuais, aprendem a falar línguas, informam-se e trocam ideias pela internet. Muita coisa acontece nesse islamismo de face moderada.
Ditador longevo
"Mubarak venceu o islamismo radical nos anos 80, ao conseguir fazer a sucessão de Anuar Sadat, assassinado por extremistas desejosos de uma revolução nos moldes iranianos. Em 1997, venceu-os de novo ao reagir ao massacre de turistas em Luxor, por jihadistas. Assim, granjeou prestígio no Ocidente. Só que ele se perpetuou no poder instalando um Estado policial e oprimindo o povo. Até a última terça-feira, calculei que ele resistiria no poder por mais tempo. Mas, ao ver que os protestos extravasaram os limites da praça, mobilizando trabalhadores em outros locais e atraindo apoios de toda ordem, senti que a queda era iminente. Havia, enfim, um movimento social por trás dos protestos.
Islã de face nova
"A intelligentsia muçulmana, lá atrás, fascinou-se com o sucesso da revolução do Irã. Dizia-se ‘vamos fazer outras revoluções como esta’, ‘vamos ser contra EUA e Israel’, mas depois de certo tempo essa mesma intelligentsia viu que o radicalismo colava uma imagem ruim no Islã, imagem manchada pela violência. Esses intelectuais então trataram de buscar outras fontes de informação, e ideias passaram a circular. Na recente Feira do Livro do Cairo você encontrava, como sempre, uma enormidade de livros religiosos, o Alcorão e suas edições comentadas, porém a sociedade egípcia tem sede de outras leituras. E novos autores estão aparecendo. Dou um exemplo: o jovem escritor iraniano Vali Reza Nasz, filho de outro intelectual famoso, acaba de lançar um livro instigante, The Rise of Islamic Capitalism, cujo subtítulo é Por que a Nova Classe Média Muçulmana é a Chave para Derrotar o Extremismo. Curioso, não? Nasz analisa essa nova maneira de ser muçulmana, integrando valores como liberdade, modernidade, democracia, sem conflitar com a religião.
E os radicais vão deixar?
"Sem dúvida, o islamismo moderado não tem os holofotes do islamismo radical. Mas, me permita dizer, a mídia ocidental parece ter um fascínio por atentados terroristas espetaculares. Infelizmente lugares como Afeganistão, Paquistão e Arábia Saudita continuarão produzindo violência. O Iraque talvez possa encontrar o caminho da democratização, porém isso demandará tempo, até que se estabilize o Estado. Mas olhe a reação que brotou nas ruas da Tunísia e do Egito. Mesmo no Irã já existe uma oposição se manifestando contra o regime, depois de passar anos subterrânea. Essas reações não se fazem da noite para o dia, são tendências de fundo, vão se constituindo. A vitória do povo egípcio, neste momento, é só uma etapa de um processo mais longo. Tem sido assim, historicamente. A União Soviética começou a ruir 20 anos antes do desmembramento formal do bloco. Os turcos começaram a se manifestar há mais de 15 anos...
O papel dos militares
"Será que eles vão só recuperar a ordem? Ou aspiram a papel mais ativo nas reformas do país? Hoje são questões em aberto. Pessoalmente, creio que eles não têm como recuar no caminho da democratização. Será inevitável. Fora isso, não vão comprometer a simpatia que conquistaram da população, esta, sim, há anos reprimida pela polícia, ou melhor, por um aparato de segurança brutal. A antiga polícia do regime se deslegitimou. As Forças Armadas, ao contrário.
Irmandade Muçulmana
"Não é um partido, é um movimento popular que se iniciou nos anos 20 do século passado para reviver o Islã. Ganhou adeptos depois da 2ª Guerra, no final dos anos 40, como movimento de reafirmação da identidade muçulmana e de resistência às potências, contribuindo com Gamal Abdel Nasser para derrubar a monarquia e fazer a república. Portanto, associou-se aos nacionalistas. Rapidamente os dois lados se estranharam e a Irmandade passou a ser vista como ameaça ao establishment nacionalista-militar. Cria-se uma situação em que o movimento passa a ser apenas tolerado, sem alcançar as esferas do poder e sem espaço para se constituir em partido político. Hoje há membros da Irmandade no Parlamento, mas admitidos individualmente, não como representantes do movimento. São arranjos possíveis no Egito, onde, nas últimas eleições, de tão manipuladas que foram, praticamente não houve oposição, daí a indignação de agora. Do ponto de vista intelectual, a Irmandade é um movimento sem expressão, liderado por anciãos. Ficarão satisfeitos de participar de um Parlamento democrático.
O ‘day after’ da Praça Tahrir
"A senhora Clinton e o presidente Obama agiram com cautela nesses dias, porque o que se viu no Cairo não é um movimento ‘deles’. Nem patrocinado pelos EUA. Os protestos deixaram claro que os jovens não querem que o Ocidente os tutele, tanto que, no primeiro momento, trataram de espantar a imprensa estrangeira. Mas, passadas as celebrações pela queda do ditador, vem aí outro momento. Esses jovens deverão participar da reconstrução política de um país com partidos de oposição muito fracos, portanto terão que eleger seus porta-vozes daqui para a frente. E terão que se abrir ao movimento social que está se expandindo pelo país."
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=40619
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